Ucrânia: negociar a paz

Em entrevista, o professor Mario Giro fala da guerra na Ucrânia e analisa o conflito a nível mundial.

Por Giordano Cavallari

O professor Mario Giro, membro da Comunidade de Santo Egídio, é ex-vice-ministro das Relações Exteriores da Itália, de 2013 e 2018, colaborador do jornal e do semanário Scenari, autor do recente livro “Trame di guerra e intrecci di pace. Il presente tra pandemia e deglobalizzazione” (Ed. SEB27, julho de 2022), dedicado à guerra na Ucrânia no quadro internacional global.

A entrevista foi concedida a Giordano Cavallari e publicada em Settimana News, 09-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

mario giroEis a entrevista.

Professor, a guerra na Ucrânia poderia ter sido evitada com uma negociação?

A guerra poderia ter sido evitada. Toda guerra pode ser evitada. O próprio Churchill – que certamente não era um pacifista – dizia que uma guerra adiada é muitas vezes uma guerra evitada. A política sempre tem à disposição os instrumentos para evitar os conflitos: negociando. É preciso querer isso, politicamente.

O que não funcionou?
Acima de tudo, não funcionou o diálogo entre as potências e, antes ainda, a gestão da mudança de cenário político internacional, após o colapso da União Soviética. O Ocidente esperava que a Rússia se alinhasse em poucos anos com o liberalismo econômico ocidental, enquanto a Rússia construiu um nacionalismo desconfiado e revanchista. O colapso da URSS foi um choque muito violento, gerando pobreza e ressentimentos. No fim, foi um bumerangue para o Ocidente. Políticos russos inescrupulosos construíram em tudo isso uma atitude agressiva, cultivada por muito tempo e que não foi neutralizada. A responsabilidade por essa guerra é totalmente da Rússia, mas nós, ocidentais, precisamos entender quais erros cometemos, qual insensibilidade tivemos e, acima de tudo, o que não fizemos que poderia ter evitado a guerra.

A guerra nunca é inevitável. O fim do comunismo foi vivido no Ocidente como uma vitória. Devíamos ter entendido que, do outro lado do muro, ele foi vivido de outra forma, como uma mudança, como se tudo o que se havia vivido até aquele momento não valesse mais nada. A pobreza se espalhou imediatamente, seguida por uma raiva surda. Nasceu o sistema dos oligarcas que – por si só – é um sistema hiperpatrimonialista, ao qual o Ocidente cedeu um amplo espaço, com consequências econômicas muito importantes, como vemos, por exemplo, na questão do gás. Consumou-se uma verdadeira ruptura cultural entre os dois mundos. O que temos diante dos nossos olhos são as consequências disso.

Em seu livro, você defende que as dinâmicas de guerra, uma vez desencadeadas, são difíceis de parar: os protagonistas tornam-se prisioneiros. Pode nos explicar?

As dinâmicas que são desencadeadas são as mesmas em todos os conflitos. Os conflitos armados sempre devem ser absolutamente evitados, porque são movidos por uma engrenagem interna. Quem dá início ao conflito sempre assume uma responsabilidade muito pesada, como, no conflito na Ucrânia, o presidente da Federação Russa Vladimir Putin. Mas o dramático é que nem mesmo ele é mais capaz de controlá-la, quaisquer que fossem suas intenções iniciais. Pôr a palavra “fim” nessa guerra torna-se cada vez mais difícil. Entra em cena o grave problema de qual é o nível de vitória ou de derrota aceitável: o problema de um líder – e de um governo – nessa situação é salvar a própria imagem. Putin ligou fatalmente o resultado de sua figura ao destino dessa guerra. Esse é um mecanismo infernal. Muito perigoso.

Na sua opinião, Zelensky também é, de alguma forma, prisioneiro de tais dinâmicas de guerra?

Zelensky é o chefe de um Estado soberano que sofreu uma agressão armada, que ele certamente não queria nem esperava. Ele não é responsável por essa guerra. A resistência ucraniana foi heroica. Dito isso, a narrativa da vitória que hoje predomina – com as palavras “retomaremos tudo e só depois negociaremos” ou a própria lei da “não negociação” – faz parte das dinâmicas da guerra permanente e ajuda a perpetuá-la, aumentando as probabilidades de desfechos ainda mais trágicos: até mesmo nucleares. É preciso negociar.

Até que ponto, na sua opinião, tal atitude do governo ucraniano é induzida ou fortalecida pelo Ocidente e, em particular, pelos Estados Unidos?

O Ocidente respondeu imediatamente ao pedido de armas de defesa por parte do governo ucraniano, mas agora é chamado urgentemente a se fazer perguntas de perspectiva. Como pôr fim a essa guerra? O que haverá depois da guerra? Essas são as perguntas que a política internacional necessariamente deve fazer. É preciso pensar em construir um amanhã enquanto ainda se está combatendo. Houve outros conflitos em que foi possível pensar na paz posterior, antes que a guerra acabasse. Nesse sentido, o Ocidente deve se fazer a pergunta-chave: como reconstruir na Europa a convivência com a Rússia no futuro? Certamente, não podemos ignorar esse grande país, o maior do mundo, rico em recursos naturais e culturais, cheio de problemas dentro e fora de suas fronteiras. Não podemos nos permitir uma guerra infinita com a Rússia. A questão das fronteiras desse país é um tema enorme, não apenas em relação à Ucrânia. Não podemos ignorá-lo. O Ocidente europeu não poderá se permitir uma guerra permanente com a Rússia, sob todos os pontos de vista: econômico e de segurança. Os Estados Unidos veem a Rússia de uma forma inevitavelmente diferente da Europa. Basta olhar para o mapa: entre os dois grandes países, existe um oceano no meio.

No livro, você escreveu sobre os reflexos da guerra na Ucrânia sobre a globalização, a ponto de chegar a falar em “desglobalização”. Pode nos explicar?

A crise da globalização precede a guerra na Ucrânia e nasce do desacoplamento entre Estados Unidos e China. A partir de certo ponto, a China assumiu uma atitude cada vez mais agressiva economicamente. Pequim se sente apertada demais em suas fronteiras, especialmente marítimas: quer ter aquele acesso global aos mares que só os Estados Unidos têm. Isso determinou uma reforma da política externa estadunidense com Obama e Trump: desengajamento na África e na Europa, e concentração na Ásia. Além disso, Trump acrescentou o fato de que a globalização não convinha mais aos Estados Unidos e ao Ocidente. Já estávamos vivendo uma fase de desglobalização. Isso obviamente também tem a ver com a Rússia e com sua escolha de guerra na Ucrânia. Obama havia definido a Rússia como uma potência de nível regional, não mais uma grande potência do quadro internacional, e isso não agradou aos russos.

Agora, com quem a Rússia quer negociar? Com os ucranianos? Nem tanto: a Rússia quer negociar sobretudo com os Estados Unidos, porque quer ser considerada uma potência propriamente dita, como na era da União Soviética. Um nível que os Estados Unidos de Joe Biden não querem reconhecer por enquanto. Estamos em uma situação em que a globalização econômica vive uma forte desaceleração, representada pelo encurtamento das cadeias econômicas. Vimos isso na fase mais aguda da pandemia, quando se brigava pelas máscaras na Europa. Vimos isso na corrida às vacinas e em sua distribuição subsequente. Os fatos colocaram em questão aquele ideal de mundo global no qual todos, em palavras, disseram que queriam acreditar. Com isso, parece ter terminado o sonho do multilateralismo. Acredito que ele deve ser conservado, revisto e atualizado. O mundo tornou-se mais multipolar: há mais polos em competição e em conflito entre si, e, por isso, é preciso mais diálogo, mais negociação, mais lugares de debate dialético, por mais difícil que seja.

Quais as consequências disso para o destino da democracia no mundo?

O discurso sobre a democracia é duplo. Por um lado, a democracia parece estar em crise, até mesmo dentro da própria Europa – pensemos na Hungria ou na Polônia– porque é um sistema que parece confuso, desordenado, lento, ineficaz para a tomada de decisões urgentes. Por outro lado, a guerra devolve, a meu ver, força e fascínio à democracia, porque os sistemas autoritários – aparentemente mais rápidos e eficientes – estão mostrando agora toda a sua rigidez, sua ineficiência e seus erros e horrores. É muito interessante observar o que ocorreu na cúpula de Samarcanda no mês passado entre China, Índia e Rússia. Parece que China e Índia disseram claramente à Rússia: “Vocês estão criando problemas para nós também”. O discurso sobre a democracia permanece em aberto. A democracia sofreu muitos golpes nos últimos tempos, mas não acabou. Pelo contrário, está mostrando sua resiliência.

Você também aborda as consequências da guerra na África: por que a África?

Porque o aumento dos preços, dos transportes, da energia, dos alimentos afeta muito mais violentamente a África. Porque a África é importante. Porque a África é o futuro da Europa. As minhas afirmações não são apenas de princípio, de natureza ética, segundo as palavras de Francisco. A África é o único continente onde ainda existe terra cultivável: são cerca de 200 milhões de hectares livres que não existem mais nos outros continentes. Estamos sobre explorando a terra, com as consequências ambientais que conhecemos. No Brasil, as florestas estão sendo queimadas para arar e cultivar. Na África também há florestas em perigo que devem ser protegidas, mas há também muita terra livre. Para alimentar o planeta. sem dúvida, há a necessidade da África.
Eu acrescentaria que a África se tornará o continente mais habitado – muito mais do que a Ásia – até o fim deste século. Será o lugar mais rico em mão de obra, o que significa mais riscos, em alguns aspectos, mas também e acima de tudo grandes oportunidades. A África é um continente estratégico para todo o planeta na nova versão pós-globalização. Devemos prestar muita atenção nela: como Itália, em primeiro lugar, porque nós a temos na frente das nossas costas. Seria bom encarar o discurso sobre a África não como um problema, mas de forma positiva, para não se deixar levar apenas pelos alarmismos, tanto migratórios quanto de estabilidade e segurança.

Enquanto isso, China e Rússia estão estendendo suas mãos, tanto econômicas quanto militares, justamente sobre a África. É assim mesmo?

De certa forma, podemos ser gratos à China por ter colocado a África de volta no centro do interesse mundial, pois os europeus a haviam abandonado. Desde 2000, a China vem investindo na África. Seguindo o exemplo, outros países estão voltando. Falta substancialmente a Europa. Falta a Itália. Para responder à pergunta, digo que a China investiu muito e deu muito à África. Agora, está dando muito menos e quer o retorno financeiro. Por outro lado, não existe na África o mito da China melhor do que o Ocidente. Os africanos sabem captar por conta própria as diferenças e as semelhanças. A Rússia, por sua vez, está tentando entrar na África com o que tem, ou seja, com os recursos energéticos, com o trigo e com as armas. No entanto, suas capacidades econômicas são limitadas. Não há apenas a China e a Rússia na África

Passemos para a parte mais propositiva de seu livro. Você escreve – e aqui está nos dizendo – que sempre é hora de negociar. Pode-se negociar na guerra na Ucrânia agora?

Sim, deve ser possível, necessariamente. A Europa deve falar a uma só voz. Os russos e os estadunidenses devem começar a discutir e a negociar uma nova estrutura e arquitetura de segurança na Europa. Uma nova é Helsinki é absolutamente necessária para o futuro da Europa e para o futuro do planeta. O papel da Europa – verdadeiramente a uma só voz – é fundamental.

Parece-me que a vontade de negociar só pode se manifestar com a disponibilidade a ceder algo, de ambos os lados ou de vários lados….

Neste momento, ninguém quer a negociação – entre os que competem in loco – justamente porque sabem que, colocando-se ao redor da mesa de negociações, deveriam ceder alguma coisa. É normal que seja assim. E também deveria ser normal se sentar à mesa, com espírito de negociação, pelo bem do povo e pela paz.

O Papa Francisco talvez seja mais criticado do que aplaudido no mundo, justamente porque fala demais sobre negociação e paz. O que você acha?

Bento XV também foi muito criticado quando disse que a Primeira Guerra Mundial era um “inútil massacre”, uma guerra civil entre católicos. Os cardeais arcebispos de Paris e de Viena abençoavam as bandeiras de guerra e eram contrários a essa posição do papa. Todo o século passado – e este também – foi caracterizado por uma teologia e por ensinamentos papais cada vez mais contrários à guerra como meio de resolução das controvérsias internacionais: pensemos na Pacem in terris de João XXIII nos discursos de João Paulo II, até chegar precisamente a Francisco e ao que ele escreveu sobre a guerra – definida como “rendição vergonhosa da humanidade” – nas encíclicas Fratelli tutti e Laudato si’. Eu sei que nem todos os católicos – exceto os protestantes e ainda menos os ortodoxos – compartilham essas posições. O Pe. Sturzo dizia muito bem que “é preciso chegar a abolir a guerra assim como a escravidão foi abolida”. Nesse sentido, a Igreja Católica e os papas estão na vanguarda do discurso sobre a paz, na qual eu me encontro totalmente. Portanto, o Papa Francisco não é o primeiro papa a ser criticado pelo seu discurso sobre a paz: antes dele, houve outros, criticados ou pelo menos vistos com desconfiança.

Podemos concluir com algumas notas de esperança de paz, justamente enquanto os dias parecem ficar cada vez mais sombrios?

Temos que acreditar nisso. Devemos crer na paz possível. Todos devemos trabalhar – como cristãos católicos ou não – para que, em nossos países, os respectivos governos deem passos decisivos rumo à negociação. Esse dia necessariamente deverá chegar: façamos com que ele se apresse.

Fonte: ihu.unisinos.br

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