Pandemia entre os Yanomami



Algumas anotações sobre a Covid-19 nas comunidades Yanomami (15 de março a 1º de maio de 2020).

Por Equipe da Missão Catrimani

As notícias sobre a pandemia desencadeada pelo Coronavírus chegaram – de forma mais clara – até às comunidades indígenas espalhadas pela TIY - Terra Indígena Yanomami, quando os membros do Condisi-YY - Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye´kwana retornaram para suas regiões, após a última reunião do órgão.

Esta reunião ocorreu em Boa Vista, entre os dias 16 e 18 de março de 2020, e foi interrompida antes do término previsto (20 de março), devido às opiniões que alertaram sobre o perigo de aglomerar dezenas de Yanomami de muitas regiões da TIY, e não-indígenas membros do Condisi e funcionário do DSEI-Y - Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena Yanomami, enquanto o Ministério da Saúde tinha desaconselhado agrupamentos de pessoas, como medida preventiva contra a transmissão da doença.

Após o encerramento antecipado e o retorno dos conselheiros para suas regiões, as informações começaram a ser veiculadas também pelos diferentes canais das rádios instaladas na TIY, transmitidas pelos diretores das associações Yanomami e pelos assessores indígenas a serviço na sede do DSEI-Y. As comunidades foram também informadas diretamente pelas equipes de saúde que atuam na TIY.

A partir do dia 29 de março, lideranças indígenas de algumas regiões da TIY, solicitaram o fechamento dos postos de saúde, com o intuito de impedir a chegada do vírus à área Yanomami, através dos funcionários de saúde que, vindo de cidades onde o contágio já estava comprovado, poderiam ser portadores da doença, sendo que os membros das equipes se revezavam a cada 15 ou 30 dias (dependendo dos Pólos Base). Após poucas semanas, os moradores de algumas regiões (por exemplo, as comunidades do rio Mararí) solicitaram a entrada das equipes de saúde, para receber atendimentos médicos, devido à ocorrência de numerosos casos de malária. De outras regiões, chegou a informação de que alguns grupos de Yanomami escolheram se refugiar na floresta, longe dos postos de saúde e das pistas de pouso, para evitar qualquer contato com os não-indígenas.


Prevenção

Com o retorno do Conselheiro Distrital de Saúde, Rogério Yanomami, no dia 21 de março, nas imediações do posto de saúde da Missão Catrimani, foi realizado um encontro durante o qual foram repassados – aos moradores de algumas comunidades localizadas nas proximidades da pista de pouso e que puderam comparecer – os assuntos tratados na reunião do Condisi e, de forma específica, as questões inerentes à pandemia da Covid-19. O enfermeiro responsável pelo Pólo Base de Saúde explicou a origem da doença, os sintomas e as formas de prevenção, enquanto o Conselheiro Yanomami apresentou o plano de intervenção estabelecido pelo Distrito de Saúde para os casos suspeitos ou comprovados de contágio pelo novo vírus, expressando a grande preocupação de todos os conselheiros para com a situação dos pacientes e acompanhantes que se encontram na Casai - Casa de Apoio à Saúde do Índio, em Boa Vista, e que deveriam voltar para suas comunidades após o término do tratamento. A equipe missionária esteve presente, ajudando nas traduções e nas explicações.

Nas semanas seguintes, em diversas ocasiões (conversas informais, encontros com pessoas etc.) foram repassadas informações sobre o alastrar-se da pandemia no mundo e no Brasil, os sintomas mais frequentes, as formas de transmissão e prevenção do contágio, a atual inexistência de uma vacina e de um tratamento médico específico. Foram também discutidos com os indígenas da região os canais da possível chegada da doença ao território por eles habitado: garimpeiros que trabalham em garimpos ilegais na calha do rio Catrimani e Yanomami que mantém contatos frequentes com eles (na boca do rio Pacú, à altura das cachoeiras de Wixa Pora e Kawahikɨ Pora/Cachoeira do Poraquê); Yanomami e não-Yanomami que chegam à área ou retornam a suas comunidades após viagens e permanências nas cidades (Boa Vista, Caracaraí), vilas (Campos Novos, Santa Maria do Boiaçu) ou fazendas situadas nos arredores da TIY; pacientes e acompanhantes que retornam após tratamento na cidade.


Morte de jovem Yanomami

As várias informações divulgadas e a comprovação do contágio pelo Coronavírus de um jovem Yanomami (morador da região do rio Uraricoera), que acabou falecendo em Boa Vista (cfr. o programa “Fantástico”, no serviço apresentado no domingo, 12 de abril) despertaram preocupação entre os Yanomami que ficaram bastante alarmados.

Apesar dos conselhos e da preocupação difundida – que poderia levar a assumir sérias medidas de prevenção – destacamos ser muito difícil os Yanomami adequar-se aos protocolos indicados e às advertências recebidos. Por diferentes razões – entre as quais podemos considerar os costumes de convivência muito próxima, as relações sociais que estimulam frequentes intercâmbios, as etiologias e práticas de cura xamânica das doenças – os Yanomami continuam seu ritmo de vida, sem muitas alterações. Concretamente: são ainda realizadas as celebrações intercomunitárias reahu que implicam deslocamentos, agrupamentos e intercâmbios de pessoas, apesar de justificar a redução do número de dias da festa, como uma medida preventiva devida à possível ameaça do vírus; são frequentes as visitas ao posto de saúde e à Missão, mesmo quando não há urgências de saúde, sobretudo quando aterrissam as aeronaves lotadas pelo DSEI-Y, com pessoas e objetos; aglomerações de jovens de várias comunidades ocorrem pela paixão pelo futebol.

Não obstante as contínuas indicações e ter chegado ao conhecimento de todos que dois assessores indígenas do DSEI-Y, Anselmo Xiropino Yanomami e Junior Hekurari Yanomami foram acometidos pela nova doença, parece que o medo entre os Yanomami diminuiu, assim como se difundiu certa descrença em relação à existência desse vírus do qual muito ouviram falar. Algumas pessoas afirmam que a doença que se alastra por vários países seja uma patologia que ataca apenas os napëpë (não-Yanomami), pois as outras epidemias xawara que dizimaram a população local – como as epidemias de sarampo que se alastraram nos anos 1970 – tinham chegado sem pré-aviso, provocado um rápido contágio e muitas mortes. Outros pensam tratar-se apenas da tentativa de intimidá-los. Outros perguntam se “a doença já passou” e voltamos à normalidade.

Práticas de atendimento

Até o início de maio, o posto de saúde na Missão Catrimani permanecia ativo. Conforme as decisões do DSEI-Y o número dos funcionários de saúde foi reduzido para limitar possíveis riscos de transmissão do vírus por parte dos membros das equipes de saúde (no final de abril, foram removidos dois técnicos de saúde do Pólo Base do Alto Catrimani, com sintomas da Covid-19, apesar da triagem à qual se submetem todos os funcionários que são destinados à área indígena; o atendimento aos Yanomami deve ser efetuado apenas no posto de saúde, salvo casos de emergência que exigiam o deslocamento das equipes de saúde para as malocas.

Ao posto de saúde da Missão Catrimani chegou um Yanomami apresentando os sintomas da Covid-19. Imediatamente foi colocado em isolamento (chamaremos esta pessoa de “caso 2”) e recebeu tratamento conforme o protocolo indicado pelo Distrito Sanitário, tendo rápida melhora. A notificação efetuada, do posto de saúde para a sede do Distrito, levou o rápido envio para a Missão Catrimani dos testes para Coronavírus. No dia 29 de abril o paciente, que não apresentava mais os sintomas pelos quais tinha sido internado, resultou negativo ao teste realizado no posto de saúde, permanecendo, contudo, em isolamento.

Outros pacientes – que tiveram contatos com o primeiro sintomático (caso 2), em sua maloca ou em outras – chegaram ao posto de saúde nos dias sucessivos, apresentando alguns sintomas análogos. Com esses pacientes foi seguido o mesmo protocolo de tratamento e apresentaram melhoras, tornando desnecessário – conforme os protocolos do DSEI-Y – a realização do teste. Uma paciente grávida (à qual nos referimos como “caso 1”), que apresentava alguns sintomas, chegou ao posto de saúde no fim da tarde do dia 26 de abril e foi removida com muitas precauções, para Boa Vista, na tarde do dia seguinte.


Preocupações e esperança

Algumas questões despertam nossa preocupação, perante a ameaça da pandemia alastrar-se entre as comunidades Yanomami: a possibilidade de contágio, sobretudo pelas invasões do território Yanomami e pelos deslocamentos de alguns indígenas para fora de sua terra; a dificuldade de muitas pessoas em seguir seriamente as precauções aconselhadas, por não se aperceber da possibilidade do perigo; a carência das estruturas e a falta de equipamentos disponíveis nos postos de saúde na TIY (respiradores, botijões de oxigênio, meios de proteção individual etc.); a ausência dos insumos necessários, indicados pelo Ministério da Saúde para a prevenção do contágio e o enfrentamento da pandemia (material de higiene e de proteção em quantidade suficiente para a população local); a aglomeração de pessoas no posto de saúde: o fato de que os técnicos atendem apenas no posto aumenta consideravelmente o fluxo de pessoas que acorrem para o atendimento, seja para vacinação (nos dias sucessivos à data de revezamento das equipes), bem como para ser atendidos por patologias que poderiam ser tratadas durante as visitas das equipes de saúde às aldeias (pneumonia, afeções respiratórias e intestinais etc.) ou para diagnósticos de malária.

Apesar da preocupação que caracteriza esse momento, reconhecemos alguns sinais de esperança no empenho dos Agentes Indígenas de Saúde que buscam constantemente esclarecimentos e atuam apoiando o trabalho dos membros não-indígenas das equipes de saúde, junto aos habitantes das comunidades, aceitando adotar as precauções indicadas. Ainda destacamos que alguns xamãs (xapuri) se empenham no combate prévio contra a difusão da epidemia no território Yanomami e consideraram responsavelmente a necessidade de atacar o espírito dessa doença “de longe” evitando o eventual contato físico com pessoas acometidas pela patologia ou sintomáticas.

Com essas preocupações e buscando cultivar a esperança, como membros da Equipe Missionária, decidimos permanecer ao lado das comunidades Yanomami. Entendemos poder contribuir, na medida de nossas capacidades e do nosso trabalho – pelo conhecimento da língua indígena e da vida do povo, pela prática de diálogo e a confiança construída ao longo de anos, pelas estruturas que conservamos na Missão Catrimani – na prevenção do alastrar-se dessa doença e no eventual enfrentamento de situações que poderão se criar.

Fonte: Equipe da Missão Catrimani, 1º de maio de 2020, Roraima.

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