O sabor da vida

Alfredo J. Gonçalves, CS *

Qual o sabor da vida? Seguindo em metáfora gastronômica, que temperos e que ingredientes condimentam a trajetória da própria existência? Mais concretamente, o que alegra e entusiasma cada minuto ou hora, cada dia ou ano da peregrinação humana sobre a face da terra? Em outros termos, o que confere significado profundo ao tempo já vivido e ao que nos resta ainda viver? Numa palavra, qual o sentido último da vida? E onde auferir os nutrientes que nos mantêm firmes na fé e na coragem, na esperança e na solidariedade? De que forma gastamos as partículas preciosas do tempo? Este nos escorrega por entre os dedos como águas passadas, ou logramos dar-lhe um revestimento, um vigor e um gosto especial? O amor que recebemos, experimentamos e partilhamos é capaz de deixar nas páginas da história pegadas que nenhum vento conseguirá varrer?

Um exemplo: que é que nos faz, em determinado dia, sair por aí assobiando e cantando como o lavrador e, no outro, também como o lavrador, resmungando, maldizendo e até agredindo? Por que tamanhas oscilações de humor em curtos espaços de tempos ou em situações diferenciadas? Talvez haja uma pergunta subjacente a todas essas: quem somos, de onde viemos e para onde vamos?

A contemplação
A primeira resposta às interrogações da introdução nos leva a uma viagem simultânea ao íntimo e ao alto. O percurso da existência sobre a terra, como qualquer tipo de viagem, exige paradas para descanso, abastecimento, recuperação das forças. Diz Jesus a seus discípulos: "Vamos sozinhos para algum lugar deserto, para que vocês descansem um pouco; então foram sozinhos, de barca, para um lugar deserto e afastado" (Mc 6, 31-32). O encontro consigo mesmo e com Deus requer momentos particulares de repouso, busca e autoconhecimento. O itinerário à alma, que se descobre sedenta e finita, encontro terreno bravio, desconhecido e selvagem. Sentimentos estranhos, turbulentos e contraditórios afloram e assustam. Por isso, ele se complementa com o itinerário ao infinito, a um oceano de amor e misericórdia.

Aliás, a finitude do ser humano descobre no interior de si mesma um grande anseio de infinitude. Vive no limiar e na contradição entre o ser finito e a sede de infinito. Só então, no encontro com a misericórdia de Deus, a luz ilumina a escuridão, o deserto se faz povoado, o silêncio se reveste da Palavra viva e ativa. A alma se dá conta que suas fraquezas, quedas e limitações podem ser superadas graças à presença-ausência do totalmente Outro. Desvenda-se, assim, o segredo humano-divino do processo de auto-superação, onde, passo a passo, a pessoa entra num caminho de crescimento e ascese. Como um planeta, passa então a refletir a luz do sol. Mas tal reflexividade se interrompe quando a alma deixa de respirar o oxigênio da Casa de Deus e, num estado de auto-suficiência e arrogância, pretende caminhar com as próprias pernas. Rapidamente se perderá na escuridão e na aridez do deserto, como bem ilustra Santa Tereza D'Ávila em seu Livro da Vida. É ela que prepara um jardim para que Deus o visite, e insiste: "sossegou-se o espírito com tão bom hóspede". Sem o cultivo de semelhante relação, a alma seca e definha.

Tomemos nas mãos o exemplo de Maria. De acordo com o evangelista Lucas, que surpreendentemente repete duas vezes uma frase quase idêntica, "Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração" (Lc 2, 19.51). Guardar e meditar, dois verbos que remetem à memória dos fatos cotidianos. Mas remete, com maior razão, a um processo profundo de ressegnificação dos acontecimentos à luz de um projeto de Deus. O transcurso do dia-a-dia é lido não em chave histórica ou sociológica, mas em chave de fé nesse projeto. A superfície aparente da história, ao mesmo tempo, esconde e revela um sentido subterrâneo e oculto, onde a mão de Deus deixa sua marca. A ordem dos fatos, acessível a todos e em especial à mídia dos dias atuais, não dá conta de identificar o mistério encoberto do significado. Trata-se, com frequência, de duas leituras paralelas. Maria, juntamente com todos os místicos e sábios, rompe com as ondas visíveis dos acontecimentos, mergulhando em suas correntes invisíveis. É o caminho da fé, do silêncio, da escuta, da contemplação. Numa palavra, o processo de busca do transcendente em meio às turbulências e contradições da ordem imanente.

Semelhante visão expressa grande intimidade com Deus e com a sede irrequieta da própria alma. Expressa, também, viva sintonia entre a pessoa em sua dignidade mais profunda e o Criador, pois este "fez o homem e a mulher à sua imagem e semelhança" (Gn 1,26-27). E expressa, de maneira toda particular, um longo e laborioso processo de despojamento e renúncia aos próprios interesses, em busca de um projeto mais abrangente. Em termos de Vida Religiosa, é o momento onde a liberdade se encontra e se funde com a obediência. Ou seja, quanto mais livres das paixões, desejos e impulsos que nos dominam, mais propícios à obediência evangélica. A verdadeira obediência é filha da liberdade mais autêntica e genuína. E esta, por seu turno, predispõe à humildade e ao serviço do Reino. Como mostra a Carta de São Paulo aos Filipenses (Fl 2,6-11), liberdade e obediência são irmãs siamesas.

A sintonia profunda entre a busca de Deus e a interiorização de sua luz, por um lado, e a fusão entre liberdade e obediência, por outro, confere à vida um novo sabor. O olhar, o sorriso, a palavra, o gesto, a presença, o toque, a visita, o convívio... Tudo ganha um tempero infinitamente mais sensível e solidário. Uma alegria serena e oculta, não superficial nem espalhafatosa, passa a marcar cada ação e cada atividade, tanto em termos das relações pessoais e familiares, quanto das relações comunitárias, sociais e políticas. A luz que vem do encontro com Deus e da vida interior ilumina o rosto, o comportamento e a prática, transmitindo os raios de uma sabedoria até então desconhecida. O planeta humano, se e quando aberto à fonte, torna-se reflexo do sol divino que fecunda a terra. Em caso contrário, torna-se opaco e obtuso, refletindo apenas a própria esterilidade.

O compromisso
Se a primeira vertente de onde se destina o sabor da vida está ligada ao alto e ao íntimo, a segunda volta-se para o exterior, para o outro ou os outros. A primeira é simultaneamente vertical e interiorizada, a segunda horizontal. Neste caso, o campo de ação é a realidade socioeconômica e político-cultural. Os condimentos, os ingredientes e o tempero da existência estão associados ao contexto histórico em que "vivemos, nos movemos e existimos" (At, 17,28). Enquanto na contemplação o sabor da vida estabelece relações com Deus e consigo mesmo, aqui o leque das relações estende-se àqueles e àquelas que se debatem conosco neste "desterro" ou "vale de lágrimas".

O compromisso, entretanto, tem conotações de engajamento social em prol de alguma causa justa. Ele se volta, prioritariamente, para os setores da população que sofrem abandono, fome, miséria, precárias condições de vida... Enfim, está atento às vítimas da pobreza e da exclusão social. A ação entre os marginalizados da sociedade, como presença e doação, traz uma realização e uma alegria nem sempre compreendidas. Uma espécie de "investimento do tempo" dá lugar a uma solidariedade gratuita, a qual, por si só, destila um sabor indizível. De fato, quando agimos por "investimento" não fazemos outra coisa senão transportar para a prática social os critérios capitalistas da atividade com retorno imediato. A práxis livre, despojada e dissociada de ganhos recompensatórios, em lugar de empobrecer, engrandece o coração e a alma. Enobrece a ação solidária.

Também neste caso, entramos em sintonia com a infinita misericórdia de Deus e, mais precisamente, com a gratuidade de Jesus Cristo. Ele "andou por toda parte fazendo o bem", diz o evangelista (At 10,38), com o olhar fixo predominantemente naqueles que nada tinham a devolver ou a recompensar-lhe: leprosos, estrangeiros, doentes, crianças, mulheres, cegos, coxos... E assim por diante. Seu objetivo era um só: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância" (Jo 10,10).

Temos aqui a dimensão social e política da Boa Nova de Jesus Cristo. Dimensão que, desde os primórdios da história da Igreja, sempre foi enfaticamente sublinhada. Primeiramente, na prática do próprio Jesus que "percorria todas as cidades e aldeias (...), "encontrava as multidões cansadas e abatidas e tinha compaixão porque eram como ovelhas sem pastor" (Mt 9, 35-38); depois, através do testemunho dos seguidores imediatos do movimento de Jesus, como nos mostram os dois retratos das primeiras comunidades cristãs (At 2,42-47; 4,32-37); em terceiro lugar, na veemência com que os Santos Padres denunciam as injustiças e desigualdades sociais, escandalizados com desequilíbrios tão acentuados no Império Romano; por fim, na trajetória de mais de um século da Doutrina Social da Igreja (DSI), que passa a ser sistematizada com a publicação em 1891, pelo Papa Leão XIII, da Rerum Novarum, documento inaugural da DSI, sobre a questão operária.

A essa trajetória sumariamente traçada, podemos acrescentar, nos dias de hoje, o empenho da "opção preferencial pelos pobres", a prática das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a reflexão teórica da Teologia da Libertação (TdL). E ainda todo o campo da ação social: pastorais, movimentos, Cáritas, entidades, organizações não governamentais, parcerias de todo gênero... Além de uma série de iniciativas populares que buscam incansavelmente a construção de uma sociedade justa e solidária, fraterna e sustentável, tanto do ponto de vista social quanto ecológico.

O companheirismo
Entre a espiritualidade vertical e íntima, por uma parte, e dedicação horizontal, por outra, existe, digamos assim, uma linha diagonal. Trata-se do cultivo de um companheirismo crescente e profundo entre aqueles que, ao mesmo tempo, se voltam para o totalmente Outro e para os outros. Se os dois itens anteriores representam o núcleo do Evangelho - amar a Deus e amar o próximo como a si mesmo - a via transversal cria ambientes familiares que reforçam as outras duas. É o que os estudiosos designam pelo conceito de comensalidade, isto, partilha de pão e vida, ou como diz o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, "camaradagem à mesa".

Impressiona o número de vezes que vemos Jesus, nos Evangelhos, desenvolvendo essa prática. Visitava as casas, sentava à mesa, participava das festas, ao ponto de ser acusado de beberrão e comilão (Mt 11,19). Tal frequência ultrapassa inclusive a morte e ressurreição, como no episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). Mas o ato mais significativo do sentar à mesa e partilhar a vida e o alimento se dá na última ceia, seguida do lava-pés, do diálogo com os discípulos e da chamada oração sacerdotal (Jo, capítulos de 13 a 17). "Ardentemente desejei comer esta ceia pascal convosco", diz o Mestre. Depois, na mesa e no ato de lavar os pés, revela uma intimidade que ultrapassa tudo o que se possa imaginar em termos de amizade. A própria linguagem desses parágrafos demonstra um coração materno, profundamente sensibilizado pela separação iminente, uma espécie de Evangelho dentro do Evangelho, ou, conforme alguns, o testamento espiritual de Jesus.

O fato é que, nesses gestos de comensalidade, o sabor da vida se confunde com o sabor da comida. Esta adquire seus ingredientes mais fortes devido à presença dos outros. Enquanto o alimento nutre o corpo, o olhar, a proximidade e as palavras dos amigos nutrem o coração e a alma. O outro é por excelência o tempero da refeição. Podemos afirmar que, diferentemente dos animais, o ato humano de comer é tão sagrado que exige o comer-se um ao outro. "Tomai e comei, isto é meu corpo; tomai e bebei, isto é meu sangue" (1Cor 11,23-26). Isso explica a festa, onde não é a fome de comida que nos reúne, e sim a fome de relações íntimas e profundas. Tanto que toda a festa tem sua liturgia: toalha à mesa, flores, talheres devidamente colocados, pratos enfeitados, convivas distribuídos com critérios prefixados... Tudo isso faz parte do sabor que a mesa traz a um vivo companheirismo.

Esse companheirismo, colocado entre a elevação contemplativa e a solidariedade aos pobres, constitui uma retaguarda para uma ação social mais eficaz. Quem possui e cultiva semelhante ambiente familiar não tem medo dos desafios que a história levanta a todo momento. Conta com esse posto de abastecimento e se lança ao caminho com mais coragem e entusiasmo. É o que na Vida Consagrada se chama de Comunidade Religiosa. Com ela, nossas energias se redobram. Temos alguém em casa que reza, torce e espera pelo sucesso da missão.

Conclusão
Antes do ponto final, é preciso deixar claro que as três dimensões apontadas, vertical/íntima, horizontal e diagonal, não se comportam de forma linear nem em sequência. Ao contrário, interagem e se entrelaçam o tempo todo. Não há começo nem fim, mas uma dinâmica dialética, em espiral progressiva, que as enriquece reciprocamente. Exemplificando, quando mais nos abrimos a Deus e a nós mesmos, mais estaremos abertos aos pobres e aos companheiros. E inversamente, quando nos cerramos num mutismo hermético, ele afeta simultaneamente a relação com Deus, com o próximo e com os amigos. Numa palavra, cada dimensão requer, questiona, interpela e faz crescer (ou definhar) as demais. O autoconhecimento e a busca do transcendente, quando realidades integradas, abrem as portas aos companheiros e aos estranhos e diferentes.

As três dimensões crescem ou decrescem de forma conjunta e inextrincável. São elas que tornam a existência humana, a um tempo, mais saborosa e mais fecunda. Brilha de forma diferente o espírito das pessoas que cultivam, simultaneamente, uma profunda experiência de Deus, uma intensa vida interior, um relacionamento familiar com os companheiros e um compromisso com os pobres.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.

Fonte: www.provinciasaopaulo.com

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