“Oração nua” em tempos de pandemia

Por Alfredo J. Gonçalves *

A “oração nua” representa um repouso espiritual junto à presença de Deus. Como diz a própria expressão, trata-se de um momento despido de palavras, fórmulas ou rituais. Quando muito, pode contar com uma espécie de mantra repetido pausadamente, ou com uma melodia de fundo, suave e instrumental, cuja função, tanto de um quanto da outra, é justamente despojar do lixo das palavras supérfluas esse mergulho profundo no mistério do divino. Exemplos de mantras: “nada tenho, nada peço, nada sou!... mas estou aqui” ou “meu Senhor e meu Deus” – e deixar-se embalar pelo som e pelo tempero desse silêncio exterior e interior. A verbalização prolixa, ás vezes empolada e dispersiva, cede espaço a uma concentração focalizada.

Nem por isso a “oração nua” menospreza, desconhece ou desqualifica a devoção popular, a prece comunitária ou a celebração litúrgica. Para além de tudo isso, porém, o orante procura na meditação e na contemplação um encontro mais íntimo consigo mesmo e com Deus, tentando aprofundar-se no segredo do silêncio fecundo e da escuta atenta. Em lugar de ideias, conceitos e argumentos racionais, ou até mesmo de sentimentos e emoções que, no dizer do senso comum, enchem de entusiasmo o coração, prevalece o envolvimento das entranhas, núcleo vital e central da existência humana, o âmago do ser. Longe de uma atitude inerte ou passiva, impõe-se um compromisso ativo com a descoberta de um tesouro, ou melhor, do verdadeiro tesouro de que falam os evangelhos. Disso resulta que tais momentos sejam, em geral, estritamente pessoais, únicos, irrepetíveis, às vezes indecifráveis e sempre indescritíveis.

Ao invés de comoção superficial e entusiasmo espetacular, convém repetir, estamos diante de uma tarefa árdua e empenhativa. Faz-se necessário atravessar as areias nuas e solitárias de um deserto infértil, perscrutar o silêncio mudo, opaco ou até indiferente. Não será fácil perseverar no silêncio, na escuta e na espera. A face e a voz do Senhor costumam tardar, não se dobram a nossos desejos ou caprichos imediatos. Não raro, tropeçaremos com a sensação de que todo o esforço é inútil ou de que em vão estamos perdendo tempo. Deparamos com a noite escura e sem uma estrela que aponte o caminho. Daí a necessidade de estar preparados para uma caminhada longa e íngreme, em que o fim é incerto, imprevisível.

Da mesma forma que o agricultor trabalha de sol a sol e às vezes pouco ou nada colhe, pode ser que, mesmo após cavar longos minutos nesse terreno duro e resistente do silêncio, deixemos esse momento de “oração nua” com as mãos vazias e a alma ressequida. Novamente a exemplo do agricultar, é preciso retornar ao terreno e seguir trabalhando. Cedo ou tarde, e sempre depois de um empenho continuado, com a velocidade de um raio, o rosto luminoso de Deus se revela e brilha na noite escura com uma intensidade sem igual. Sim, veloz, fugaz, inteiro e intenso como o raio, rasga o véu sombrio da escuridão mais espessa. Acende, brilha e logo se apaga. Não obstante sua instantaneidade, porém, ou justamente por causa dela, deixa na alma humana uma marca tão funda, indelével e inefável que intempérie alguma poderá varrer de suas entranhas mais íntimas. Marca impressa a ferro e fogo nos interstícios mais recônditos da memória e que, a intervalos mais longos ou mais breves, certamente se repetirá, povoando de estrelas as noites até então densas, temidas e tenebrosas.

Semelhantes instantâneos de luz, efêmeros mas de retumbantes luminosidade, instigam o orante, provocando-o a outros encontros. Encontros cada vez menos espaçados e mais demorados. O ato de perseverar na busca da “oração nua”, tende a acumular tais experiências, a um só tempo tímidas e estrondosas. Com o tempo, forma-se como que uma verdadeira galáxia de estrelas. Serão elas que, ao longo de nossa caminhada terrestre, do alto de postes invisíveis, haverão de iluminar a estrada que, de um modo ou de outro, escolhemos trilhar. Constituem, na verdade, a via oculta de nossa mística ou espiritualidade. O alimento que nutre nossa vocação e nos mantém de pé diante das maiores tempestades – ou pandemias!

* Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM.

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