Papa completa dez anos de pontificado. Mas há pouco a comemorar

 Após a morte de Bento XVI, a frente antirreforma se move para pressionar o papa à renúncia com o objetivo de influenciar o próximo conclave e impor uma parada.

Por Marco Politi

O pontificado de Jorge Mário Bergoglio tem dez anos e pouco há a comemorar. Nesta década não se mobilizou em torno do Papa Francisco uma maioria de episcopados e clero reformador, enquanto um núcleo consistente de conservadores e tradicionalistas conduziu sem pausa uma espécie de guerra civil contra o pontífice argentino. Entre os bispos moderados também existe um "partido do medo" que teme a "democratização" da Igreja.

CAGLIARI, ITALY - SEPTEMBER 22:  Pope Francis delivers his speech during a meeting with young people on September 22, 2013 in Cagliari, Italy. Pope Francis heads to Cagliari on the Italian island of Sardinia for a pastoral visit that includes celebrating mass at the Sanctuary of Our Lady of Bonaria. The Pope announced in May that he wished to visit the Marian Shrine of Bonaria or 'Good Air' because it gave his hometown of Buenos Aires its name. During his 10-hour visit to the city of Cagliari, the Pope will also meet workers, business representatives, prisoners, the poor, young people, leading representatives from the world of culture and the island's Catholic bishops.  (Photo by Franco Origlia/Getty Images)

Agora, depois da morte de Bento XVI, a frente antirreforma se move para pressionar o Papa a renúncia com o objetivo de influenciar o próximo conclave e impor uma parada. No entanto Francisco resiste. Já abriu novos canteiros de obras que colocam a Igreja Católica num caminho do qual é impossível voltar atrás. Na sobreposição das notícias cotidianas, muitas vezes corre-se o risco de perder a noção das mudanças já implementadas.

Francisco varreu da área a velha obsessão do catolicismo pelas temáticas sexuais. No pontificado bergogliano não se discute mais as relações pré-matrimoniais, a pílula, a fertilização assistida. A demonização da homossexualidade acabou: homossexuais e heterossexuais são todos "filhos de Deus", explicou Francisco. Um transexual espanhol com a namorada foi recebido no Vaticano. Os divorciados recasados ​​podem receber a comunhão negada a eles pelos papas Wojtyla e Ratzinger. Francisco iniciou uma lenta descentralização da Igreja Católica.

Sob certas circunstâncias, cada bispo do mundo pode declarar nulo um matrimônio sem que o assunto chegue a Roma. Em certas condições, os tribunais ao nível das conferências episcopais podem condenar definitivamente um padre pedófilo sem que o processo tenha que terminar no Vaticano. "Nem tudo deve ser decidido em Roma", declarou o pontífice argentino. Nos sínodos, as assembleias do episcopado mundial, foi introduzida a consulta prévia – que se gostaria fosse de massa – do laicato, ou seja, a análise das opiniões e desejos dos fiéis das paróquias e das dioceses.

Uma gigantesca operação de limpeza foi realizada no âmbito das finanças do Vaticano. O IOR foi arrumado, milhares de contas-correntes fechadas e barrado o caminho para as contas-correntes de políticos ou financistas obscuros. Os fundos a disposição dos dicastérios vaticanos foram centralizados e submetidos a um único controle. Regras precisas dizem respeito às concorrências e aos conflitos de interesses das pessoas nomeadas para cargos de responsabilidade. O processo aberto contra o cardeal Giovanni Angelo Becciu evidencia que não há “proteções” para quem administra mal o dinheiro dos fiéis. O ex-presidente do IOR, Angelo Caloia, foi condenado por lavagem de dinheiro e apropriação indébita agravada. Procedimentos rigorosos foram introduzidos para julgar bispos, cardeais e patriarcas por casos de pedofilia ou encobrimento.

A documentação sobre os abusos, conservada nos arquivos diocesanos, poderá ser colocada à disposição da justiça civil. Muitos bispos, culpados de encobrimento, foram afastados de suas dioceses. Dois cardeais foram eliminados do colégio cardinalício: o estadunidense Edward McCarrick (abusos contra menores), o escocês Keith O'Brien (relações com seminaristas). Quando o falecido cardeal George Pell foi citado em tribunal na Austrália, o Papa Bergoglio não invocou imunidade, mas o mandou para o seu país (onde foi posteriormente absolvido).

Vale lembrar que João Paulo II chamou a Roma o arcebispo de Boston, cardeal Bernard Law, quando surgiu a eventualidade de um processo nos Estados Unidos por sua sistemática ocultação de casos de abuso. Francisco lentamente começou a desclericalizar o governo central da Igreja Católica. Com a reforma da Cúria, os leigos (homens e mulheres) podem se tornar chefes de dicastérios e, efetivamente, agora o dicastério de Comunicação e a Secretaria de Economia têm prefeitos que são simples fiéis.

Pela primeira vez no Vaticano, mulheres foram nomeadas para cargos de primeiro escalão. Em vários dicastérios, inclusive na Secretaria de Estado, mulheres (religiosas ou leigas) ocupam o cargo de subsecretário. A Irmã Raffaella Petrini é secretária-geral do Governo do Estado do Vaticano. A Irmã Natalie Becquart é subsecretária do Sínodo dos Bispos. No Vaticano, onde antes só se viam batinas, entrou a normalidade da presença feminina.

Tudo isso significou uma gigantesca remodelação da Igreja Católica, seu funcionamento, sua representação. “O clericalismo – disse Francisco – é a perversão mais perigosa” da Igreja: porque é abuso de poder, abuso das consciência e abuso sexual. No entanto, as mudanças muitas vezes ocorreram por sobressaltos sucessivos (provavelmente também pelo temperamento do pontífice argentino) e em meio a uma batalha iniciada pelas forças conservadoras com uma sucessão de petições, acusações de heresia e pedidos públicos de renúncia.

A oposição tradicionalista impediu que a comissão encarregada de estudar o diaconato feminino chegasse a conclusões compartilhadas. Uma violenta oposição conservadora – na qual o ex-pontífice Ratzinger também foi envolvido – impediu Francisco de aprovar as decisões do Sínodo sobre a Amazônia favorável à introdução de padres casados ​​em situações de emergência.

Acima de tudo, porém, Francisco sublinhou um conceito central: não se é cristão porque se vai à missa no domingo, mas porque se vive concretamente o amor ao próximo, o empenho do bom samaritano, a espiritualidade das bem-aventuranças. As suas encíclicas Laudato si' e Fratelli tutti são um apelo a não olhar para o outro lado diante do sofrimento e da fragilidade. O documento assinado com o grão-imã da mesquita de Al Azhar rejeita qualquer fundamentalismo religiosos, exortando a ver no outro um "irmão para apoiar e amar". Não há lugar no horizonte de Francisco para guerras culturais entre católicos e mundo contemporâneo.

Tudo isso fascinou e continua fascinando também os não crentes ou seguidores de outras religiões. O sínodo mundial, que será realizado em Roma em 2024 sobre os temas da Igreja-comunidade e a participação e missão do catolicismo na era contemporânea, mostrará o quanto as ideias de Francisco tiveram penetração no episcopado.

Marco Politi é jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, em 12-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

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