Órfãos da vacina

Os resultados de tamanha inaptidão e incompetência não poderiam ser mais graves: centenas de mortes, não só dentro e às portas dos hospitais, mas também no interior das famílias.

Por Alfredo J. Gonçalves

Impossível não amargar um sentimento de abandono, impotência e orfandade diante do atual processo de vacinação contra a Covid-19. No Brasil, em maior ou menor grau, e de acordo com os estados e municípios, o trabalho segue a passos de tartaruga. Não pela negligência ou falta de preparo dos profissionais de saúde, acrescente-se logo, mas simplesmente pelo reduzido número de vacinas. No geral, sequer chegamos ainda a atingir 5% de toda população e, de entre os mais idosos, nem alcançamos a faixa retroativa dos 80 anos.

Foto: Vanessa Fernandes/G1 RR

Foto: Vanessa Fernandes/G1 RR

O fato é que os erros grosseiros e repetitivos de um negacionismo ativo – tanto no sentido de menosprezar a gravidade da pandemia e na desqualificação da imunização, quanto na demora em providenciar com a devida antecedência um número suficiente de doses junto aos diversos laboratórios – esses erros negacionistas cobram seu preço. E, uma vez mais, quem paga a conta é o conjunto da população. Ansioso e na esperança de atravessar o quanto antes o túnel escuro de quarentena e isolamento social, confiante nas potencialidades da ciência, o cidadão acaba tropeçando agora com os resultados tíbios e pífios de uma vacinação que deve se estender por vários meses, devido ao desgoverno das autoridades (i)responsáveis.

Desgoverno que, por outro lado, notória e reconhecidamente, começa já com o desembarque do coronavírus em território nacional, nos primeiros meses de 2020. Desde o início, com efeito, a pandemia foi classificada como uma simples “gripezinha” que afeta somente os mais “frágeis”, poupando os “atletas”. Ao mesmo tempo, as medidas de prevenção contra o contágio – uso de máscaras, quarentena e cuidados redobrados com a higiene – tudo isso era coisa de “maricas”. Como consequência dessa atitude, a bem dizer copiada dos Estados Unidos de Donald Trump, o Brasil figura em segundo lugar no trágico ranking de mortes, logo atrás de seu idolatrado norte-americano, caminhando a passos largos para a casa das 250 mil vítimas fatais.

O cenário inusitado e macabro de Manaus, capital do Amazonas, entre outras cidades e estados da região norte, revelam outra face desse desgoverno. No vórtice sem precedentes de uma crise sanitária mundial, o Ministério da Saúde deixou de ser dirigido por especialistas da área, para ser entregue a um general do exército, supostamente formado em logística. E foi precisamente desde o ponto de vista da logística que Eduardo Pazuello, em visita a Manaus, sequer foi capaz de prever a iminente necessidade do abastecimento de oxigênio, elemento indispensável para quem, devido às complicações da Covid-19, sofre de insuficiência respiratória aguda grave. Ao contrário, a mando do capitão, o general centrou sua missão “militar/sanitária/logística” na receita de cloroquina, não recomendada pelos médicos mais renomados.

Os resultados de tamanha inaptidão e incompetência não poderiam ser mais graves: centenas de mortes, não só dentro e às portas dos hospitais, mas também no interior das famílias. O índice de letalidade superou todas as expectativas. Alguns, mais afortunados conseguiram transferência para unidades de saúde de outras capitais do país. Pelas ruas de uma Manaus que parecia ter emergido de um filme de terror, os familiares, parentes e amigos, com a solidariedade cidadã, disputavam febrilmente os cilindros de oxigênio.

Frente a semelhante crime contra a saúde pública, que fazem os parlamentares vinculados ao governo? Tentam a todo custo evitar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a tragédia de Manaus, achando que podem contentar-se com alguns esclarecimentos pontuais do desastrado Ministro da Saúde. Este, como era de se esperar, não se saiu bem das explicações. Agravou a sensação de negligência como resultado do desgoverno que impera em Brasília. Que farão os ditos parlamentares? Já se colocaram em frenética agitação, não para buscar soluções para a saúde dos cidadãos, e sim para convencer seus comparsas a retirar a assinatura do pedido formal de CPI. No frigir dos ovos, quantos brasileiros seguem órfãos da vacina!

Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM.

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