Consequências da opção profética

Lírio Girardi

Publicamos a segunda parte do artigo "A Conversão da Igreja" na sua caminhada com os Povos Indígenas em Roraima.

A opção a favor dos Povos Indígenas, feita pelos missionários da Consolata em 1974 e, em seguida, pela diocese de Roraima em 1978, é uma das páginas mais significativas da história da Igreja missionária no estado. A leitura da realidade, iluminada pelas luzes do Concílio Vaticano II, dos Documentos de Medellín e Puebla, e a escuta do grito sofrido das lideranças indígenas foram determinantes para chegar a esta escolha. No artigo anterior (edição maio 2009, pp. 20-21), acenei os marcos decisivos que balizaram este longo e sofrido caminho de libertação. É necessário agora perguntar: quais as consequências desta opção? O que significou para os envolvidos?

Os indígenas

Para a maioria, foi como uma semente que gerou ânimo, coragem, vontade de lutar e, principalmente, união. Muita união. As comunidades indígenas começaram a se unir ao redor de suas lideranças: Tuxaua (cacique), capatazes, professores, catequistas, vaqueiros etc.

Um feixe de varas de dois metros, firmemente amarrado, passou a ser o símbolo da união e da luta: cada vara simbolizava uma comunidade. Unidas venceriam. Nenhum invasor as dobraria. E os feixes foram se espalhando pelas regiões do estado, semeando união, trabalho, e muita coragem para lutar na construção do projeto libertador: defesa da terra e da própria cultura. Foi esta a origem do Conselho Indígena de Roraima - CIR, o motor da organização e da caminhada da libertação.

Por outro lado, esta opção criou tensão e sofrimento. A reação por parte de fazendeiros, políticos e do próprio governo de Roraima foi violenta: ameaças, proibições de criar rebanhos, acusações de roubo de gado, perseguições, calúnias, prisões de lideranças e até mortes. Tudo para espalhar medo e divisão entre os índios.

Uma minoria de lideranças, infelizmente, deixou-se manipular e fechou com o opressor. Este é o aspecto mais doloroso desta luta. A liberdade tem preço. O caminho nem sempre está definido. Faz-se caminhando...

Os missionários

Estes também arcaram com as consequências desta opção. Até que o índio abaixava a cabeça e a Igreja "abençoava", reinava a paz (aquela dos cemitérios!). A opção preferencial da Igreja pelos indígenas e, principalmente, o renascimento destes desencadeou uma longa, sistemática e sórdida campanha contra os missionários, contra a diocese de Roraima e contra todos os aliados dos índios: perseguições, calúnias de toda a espécie, inquéritos policiais, proibições de trabalhar em área indígena, expulsão dos missionários da Missão Catrimani. Não faltaram atentados à vida.

A paciência dos indígenas (um símbolo do povo Macuxi é o jabuti que caminha devagar, mas para frente); diria, a resistência até cansar o adversário, ajudou muito os missionários a entender o ritmo do processo e a construção do caminho, rumo à liberdade. Esta foi uma rica experiência de inculturação para eles.

Por outro lado, a escolha preferencial pelos índios, exigiu dos missionários e da Igreja, uma série de mudanças, nem sempre fáceis e pacíficas, seja para o indivíduo, como para o grupo:

- Foi necessária uma mudança geo¬gráfica: deslocamento da cidade para o interior, da sede da fazenda, para a comunidade indígena. Muda o ponto de apoio. O missionário passa a morar na comunidade indígena.

- Com isso, a comunidade indígena passa a ser o centro das atenções e das atividades sociais e religiosas do missionário. Seu interlocutor, agora, é o Tuxaua, o líder da comunidade indígena e com ele e com as demais lideranças, vai programando, executando e avaliando sua presença e todos os passos e atividades.

- Mas foi necessária uma mudança mais profunda, na cabeça e no coração do missionário, diria uma mudança teológica: o índio e sua comunidade tornam-se o "lugar teológico". Deus está aí e aí Ele se revela. A partir daí, acontece a evangelização. Os "sinais" (sacramentos), agora, acontecem na pessoa do índio e na comunidade. Estas mudanças exigem reflexão, partilha e principalmente conversão... e tempo.

Concluindo

O caminho de libertação dos Povos Indígenas de Roraima foi e continua sendo um caminho sofrido, paciente, digno, participado, tendo os índios como atores principais. O projeto indígena de Roraima é um projeto vitorioso. Prova disso são os nove milhões de hectares de terra demarcados e homologados, para o povo Yanomami e um milhão e setecentos mil hectares, homologados pelo presidente da República e, recentemente, reconhecidos também pelo Supremo Tribunal Federal para os povos Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepan e Patamona.

A participação da Igreja, nesse projeto foi ampla, corajosa, decisiva, sofrida e profética. Não faltaram dúvidas, temores e contradições, próprios dos colaboradores do Reino. Mas a graça do Senhor, a força do Cristo superou a fraqueza (2 Cor.12,7-9).

Essa participação foi solidária: sempre contou com o apoio qualificado e constante do Conselho Indigenista Missionário - Cimi, através do Regional de Manaus, e do Nacional. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB esteve sempre muito presente, com suas orientações e encorajamentos. Verdadeiramente proféticas foram duas visitas à Igreja de Roraima por parte de dom Luciano Mendes de Almeida, então presidente da CNBB: por ocasião da expulsão dos missionários da Missão Catrimani (1988) e para presidir uma celebração eucarística campal, por ocasião da ameaça de morte a dom Aldo Mongiano, bispo de Roraima.

A escuta do grito do povo, traduzido em lamento, choro e revolta das lideranças indígenas, e a leitura atenta da realidade, iluminada pela Palavra, foram pontos de partida para a conversão da Igreja.

A opção preferencial evangélica pelos índios, envolvendo um grupo de missionários da Consolata, e, depois, a Igreja de Roraima, foi o coração da caminhada. A causa indígena, feita opção amorosa, transformou-se em energia para superar as fraquezas e divisões internas e a vencer o medo das ameaças e provocações externas.

A elaboração conjunta de um projeto de libertação, envolvendo missionários, missionárias e lideranças indígenas (CIR), com programação, execução e avaliações constantes, foi o instrumento que possibilitou a valorização das potencialidades e a superação das divergências, em vista de um objetivo comum.

Finalmente, foi a decisão firme e corajosa dos Povos Indígenas de assumir seu destino, sua resistência histórica, paciente para esperar e sábia para avançar, que possibilitou esta vitória, vitória da vida sobre a morte, da união fraterna sobre o egoísmo dominador, da partilha solidária sobre a ganância acumuladora, vitória da justiça sobre a violência.

Celebrar é preciso. Povo Indígena de Paabba, Anikê e Inskiran sorria, cante, dance Parixara e Areruya. Celebre o Caxiri da união e da vitória.Um povo que sabe o que quer, luta pela sua liberdade e tem futuro.

Creio que a Igreja pode e deve continuar sua caminhada com os Povos Indígenas, agora, com uma presença diferente. O "como" deve ser discernido na reflexão e no diálogo, com as lideranças indígenas e suas organizações e com os verdadeiros aliados dos índios, apoiando e favorecendo aqueles valores autênticos e perenes da cultura indígena. 

Lírio Girardi, imc, é superior provincial do Instituto Missões Consolata no Brasil.

Publicado na edição Nº06 - Julho/Agosto 2009 - Revista Missões. www.revistamissoes.org.br

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