Sonho de um mundo sem prisões

Campanha da Fraternidade, meio concreto para uma verdadeira conversão.

Por Gianfranco Graziola *

A palavra Quaresma suscita no imaginário coletivo religioso e social o conceito de “conversão” e a maioria associa este espaço temporal, que se repete ciclicamente a cada ano, a um processo individualista, personalista de mudança de vida, tendo como base os três elementos que encontramos até nos textos bíblicos: a oração, o jejum e a esmola. Estes elementos, que muitos pensam serem exclusivos de nossa experiência religiosa, na realidade são parte e estão presentes em muitas outras expressões religiosas. Isso nos ajuda a compreender que a oração, o jejum e a esmola, não são a única expressão do tempo quaresmal, eles não resumem e não esgotam o sentido muito mais profundo da Quaresma.

Alguns cristãos reduzem a Quaresma ao fato de se penitenciar, de se privar de algo, quase uma “autoflagelação” com o gosto de “autopunição” que toca o limiar do masoquismo. Na realidade, a Quaresma desde seu nascimento é um ato comunitário em que é dada maior atenção às situações de dor, de sofrimento, de exclusão existentes no seio da própria comunidade, chegando, mais tarde, a ser também o tempo de acolhida de quantos querem se tornar cristãos e discípulos, discípulas de Jesus.

A Idade Média acabou transformando o tempo quaresmal numa realidade intimista e negativa, cuja única preocupação era se distanciar da realidade terrena considerada como mundana e pecaminosa.

O Concílio Vaticano II, intuição profética de São João XXIII, continuado e levado ao seu término pela sabedoria de São Paulo VI, veio nos dizer que a realidade do mundo e das pessoas, sobretudo dos mais pobres, é parte fundamental da vida dos discípulos e discípulas de Cristo e da própria comunidade eclesial. (As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração - GS.1).

Mais tarde, a Igreja latino-americana através das Conferências de Medellín (1968), Puebla (1969), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) foi assumindo e concretizando os ensinamentos do Vaticano II para a América Latina. A Campanha da Fraternidade veio nos anos 60 ajudar nossas comunidades a melhor vivenciar a Quaresma, como um momento forte de reflexão sobre a realidade e o mundo latino-americano, transformando-se em seguida em momento privilegiado de evangelização, onde o anúncio é também promoção humana, e a promoção humana anúncio e por consequência, Evangelização. O tema fundamental e central da Campanha que, começa na Quaresma é a Fraternidade trabalhada e construída a partir das mais diversas realidades e situações vividas cotidianamente pelas pessoas, nos ajuda a concretizar àquela transformação pessoal e comunitária que chamamos de conversão ou METANOIA, que implica a mudança de atitudes e maneiras de vida e de relações.

Uma fraternidade que é Ecumênica

Desde o ano 2000, celebração do bimilenário da história da redenção, a Campanha da Fraternidade, de cinco em cinco anos, é assumida e vivida juntamente com outras confissões cristãs num espírito profundamente ecumênico que, este ano ao assumir o tema do DIÁLOGO como compromisso de amor com o lema tirado da carta aos Efésios “Cristo é a nossa Paz: do que era dividido fez uma unidade” [2,14a] nos desafia a dar passos concretos para superar o medo, o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na realidade a fé se vai desgastando e degenerando em mesquinhez (DAp. 12), para nos abrir, encorajados pela experiência dos discípulos de Emaús, pano de fundo de toda a Campanha, a realizar uma nova humanidade na construção da civilização do amor brotada na madrugada da Ressurreição.

A Campanha da Fraternidade 2021, Ecumênica, nos convida a percorrer o caminho das Emaús de nosso tempo, através de quatro paradas. A primeira para trocar impressões sobre os acontecimentos mais recentes. A segunda para enviar uma carta para as pessoas de boa vontade em um mundo cheio de barreiras e divisões. A terceira, após ter ouvido a palavra do desconhecido companheiro de viagem, com o coração a arder, enxergar nele o Cristo que é a nossa paz porque do que era dividido fez uma unidade superando e derrubando os muros da violência, particularmente contra a mulher, abrindo-nos ao ecumenismo no cuidado da nossa Casa Comum. E a quarta parada para que, como irmãos, juntos celebremos a vida e a missão comum de todos: o novo Pentecostes, expressão da fraternidade universal.

Talvez aqui caiba a pergunta sobre o que tem a ver a CFE com a Pastoral Carcerária, ou melhor, com o mundo do cárcere. Ela tem tudo a ver, particularmente quando se fala de Fraternidade e de Diálogo, compromisso de amor, derrubando os muros do ódio, da violência. O ódio e a violência são os dois esteios que aliados à veia punitivista do Poder Judiciário, para quem só existe o legalismo e o normativismo, sustentam os muros da exclusão e divisão que, em nome até da própria, lei e religião encarceram, torturam e matam.

A Campanha da Fraternidade Ecumênica vem por isso, num mundo polarizado, dividido, individualista fortalecer nosso sonho de um “Mundo sem prisões”, superando a mágica da teologia da prosperidade, derrubando muros de indiferença, ódio, para nos transformar na comunidade de Jerusalém, onde o ressuscitado reparte o Pão da fraternidade e faz respirar em nós o Espírito da manhã da ressurreição.

* Gianfranco Graziola, imc, é assessor teológico-pastoral da PCr Nacional.

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