O nó da política italiana

Alfredo J. Gonçalves *

O nó da política italiana chama-se Silvio Berlusconi. Recentemente o ex-Primeiro Ministro foi condenado pelo tribunal da Suprema Corte a quatro anos de prisão e ao afastamento dos «publici uffici» (da vida pública) por fraude fiscal, evasão de divisas. Condenação definitiva, sem possibilidade de qualquer recurso apelativo.

Passados longos anos de batalha, o processo resultou na firme decisão do Poder Judiciário, no sentido de evitar a prescrição e agilizar a setença final de condenação em última istância. Nem precisaria dizer que Berlusconi, além de ser um dos maiores empreendedores italianos no campo das comunicações, permenece como uma figura política de grande referência, na linha de uma ideologia acentuadamente conservadora. Líder incontestável do «Popolo della Libertà» (PDL - Povo da Libertade), à velha maneira dos políticos tradicionais e demagógicos, faz do próprio partido um verdadeiro baluarte ou tramplim com tríplice objetivo: manter-se na esfera do poder, estar sempre em evidência no cenário da política e escapar às sanções da legislação.

No Brasil, com os numerosos exemplos de «coronelismo, corrupção e patrimonialismo retrógrados», conhecemos bem esse tipo de prática política. Em lugar de servir ao partido e ao país, instrumentaliza um e outro para seus interesses particulares, familiares ou corporativos. No caso de Berlusconi, estão em jogo interesses não somente de caráter econômico ou político, mas também o de usar o Parlamento como refúgio seguro diante de seus crimes de evasão fiscal e de comportamento nada exemplar com mulheres, especialmente garotas menores de idade. Com excelentes e bem remunerados advogados, sempre conseguiu a prescrição da maioria de seus crimes, através de frequentes recursos às instâncias superiores. Coisa que desta vez não foi possível e a condenação tornou-se inevitável. Claramente aqui um projeto de poder substitui o projeto de nação. Mas, por ter mais de setenta anos, dificilmente o veremos na cadeia, podendo escolher entre a prestação de serviços sociais e a prisão domiciliar. Mas a condenação, em si mesma, representa um golpe nada desprezível num personagem acostumado a desfilar arrogantemente pelos palcos da vida pública, com perfeita imunidade e impunidade, protagonista de primeiro plano no cenário italiano, europeu e até mesmo mundial.

Até aqui, nada de novo! Por que então Berlusconi constitui hoje o nó da política italiana? Ocorre que nas últimas eleições as três forças principais - Popolo della libertà (PDL), Partido Democratico (PD) e Movimento 5 Stelle (Movimento 5 Estrelas) - praticamente empataram em número de cadeiras no Senado e na Câmara. Nenhuma delas conseguiu a maioria para uma governabilidade segura e sem entraves. Com isso, PD e PDL (respectivamente centro-direita e centro-esquerda) viram-se obrigados a uma aliança por uma forma de governo, ainda que instável e provisória, deixando de lado o Movimento 5 Estrelas, o qual, numa postuta mais à esquerda, recusa sistematicamente qualquer tipo de acordo. Aliás, governabilidade tornou-se a palavra mais recorrente dos últimos meses, tanto nos meios de comunicação quanto na mídia em geral e nas conversas de rua. Até porque, diante de uma crise econômica cada vez mais profunda e da pressão da Comunidade Europeia, a Itália necessitava de um governo sólido para reverter a situação e relançar o crescimento.

Mas a condenação de Berlusconi - presidente e líder absoluto do PDL, repetimos - jogou uma pedra nas águas já conturbadas da política italiana. O ex-Primeiro Ministro vem aproveitando o momento para pousar de vítima, organizando maniufestações em sua defesa, atacando a magistratura e tentando contrariar a decisão da Suprema Corte. Para o PD, hoje à frente do governo, torna-se cada vez mais constrangedora a aliança com o PDL e seu chefe, e cada vez mais insustentável uma posição de neutralidade diante da setença da Suprema Corte. Para piorar as coisas, o Movimente 5 Estrelas pressiona para agilizar o processo de expulsão de Berlusconi do Senado. O atual Primeiro Ministro, Enrico Letta, nomeado pelo presidente Giorgio Napolitano, vê-se premido de todos os lados, de mãos atadas, com extrema dificuldade de levar adiante o programa de reformas que o momento exige. O maior entrave encontra-se na posição ambígua e contraditória do condenado Berlusconi. Este, de fato, se por um lado insiste que o governo deve seguir adiante, que os interesses da Itália estão acima dos interesses pessoais e que é preciso mudar o rumo do país, por outro não deixa de mobilizar seus seguidores contra a magistratura, urlando pelos palanques sua inocência e a necessidade imediata de uma reforma judiciária, como prioridade número um da política nacional. Entretanto, durante tantos anos à frente do governo italiano, jamais ousou promover mudanças sérias e substanciais.

O fato é que o país tem outros problemas, bem mais urgentes e de interesse geral, tais como a recessão econômica e a consequente queda do Produto Interno Bruto em 2,4% no decorrer de 2012, a redução acentuada do consumo familiar, o desemprego (acima dos 12%) e particularmente do desemprego juvenil (beirando os 40%), a deterioração da indústria por inatividade, o uso incorreto dos recursos públicos, além de uma retomada generalizada da economia. Porém, na medida em que o líder do PDL (Berlusconi) acirra o enfrentamento com a magistratura e, ao mesmo tempo, acirra as emoções e a sensibilidade de seus próprios eleitores, apresentando-se como mártir de uma grande injustiça, bloqueia a ação do governo. Seu partido fazendo parte da aliança para retirar o país da crise, consciente ou inconscientemente, obriga os responsáveis pela retomada do crescimento a trabalhar com luvas de pelica.

Ou seja, interesses contrastantes se entrelaçam e se chocam no interior do próprio governo, voltando à tona os debates por uma governabilidade que se revela cada vez mais fragilizada. Prevêm-se semanas de tensões e conflitos pelos corredores e sessões dos poderes Legislativo, Jundiciário e Executivo, sem falar das intrigas entre eles e no interior do parlamento, contra e a favor de Berlusconi. Com razão Letta bate na tecla de uma estabilidade governamental, insistindo que é hora de trabalhar, de fazer, de ater-se aos fatos e às exigências mais urgentes da população. Mas continua pairando no ar a ameaça de renúncia por parte dos demais líderes do PDL, o que fará ir pelos ares o governo e a tão desejada governabilidade, retardando ainda mais uma tomanda de posição sempre postergada.

Por outro lado, resulta sempre mais evidente e flagrante a falta de progeto político do PDL. O partido - se é que se pode considerá-lo como tal - foi criado não tanto como base de sustentação de uma posição ideológica e programática, mas pura e simplesmente para defender os interesses do Cavaliere Berlusconi. No fundo, uma espécie de fã-clube de sua imagem pública e de suas aventuras financeiras (para deixar de lado as libidinosas).

Quando essa imagem é fortemente arranhada pela recente condenação, todas as energias do «partido» se voltam não para os probmemas da nação, e sim para a defesa pessoal do chefe. Berlusconi e o PDL sofrem de certo personalismo doentio e extremamente pernicioso para o futuro da Itália. Tanto se evidencia sua fragilidade ideológica que em lugar de Popolo della Libertà ultimamente vem aparecendo nas praças como Forza Italia (Força Itália). Sempre como instrumento de sustentação e agora de salvação do «nostro Cavaliere». Chega-se ao cúmulo de exigir que todos os aliados votem por sua manutenção no Senado, em troca da aliança pela governabilidade ; e mais ainda, de o propor como candidato a Primeiro Ministro, caso sejam necessárias novas eleições.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos, em Roma.

Fonte: Alfredo J. Gonçalves / Revista Missões

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