Caminhar juntos

Dom Roque Paloschi fala sobre o trabalho frente ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Sínodo para a Amazônia e a situação dos Povos Indígenas na atualidade.

Por Redação

A última edição da revista Missões (mar/abr/mai) traz o texto escrito por dom Roque Paloschi, bispo de Porto Velho, RO, e presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), no qual o prelado expõe a realidade dos Povos Indígenas e o trabalho sério e próximo que a Igreja desenvolve com eles.

A matéria de dom Roque torna-se atualíssima, no momento em que os Povos e o CIMI, órgão ligado à Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) sofrem ataques invasivos, inverídicos e caluniosos por parte das instituições oficiais e do governo federal.

Leiam a seguir, a íntegra da matéria publicada na revista Missões.

Caminhar juntos

Por Roque Paloschi

O “Sínodo para a Amazônia”, que se realizou entre os dias 6 e 27 de outubro de 2019, em Roma, é fruto da caminhada pós-conciliar da Igreja latino-americana e da Carta Encíclica Laudato Si´, do papa Francisco. “Tudo está interligado” é uma das frases marcantes da Laudato Si´. A “preocupação pelo meio ambiente”, o “amor sincero pelos seres humanos” e o “compromisso constante com os problemas da sociedade” – tudo está interligado (cf. LS 91). Também na vida dos povos indígenas, tudo está interligado: as questões políticas, culturais, sociais e espirituais. Para compreender corretamente o processo sinodal e sua relevância para a vida dos Povos Indígenas é importante se lembrar dessa interligação das diferentes etapas e textos produzidos nesse processo. Em vez de procurar o que nas diferentes etapas do Sínodo não foi dito e que talvez deveria ter sido, eu vou me contentar nesse texto com alguns pronunciamentos consensuais.

dom-roque1Na etapa preparatória do Sínodo podemos destacar o “Discurso do papa Francisco com os Povos da Amazônia”, no Coliseu de Puerto Maldonado/Peru (19.01.2018), e a Síntese das contribuições dos Povos Indígenas da região amazônica brasileira que o Cimi colecionou. Na segunda etapa, nas três semanas do próprio Sínodo, em amplas discussões foi construído o Documento Final do Sínodo para a Amazônia (DFSA) que o papa recebeu com um discurso marcado por uma abertura espontânea e um discernimento sábio em que nos disse: “estamos aprendendo a caminhar juntos”. A terceira etapa foi aberta, mas não concluída, pela “Exortação Apostólica Pós-Sinodal”, a “Querida Amazônia” (QA). Em quatro capítulos, que denominou quatro sonhos - sonho social, cultural, ecológico e eclesial -, o papa retomou o conjunto do processo sinodal e devolveu às Igrejas locais a concretização desse processo. Segundo a Constituição Apostólica Episcopalis Communio, “as Conferências Episcopais coordenam a atuação das referidas conclusões em seus territórios” (EC art. 19/2). Neste espaço vou me concentrar apenas em cinco destaques consensuais do processo sinodal, que constam nos próprios textos oficiais e se relacionam aos Povos Indígenas.

 A escuta dos Povos Indígenas (cf. DFSA 3)

A realidade indígena da Amazônia é multiétnica, multicultural e multirreligiosa (cf. DFSA 23). Um ano e meio antes do Sínodo, no dia 19 de janeiro de 2018, em Puerto Maldonado/Peru, o Papa Francisco se encontrou com líderes dos povos da Amazônia e disse algumas palavras muito importantes para o processo sinodal: “Quis vir visitar-vos e escutar-vos, para [...] solidarizarmo-nos com os vossos desafios” (DPM). A “fase preparatória envolveu toda a Igreja no território. [...]. Foi registrada a participação ativa de mais de 87.000 pessoas, de diferentes cidades e culturas” (DFSA 3). Essa escuta nos permitiu ver a realidade em que os Povos Indígenas vivem e ouvir seu grito e o grito de sua terra. A “Querida Amazônia” do papa Francisco coloca esse grito no contexto do Êxodo: “Para nós” o grito da Amazônia ao Criador é semelhante ao grito do Povo de Deus no Egito (cf. Ex 3, 7). É um grito desde a escravidão e o abandono, que clama por liberdade” [DPSA 8]” (QA 52).

A ameaça dos povos originários (cf. DPM)

Através da escuta atenta a Igreja percebeu que “provavelmente, nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora. A Amazônia é uma terra disputada em várias frentes”: o extrativismo concentra grandes interesses econômicos no “petróleo, gás, madeira, ouro e monoculturas agroindustriais” (DPM). A vida dos Povos Indígenas “está ameaçada pela destruição, exploração ambiental e violação sistemática de seus direitos territoriais. É necessário defender os direitos à autodeterminação, à demarcação de territórios e à consulta prévia, gratuita e informada” (DFSA 47; cf. QA 14) antes de qualquer intervenção territorial. A negação de direitos e recursos naturais sufocam a vida dos Povos Indígenas e “causa a migração das novas gerações” (DPM). “Não podemos permitir que a globalização se transforme em um `novo tipo de colonialismo´” (QA 14).

 A opção preferencial pelos Povos Indígenas (cf. DFSA 27)

Desde a sua convocação, o Sínodo radiava uma opção pelos Povos Indígenas. O Instrumentum Laboris ainda falava das opções preferenciais pelos Povos Indígenas, pelas comunidades tradicionais, pelos migrantes e pelos jovens como opções embutidas na opção preferencial pelos pobres (cf. ILSA 146 g). Em Puerto Maldonado, o Papa Francisco reafirmou “uma opção sincera em prol da defesa da vida, defesa da terra e defesa das culturas” (DPM). E desta preocupação com a defesa da vida “deriva a opção primordial pela vida dos mais indefesos. Penso nos povos referidos como “Povos Indígenas em Isolamento Voluntário” (PIAV). Sabemos que são os mais vulneráveis dos vulneráveis” (DPM; cf. ILSA 57). Finalmente, o Documento Final propõe explícita e especificamente ao Sínodo uma “opção preferencial pelos Povos Indígenas, com suas culturas, identidades e histórias” (DFSA 27). Essa opção “exige que aspiremos a uma Igreja indígena com seus próprios sacerdotes e ministros” (ibid.).

 A Igreja com rosto indígena (ILSA 116; cf. QA 27)

“Tudo o que a Igreja oferece deve encarnar-se de maneira original em cada lugar do mundo [...]. Deve encarnar-se a pregação, deve encarnar-se a espiritualidade, devem encarnar-se as estruturas da Igreja” (QA 6) e a teologia. “A teologia índia, a teologia do rosto amazônico e a piedade popular já são riquezas do mundo indígena, de sua cultura e espiritualidade” (DFSA 54), porque “a Igreja possui um rosto pluriforme” (QA 66). Por isso, uma Igreja na Amazônia deve ter entre muitos rostos também o rosto de uma Igreja indígena encarnada. “Só uma Igreja missionária inserida e inculturada fará emergir Igrejas particulares autóctones [...], enraizadas nas culturas e tradições próprias dos povos, unidas na mesma fé em Cristo e diferentes em seu modo de vivê-la, expressá-la e celebrá-la” (DFSA 42). “O mundo indígena com seus mitos, narrativas, ritos, cantos, danças e expressões espirituais enriquece o encontro intercultural” (DFSA 54). O rosto pluriforme e histórico da Igreja nos permite e obriga buscar “novos caminhos eclesiais, sobretudo, na ministerialidade” (DFSA 86), “dando especial atenção à participação efetiva dos leigos no discernimento e na tomada de decisões, potencializando a participação das mulheres” (DFSA 92). A realização dessa Igreja com rosto indígena vai depender muito da formação dos futuros presbíteros. Exige-se uma formação “inserida e adaptada à realidade, contextualizada e capaz de responder aos inúmeros desafios pastorais e missionários” (DFSA 108). O Sínodo propõe um plano de formação que responda às demandas pastorais da realidade dos Povos Indígenas, “a partir das suas próprias línguas e culturas” (QA 39). O Instrumentum Laboris resume: “A Igreja percorreu um longo caminho que deve ser aprofundado e atualizado, até poder chegar a ser uma Igreja com rosto indígena e amazônico” (ILSA 116).

 A pastoral indígena/indigenista

“Todos nós somos convidados a nos aproximarmos dos povos amazônicos de igual para igual, respeitando sua história, suas culturas, seu estilo de `bem viver´” (DFSA 55). Esse `bem viver´ “implica uma harmonia pessoal, familiar, comunitária e cósmica e manifesta-se no seu modo comunitário de conceber a existência, na capacidade de encontrar alegria e plenitude numa vida austera e simples, bem como no cuidado responsável da natureza que preserva os recursos para as gerações futuras” (QA 71). “Rejeitamos uma evangelização de estilo colonialista. [...] A evangelização que hoje propomos para a Amazônia é o anúncio inculturado” (DFSA 55).

É importante registrar, que a pastoral indígena e/ou indigenista não é uma pastoral genericamente paroquial. É uma pastoral específica, integral, contextual e universal. O Sínodo confirmou que “é urgente dar à pastoral indígena o seu lugar específico na Igreja. Partimos de realidades plurais e culturas diversas para definir, elaborar e adotar ações pastorais que nos permitam desenvolver uma proposta evangelizadora em meio às comunidades indígenas” (DFSA 27), que deve ser específica e integral, porque “toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas as suas necessidades concretas, para que todos alcancem a plenitude que Jesus Cristo oferece” (DAp 176). “Isso exige das comunidades cristãs um claro empenho com o Reino de justiça na promoção dos descartados” (QA 75). “Organizações pastorais indígenas diocesanas devem ser estabelecidas e consolidadas com renovada ação missionária, que escuta, dialoga, está encarnada e com uma presença permanente” (DFSA 27) e acompanhada por agentes pastorais adequadamente formados na Doutrina Social da Igreja (cf. QA 75). Para a presença sacramental permanente “é necessário conseguir que o ministério se configure de tal maneira que esteja a serviço de uma maior frequência da celebração da Eucaristia, mesmo nas comunidades mais remotas e escondidas” (QA 86; cf. DAp 100).

Partilhemos com o papa Francisco “o sonho com comunidades cristãs capazes [...] de se encarnar na Amazônia” (QA 7)! “O caminho continua e o trabalho missionário, se quiser desenvolver uma Igreja com rosto amazônico, precisa crescer em uma cultura do encontro rumo a uma “harmonia pluriforme” [EG 220]” (QA 61).

Roque Paloschi é presidente do Cimi e bispo da Igreja que está em Porto Velho, RO.

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