Experiência fundamental

Alfredo J. Gonçalves , CS*

Todo cristão que é digno desse nome passa por uma experiência fundamental: o encontro íntimo e profundo com Jesus Cristo e com o Pai=Abba. É daí que nasce não somente sua marca registrada, como também o alimento que nutre o seguimento do Mestre quanto às exigências evangélicas. Não se trata apenas de uma compreensão teológica do evento Jesus Cristo. Esta é importante, sem dúvida, mas pode significar um racionalismo frio, seco, iluminista, que não envolve a entrega do coração a Deus. Tampouco se trata de um espiritualismo intimista, etéreo, volúvel e volátil, desencarnado dos fatos e das ações. Também a espiritualidade tem sua importância, claro, desde que não esteja dissociada do Jesus histórico, de sua paixão, morte e ressurreição e da proposta do Reino de Deus. Fé sem coração equivale ao pensamento racionalista de Voltaire; espiritualidade sem a razão pode desembocar num fundamentalismo devastador e nocivo. Os fundamentalismos, políticos ou religiosos, já deixaram trágicas lembranças na história da humanidade. Pior ainda quando revestido de um caráter sobrenatural, porque então opera com verdades absolutas. O que significa que o outro está absolutamente errado. Deve ser condenado à fogueira, à guerra santa, enfim, ao extermínio.

A fé teologal, na expressão de Bruno Forte, desdobra-se em três dimensões complementares: uma iluminação crescente do evento Jesus Cristo - vida, obras e palavras - culminando com a compreensão da Cruz e da Ressurreição; uma intimidade progressiva com a pessoa de Jesus Cristo e do Pai=Abba, que desce às entranhas mais obscuras do ser humano; e uma abertura cada vez mais afetuosa e transparente, seja no autoconhecimento, seja na aproximação e no amor com os outros. Uma experiência dessa natureza não tem geração espontânea, não se resume a um ato da vida. Significa, antes de tudo, um processo lento, laborioso e que requer suas mediações. A mente humana, por mais lúcida e iluminada que seja, não consegue penetrar nas profundezas do mistério divino. Este se revela para nós somente através de uma linguagem humana, de testemunhos humanos, de espelhos onde podemos refletir nosso próprio comportamento e atitudes. De que mediações dispõem hoje os cristãos para buscar, ainda que indiretamente, a face oculta de Deus?

A experiência fundante do Povo de Israel
O chamado "credo histórico" do Povo de Israel, em suas diferentes versões, traz algumas luzes para a nossa reflexão. O confronto entre uma das versões elaboradas (Dt 26,5-10) com uma versão mais antiga e primitiva (Ex 3,7-10), mostra que a narrativa se utiliza de quatro verbos na primeira pessoa do singular, todos atribuídos a Deus. Eu vi (a miséria ou aflição do povo no Egito), eu ouvi (seu clamor), eu conheço (seu sofrimento) e eu desci para libertá-lo e conduzi-lo a uma terra "onde corre leite e mel".

O movimento de libertação, do Egito para a Terra Prometida, aparece revestido da fé em um Deus atento aos gemidos daqueles que sofrem, sob a tirania do Faraó, a opressão na terra estrangeira. E que de tão próximo e íntimo, ganha os atributos humanos de ver, ouvir, conhecer e descer. São verbos que expressam uma extraordinária sensibilidade e solidariedade para com as vítimas da história. A descrição da experiência fundante atesta a presença de um Deus que caminha com o povo: na travessia do Mar Vermelho, no deserto e na conquista das terras de Canaã. Numa palavra, a passagem da escravidão para a liberdade, das trevas para a luz, da terra da opressão para a terra prometida é lida com o olhar da fé. Os fatos, ao serem teologizados, ganham um significado todo especial: clamamos a Iahweh e Ele nos tirou das garras do Faraó!

Em termos sociais e históricos, a trajetória do Povo de Israel não se diferencia daquela vivenciada pelos demais povos. Ao contrário, o império egípcio, juntamente com outras nações, deixou façanhas bem mais significativas para o olhar do arqueólogo e do historiador. Mas, como diria o Pe. Hermilo Preto, Israel soube revestir os acontecimentos fatuais com uma roupagem de fé. Como a fé representa uma paixão por algo ou alguém, e como a paixão transfigura os fatos corriqueiros em verdadeiros prodígios, a história de Israel, nos livros do Antigo Testamento, adquire o caráter de grandiosidade e magnificência ímpares. Não que suas narrativas estejam mentindo, apenas são apresentadas com a paixão do amor por Iahweh e deste para com seu povo. É o que se verifica, por exemplo, no afeto de um homem por uma mulher ou vice-versa. A pessoa amada ganha atributos de uma beleza grandiosa que somente o apaixonado é capaz de enxergar.

Para concluir este item, a experiência da libertação está tão associada a uma profunda experiência de Deus, que uma alimenta e retroalimenta a outra. A fuga do Egito passa a ser vista como obra do Deus libertador; e a fé em Deus, por sua vez, fortalece o povo para seguir lutando pela terra e pela liberdade. Os poemas em forma de oração - salmos - e o conjunto dos os livros da Sabedoria revelam o mesmo entrelaçamento entre a vida e a fé, embora em contextos distintos, tais como o período da monarquia, o exílio na Babilônia e a reconstrução do Israel pós-exílico.

Ressurreição e Pentecostes
Aqui entendemos o pentecostes não tanto como um fato único e extraordinário, como apresenta o Livro dos Atos dos Apóstolos, no capítulo dois. Ressurreição e Pentecostes representam, antes, um processo individual ou coletivo do encontro do Ressuscitado e do Espírito Santo com seus antigos companheiros e discípulos. Se quisermos usar a linguagem do Documento de Aparecida (DA), trata-se de uma encruzilhada entre o ser discípulo e o ser missionário. Esse encontro tem matizes diferentes de pessoa para pessoa, como também de cada uma delas para o conjunto dos discípulos.

Convém não esquecer, em primeiro lugar, que todos eles, em grau menor ou maior, sentiam-se culpados. Haviam abandonado o Mestre na hora mais aguda de sua trágica paixão e morte de cruz. Pedro o havia negado. Somente algumas mulheres e João, o discípulo amado, permaneceram junto ao madeiro maldito da tortura. Com o coração tomado pelo sentimento de culpa, o encontro com o Ressuscitado deve ter sido marcado pela surpresa e estupefação. O perdão não era moeda corrente no tempo do "olho por olho e dente por dente". É certo que, em vida, o Mestre lhes ensinara a "oferecer a outra face" a quem os batesse. Mas uma coisa é ouvir falar do perdão e outra, bem outra, é sentir-se perdoado ou chegar à capacidade de perdoar. Aqui, mais do que em qualquer outra situação, a distância entre o falar e o agir é quilométrica. "Tra Il dire e Il fare c'è in mezzo Il maré", diz o provérbio italiano.

Não é difícil imaginar o reencontro de Pedro com Jesus, por exemplo. Este sabia que aquele o negara. Havia-o até mesmo predito. Podemos supor a vergonha do futuro apóstolo quando o Mestre, olho no olho, lhe pergunta por três vezes, referência às três negações: "Simão, filho de João, você me ama mais do que estes?" Evidente que Pedro amava Jesus e se entristece pela insistência da pergunta. Mas também é certo que a mancha da culpa ainda lhe ronda o coração. E qual não terá sido sua surpresa, alegria e deslumbramento quando, apesar da fuga e da negação - apesar do pecado - Jesus conclui: "Cuida das minhas ovelhas" (Jo 21,15-19). Também isso não era novidade. Jesus de Nazaré havia se mostrado complacente e misericordioso com a "mulher adúltera" (Jo 8, 1-11), com o "a samaritana" (Jo 4, 1-38), com o "filho pródigo ou pai misericordioso" (Lc 15, 11-32), até com seus torturadores na cruz: "Pai perdoai-lhes porque não sabem o que fazem" (Lc 23, 34)... E em tantas outras ocasiões. Mas, ainda desta vez, uma coisa é constatar a misericórdia dirigida aos outras, outra coisa, bem outra, é sentir-se objeto ou sujeito de misericórdia.

Individual ou coletivamente, as aparições do Ressuscitado e a experiência do Pentecostes deve ter calado fundo nas entranhas de cada um. Basta relembrar o caso de Maria Madalena, ao sentir Jesus chamá-la pelo nome. Com que sobressalto o ouve! Dos discípulos de Emaús, a quem se lhes "ardia o coração quando Ele nos falava das Escrituras". Ou de Tomé, o incrédulo, de João, o "discípulo amado", e assim por diante. Em outras palavras, Jesus Ressuscitado não fixa seu olhar sobre o pecado ou culpa, mas sobre a boa vontade de cada um dos amigos que com quem convivera: de acertar, de segui-lo, de testemunhá-lo, de anunciar a todos a Boa Nova do Evangelho. A grandeza do gesto, já demonstrado no alto da cruz, os torna a todos pequenos e humildes. E os impulsiona para a conversão mais profunda e a ação mais radical.

Daí o caráter de encruzilhada do Pentecostes. Até ali, os discípulos haviam se limitado a ouvir o Mestre, seguir-lhe os passos, guardar suas sábias palavras. A cruz trouxe o medo, o fracasso, a frustração e a impotência. Uns fogem para Emaús, outros se dispersam e outros, ainda, se fecham a sete chaves. Não é à toa que o Espírito vem não como silêncio, mas como barulho; não como luz, e sim como fogo; não como brisa, mas como vento impetuoso. Era necessário sacudir o torpor, a paralisia e o próprio sentimento de culpa desse pequeno grupo, embrião da futura Igreja.

A luz do espírito retroage sobre os acontecimentos do Jesus histórico. Cada palavra, cada gesto e cada ação ganha um novo significado. A trajetória do homem de Nazaré passa a ser lida com os olhos do Cristo Ressuscitado e do Espírito. Um exemplo pode ser tirado da pergunta que Tomé dirige a Jesus: "Senhor, nós não sabemos para onde vais, como podemos conhecer o caminho?" E aqui, na véspera de sua paixão e morte, Jesus é taxativo: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim" (Jo 14, 5-6) "Então se lhes abrirão os olhos e reconheceram Jesus ao partir o pão" (Lc 24,31a). Refaz-se uma amizade e convivência rompida pela tragédia!

No episódio de Emaús, analisado no seu conjunto, o caminho de ida é o mesmo da volta. Mas, enquanto a ida é marcada pelo abatimento e pelo desânimo, a volta é cheia de entusiasmo e ardor. De Jerusalém a Emaús, o peso da cruz dobrava-lhes os ombros e os joelhos, dificultando o caminhar; de Emaús a Jerusalém, ao contrário, caminhavam às carreiras, como quem vai com asas nos pés. O que ocorrera entre um momento e outro? Através da experiência de encontro profundo e íntimo com o Senhor, e usando os termos do Documento de Aparecida, "os discípulos medrosos se convertem em missionários ardorosos". É o Senhor, constata João! Ele apareceu a Pedro e a nós, dizem outros! Vimos o Senhor, confirmam as mulheres! Ele está vivo e está entre nós, constatam todos! Depois de experimentar a presença do Ressuscitado, do Jesus de Nazaré redivivo e glorioso, quem os haverá de detê-los que os afastará do seguimento de Jesus Cristo?

O apóstolo Paulo
A pergunta do item anterior será respondida pelo apóstolo Paulo: "Quem nos poderá separar do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Mas, em todas essas coisas somos mais do que vencedores por meio daquele que nos amou" (Rm 8,35-39). A experiência do encontro com Jesus Ressuscitado foi diferenciada para Paulo, que não fora discípulo de Jesus, mas não menos profunda e íntima. Vem narrada poeticamente no capítulo 9 do Livro dos Atos dos Apóstolos. Também neste caso, não se trata de um ato único e extraordinário, e sim de um longo e trabalhoso processo de conversão. Há quanto tempo o Saulo, o perseguidor da Igreja primitiva, não vinha sendo interpelado por interrogações à cerca do Crucificado e, segundo os rumores, Ressuscitado? A transição de Saulo a Paulo, de inimigo a seguidor do caminho de Jesus Cristo, da cegueira para a luz, não é mágica nem instantânea.

Basta constatar que após a experiência do caminho de Damasco, Paulo se retira para Tarso, sua cidade Natal, onde passa longos anos em silêncio. Quanta reflexão e quanto tempo de escuta para que o "judeu irrepreensível" chegasse à conclusão de que "tudo o que eu considerava como lucro, agora considero como perda". E o apóstolo insiste: "considero tudo uma perda diante do bem superior que é o conhecimento do meu Senhor Jesus Cristo. Por causa dele, perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e estar com ele" (Fl 3,7-9).

Se nos é permitido jogar com o conceito de Pentecostes, o de Paulo não foi inferior ou superior ao dos discípulos que haviam estado com Jesus de Nazaré. Ele também carrega uma carga de pecado e de culpa. Vê-se igualmente perdoado e amado por aquele que está perseguindo. Sua experiência com o Ressuscitado certamente está prenhe de surpresa, espanto e deslumbramento. "De fato, quando ainda éramos fracos, Cristo, no momento oportuno, morreu pelos ímpios. Dificilmente se encontra alguém disposto a morrer em favor de um justo; talvez haja alguém que tenha coragem de morrer por um homem de bem. Mas Deus demonstrou seu amor para conosco porque Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores" (Rm 5,6-8). A misericórdia e o amor de Deus, revelado por Jesus Cristo, em confronto com as debilidades, fraquezas e contradições do coração humano, ultrapassa todas as barreiras, todo conhecimento possível. Daí que "onde foi grande o pecado, foi bem maior a graça, para que, assim como o pecado havia reinado através da morte, do mesmo modo a graça reinasse através da justiça para a vida eterna" (Rm 5,20-21).

De ponta a ponta, as cartas de Paulo revelam essa experiência inédita e indescritível de ter sido amado apesar de pecador, culpado, perseguidor. Seus parágrafos respiram alegria e gratidão para com Aquele que o amou por primeiro, chegando ao ponto de exaltar as próprias fragilidades quando estas ressaltam a grandeza, a profundidade e a abrangência do amor de Deus: "E é por isso que eu me alegro nas fraquezas, humilhações, necessidades, perseguições e angústias, por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte" (2Cor 12,10). O mesmo se poderia dizer dos escritos e testemunhos de muitas outras pessoas, em especial do bispo de Hipona, Santo Agostinho, e suas Confissões.

Testemunhas da história
Numa ponte com o item anterior, Santo Agostinho bem poderia abrir o parágrafo a respeito da mediação que exercem sobre nossa fé outras testemunhas ao longo da história. De fato, como poucos, Agostinho experimentou na carne e na alma o gosto amargo do pecado, da devassidão e da culpa. Depois de percorrer inúmeros becos sem saída, ele mesmo relata sua profunda experiência de encontro com Deus. "Tarde te amei, oh Beleza tão antiga e tão nova... Trinta anos estive longe de Deus, mas durante esse tempo, algo se movia dentro do meu coração... Eu era inquieto, alguém que buscava a felicidade, buscava algo que não achava... Mas Tu te compadeceste de mim e tudo mudou, porque Tu me deixaste conhecer-Te. Entrei no meu íntimo sob Tua guia e o consegui porque Tu Te fizeste meu auxílio. Tu estavas dentro de mim e eu fora..."

Poucas descrições são tão ricas no sentido de apontar o contraste entre a criatura manchada pelo pecado e o Criador que o espera. Este como que desvia a atenção do pecado para conduzir o processo de conversão. Seu olhar torna-se o guia desse caminho longo e retorcido por uma trajetória humana sempre instável. A luz, ao penetrar no reino das trevas, revela e ilumina as sombras, diluindo-as. Descortina-se assim um novo horizonte de possibilidades. Novamente aqui, não há magia, não há saltos milagrosos, mas uma atitude de abertura para a ação do Espírito na vida da pessoa. Ao recusar o pecado, Deus abre os braços ao pecador. "Ninguém te condenou?... Eu também não te condeno, vai em paz e não peques mais!", diz Jesus à mulher adúltera (Jo 8, 1-11).

Não seria difícil, a esta altura, alongar-se sobre as testemunhas históricas que ajudam a sustentar a fé de cada um, tanto no interior quanto no exterior da Igreja. Pensemos rapidamente nos mártires das primeiras Comunidades Cristãs, na alegria de entregar-se ao Senhor; nos escritos dos Santos Padres, marcados pela santa ira contra as injustiças; na multidão dos santos, cujas pegadas vento algum é capaz de varrer; de modo particular, pensemos nos fundadores e fundadoras de inúmeras congregações religiosas e apostólicas, por exemplo, Dom João Batista Scalabrini, "pai e apóstolo dos migrantes", verdadeiro precursor do Concílio Vaticano II, ao lado de tantos outros.

Pensemos também nos mártires dos tempos atuais, fazendo desfilar sobre nosso olhar os rostos, os exemplos, a coragem e a dedicação de um Oscar Romero, de Madre Teresa de Calcutá, de Dom Hélder Câmara, de Irmã Dulce, do Papa João XXIII, entre tantos outros. "Pessoas de Deus", dizemos, quando deparamos com seu sorriso largo, seu semblante sereno e seus braços abertos. E pensemos, ainda, no martírio anônimo e sem calendário de milhões de pessoas que, no dia-a-dia, gesto a gesto, gota a gota, dão sua vida no serviço a Deus, à Igreja e aos pobres.

São os que, de acordo com o Livro do Apocalipse, "estavam diante do trono, dos quatro seres vivos e dos anciãos e cantavam um cântico novo. Era um cântico que ninguém podia aprender; só os cento e quarenta e quatro mil que passaram pela grande tribulação e foram resgatados da terra pelo sangue do Cordeiro" (Ap 14, 1-5). Mas são também os que, hoje em dia, opõem uma resistência teimosa, consciente e organizada a qualquer tipo de escravidão, de opressão e de tirania. Capazes de dar a vida pela justiça e o direito. A estes e a todos os que pereceram ao longo da trajetória humana na busca do Reino de Deus valem as palavras de Jesus: "Neste mundo vocês terão aflições, mas tenham coragem, eu venci o mundo" (Jo 16,33b).

E experiência pessoal
A experiência do encontro pessoal com Deus nada tem a ver com uma espécie de "milagrismo" espetacular, hoje tão em voga. Como se, num passo de mágica, Deus me falasse em sonho, ou através de um transe místico. Ou como se alguém tivesse uma ligação direta com o Espírito Santo e, automaticamente, passasse a falar línguas em nome de Deus. Conforme adverte Bruno Forte, em sua Teologia della storia, o Pai permanece um silêncio indecifrável, o Filho é o verbo que se faz carne e o Espírito Santo, o encontro. Para a experiência pessoal com Deus, necessitamos, por um lado das mediações apontadas e, por outro, da abertura ao Espírito. A distância incomensurável entre Deus e a linguagem humana impossibilitam um diálogo direto. A razão é incapaz de desvendar o mistério divino. Somente através da história e da linguagem humana, Deus pode revelar-se a cada um de nós.

Revela-se como defensor dos oprimidos na experiência de libertação, narrada pelo Livro do Êxodo. Revela-se como Pai amoroso e cheio de misericórdia na pessoa de Jesus de Nazaré, que "passou pela vida fazendo o bem" (At 10, 38). Revela-se no reencontro com os discípulos, que, abatidos pela cruz, se reerguem na experiência do Pentecostes e no encontro com o Ressuscitado. Revela-se na conversão e nos escritos de Paulo, que insiste em denominar-se apóstolo como os demais. Revela-se no testemunho dos santos e dos mártires, na sabedoria dos doutores da Igreja, na doação diária de muitas pessoas que tivemos a honra de conhecer, vivas ou já falecidas.

Mediante a experiência de outros, também nós podemos abrir o coração à ação do Espírito. De início, é preciso contar com momentos de escuridão, de secura, de deserto, de aridez, de silêncio e aparente indiferença por parte de Deus. Sem uma perseverança pertinaz, tais momentos podem nos afastar do caminho. Também não podemos esquecer que a iniciativa sempre parte de Deus. Faz-se forasteiro em meio aos dois discípulos que fogem de Jerusalém para Emaús, prepara a ceia para os doze... Ele é dom que se oferece, graça que inunda nosso ser, luz que nos faz enxergar onde não chega o olhar do coração humano. "Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo" (Ap 3,20).

Seguindo a lição de santo Agostinho, o olhar de Jesus, por uma parte, e o testemunho dos santos, mártires e "pessoas de Deus", por outra, constituem o guia que nos conduz à fonte. Com esse farol começamos a percorrer o labirinto intrincado e desconhecido de nossa própria alma. Aí encontraremos de tudo: dúvidas e interrogações, miséria e fragilidade, medo e angústia, infidelidade e contradições... Mas também uma grande vontade de acertar, de encontrar Jesus Cristo, de tê-lo como Senhor de nossa vida, de encontrar o caminho. Cabe aqui a advertência do apóstolo Paulo: "Para que eu não me inchasse de soberba por causa dessas revelações extraordinárias, foi me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás para eu espancar, a fim de que eu não me encha de soberba. Por esse motivo, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Ele, porém, me respondeu: ‘para você basta a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo seu poder'" (2Cor 12,7-9).

Em outra carta, Paulo é ainda mais explícito: "Não consigo entender nem mesmo o que faço; pois não faço aquilo que eu quero, mas aquilo que mais detesto (...). Portanto, não sou eu que faço, mas é o pecado que mora em mim" (Rm 7,15-17). Da mesma forma, quando o olhar de Jesus nos penetra, sua luz vai revelando, no interior de cada pessoa, pequenos nós a serem desatados, cantos obscuros que devem ser desvendados, blocos de gelo a serem derretidos, sentimentos que destilam veneno e que devem ser extirpados, vozes e fantasmas estranhos que ameaçam e devem ser eliminados, zonas selvagens que necessitam ser domesticadas, silêncios constrangedores (mutismo) a serem povoados... Jesus é a luz, e a luz não julga, apenas ilumina e revela. Sob seu esplendor, nós é que iniciamos um processo de autoconhecimento. Este, quando aprofundado pela presença misericordiosa de Deus, vai, pouco a pouco, nos libertando das sombras em que nos movemos. "Se guardardes a minha palavra, vós de fato sereis meus discípulos: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" (Jo 8,32).

De fato, enquanto o público aponta o dedo em riste sobre nossas chagas e as expões à claridade nua e crua do sol, o olhar de Jesus penetra não para nos envergonhar ou amedrontar, e sim para curar. Tal qual o bisturi do cirurgião, rasga o tumor para extirpá-lo. É luz que ilumina a nudez e a escuridão para dissolvê-la, Palavra viva que revela a inutilidade de tanto palavrório, silêncio reverente que nos predispõe à escuta. Em síntese, oração e contemplação que, progressivamente, nos eleva a uma esfera superior. Nesse processo, um longo período de trevas pode ser recompensado por um relâmpago de luz inesquecível; o deserto pode revelar a flor mais bela.

Mas, cuidado! A experiência de Deus necessita de cultivo permanente. Um instante fugaz de luz, embora profundamente iluminador, não elimina para sempre a escuridão. A flor, por mais bela que seja, murcha e fenece. Assim como o alimento de um dia não mata a fome do dia seguinte, o mesmo ocorre com a oração. Viemos de Deus, e na travessia pela face da terra, seremos seres irrequietos e sedentos, até repousarmos definitivamente na Casa de Deus, alerta Santo Agostinho. Nossa existência é marcada por uma dupla saudade: do passado e do futuro, do paraíso perdido e da terra prometida. Daí a necessidade de retornar sempre á experiência fundante. Esta é fundante não em termos de ritual passado e definitivo, mas no sentido de experiência primordial a ser novamente e sempre renovada. Por isso é que, na hora da sede, melhor que receber um copo de água, e descobrir o caminho da fonte.

Conclusão
Alguém pode objetar que, em tempos de intensos deslocamentos humanos e de crescente pluralismo cultural e religioso, os parágrafos acima estão centrados unicamente na experiência judaico-cristã. Tal objeção, embora correta em princípio, traz embutida uma armadilha. O verdadeiro ecumenismo e o verdadeiro diálogo inter-religioso não ocorrem na superfície das águas, mas nas correntes subterrâneas do ser; não no rosto e nos gestos, mas no diálogo de almas. Ou seja, ambos passam necessariamente pela experiência particular de cada caminho de salvação.

É preciso experienciar a fundo o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo, para citar apenas essas três experiências, para entrar em diálogo um com o outro. Uma planta que tentasse mudar suas raízes para oferecer uma nova qualidade de fruto, acabaria por não ter nada a colocar em comum sobre a mesa. Somente o cristão que vive profundamente sua fé será capaz de partilhar algo com outras experiências religiosas. Temos de descer ao fundo da raiz para tirar dela os nutrientes que vão dar vida à flor e ao fruto. Vale a máxima: o universal passa pelo particular e este abre caminho para aquele. Quanto mais particular e profundamente vivemos uma experiência humana, seja ela qual for, mais elementos universais acumulamos para somar com aqueles que, por sua vez, trazem a riqueza de outro tipo de experiência.

Descer à raiz do cristianismo, experimentar uma profunda intimidade com Jesus Cristo e com o Pai=Abba, viver intensamente a radicalidade evangélica com o amor a Deus e ao próximo - são requisitos essenciais para o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Quem se lança a fundo na própria experiência, tem o que partilhar; quem não o faz pouco ou nada tem a oferecer na mesa comum.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.

Fonte: www.provinciasaopaulo.com

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