Amamos porque Deus nos amou

“Vede que manifestação de amor nos deu o Pai: sermos chamados filhos de Deus.” (1Jo 3, 1)

Por Fábio José Bortoni Dias

Amamos porque Deus nos amou Biblia

O mês de setembro se tornou referência para o estudo e a contemplação da Palavra de Deus em todo o Brasil, já que, desde 1971, foi denominado como "Mês da Bíblia". Desde o Concílio Vaticano II, convocado em dezembro de 1961 pelo papa João XXIII, a Bíblia ocupou espaço privilegiado na família, nos Círculos Bíblicos, na catequese, nos grupos de reflexão, nas comunidades eclesiais.

Este ano, 2019, será o 48º ano em que a Igreja no Brasil comemora o Mês da Bíblia. Neste sentido, a Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dando continuidade ao ciclo do tema “Para que n’Ele nossos povos tenham vida” propôs para o Mês da Bíblia o estudo da Primeira Carta de João, com destaque para o lema “Nós amamos porque Deus primeiro nos amou” (1Jo 4, 19).

A Sagrada Escritura nos apresenta o quarto Evangelho e três cartas, atribuídas ao mesmo autor: João. Sem dúvida, das três cartas, a mais importante é a primeira. A primeira epístola é apresentada como uma Carta encíclica destinada às comunidades da Ásia, ameaçadas pelos dilaceramentos das primeiras heresias e pelo gnosticismo. João nela condensou o essencial de sua experiência com o Ressuscitado; partindo de temas paralelos sucessivos (luz 1,5s; justiça 2.29s; amor 4,7-8s; verdade 5,6s), que mostra a ligação íntima que existe entre nosso estado de filhos de Deus e a retidão da nossa vida moral. A Carta de João traz uma das afirmações mais impactantes de toda a Bíblia: “Deus é amor”. (1Jo 4, 8.16)

João é o hagiográfico que melhor soube sistematizar e anunciar o Amor de Deus, transformado em ação concreta por seu Filho Jesus. Ao morrer na Cruz, Jesus nos mostrou o ápice desse Amor Paternal. Deus não tinha necessidade de criar o ser humano, mas o amor entre as pessoas da Santíssima Trindade é tão grande que o derramamento desse amor criou o homem. Se ele é fruto desse amor, que é essência de Deus, o ser humano é o ser interno de Deus, que habita o seu externo. Estudar a primeira Carta de João é estudar esse amor, transformado em ação concreta, ou seja, em luz e justiça ao homem. “Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus”. (1Jo 4, 7)

Para João, o amor (ágape) não é uma ideia, sentimento, princípio, ou ideal, mas uma ação, um reflexo da ação de Deus em Cristo. O amor é definido pelo ato de Deus em enviar Cristo, e por Cristo voluntariamente ter entregado a sua vida pelo outro (1Jo 3, 16-18). Tal amor é o mandamento fundacional da comunidade joanina, recebido desde o início (1Jo 2, 4-5; 3, 23; 5, 3). O amor de Deus é manifesto não meramente no reino espiritual do mundo celestial ou no reino psicológico de corações individuais, mas no mundo da humanidade da qual Jesus histórico foi um participante. Cristo veio não apenas “pela água” (capacitada pelo divino Espírito Santo que veio sobre ele no batismo), mas “pelo sangue” (ele morreu uma morte humana real na cruz). A realidade deste evento salvífico é evidente para os crentes nos sacramentos do Batismo e da Eucaristia.


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A primeira Carta de João possivelmente foi escrita na cidade de Éfeso, que atualmente se chama Selçuk, localizada na Turquia, perto de onde o rio Caistro desembocava no Mar Egeu, na costa ocidental da Ásia Menor, onde havia um porto artificial. Esse porto, a exemplo de outras cidades portuárias da época, fazia de Éfeso uma cidade importante e estratégica, pois atraia povos de várias nacionalidades. Era uma cidade com uma multiplicidade religiosa muito grande, havia ali muitos santuários e templos, o mais importante com certeza, era o templo dedicado à deusa Ártemis. A diversidade de cultos aos deuses pagãos atraiu para Éfeso falsos profetas e magos, o que provocou desentendimentos na comunidade cristã. Nessa cidade, a Boa Nova do Ressuscitado foi semeada e espalhada, enfatizando o amor ao próximo (cf 1Jo 2,3-11). Um amor que não faz acepção de livres e escravos, pobres e ricos, judeus e pagãos, todos são filhos de Deus.

Os falsos profetas e magos pregavam no meio do povo da comunidade cristã, uma heresia conhecida como movimento gnóstico. Para os profetas e mestres gnósticos, a salvação estava no conhecimento, desligado da vida prática. Somente por meio da iluminação mental e espiritual a pessoa entrava em comunhão com Deus verdadeiro. Dessa forma a fé cristã era substituída pelas buscas espirituais sem o seguimento do evangelho de Jesus Cristo. Esse conceito gnóstico é herança da filosofia grega, onde se pregava que o corpo é o aprisionamento da alma, após a morte dos sábios, as suas almas vão para o mundo do conhecimento, viver a plenitude da sabedoria. De acordo com essa doutrina helênica, a salvação vinha pelo conhecimento, se a salvação vem pelo conhecimento se pode cometer todos os tipos de imundícies, libertinagem e corrupção. João vai rebater essa doutrina. Em sua primeira Carta, podemos destacar: “Quem diz que conhece a Deus, mas não trata de guardar seus mandamentos é mentiroso; nesse não está a verdade” (1Jo 2, 4). Alguns membros da comunidade se afastam para justamente viver a vida que vem do Maligno, rejeitando os ensinamentos de Cristo. Atitudes de alguns membros de deixar a comunidade leva João a escrever, identificando os anticristos.

Assim como o livro dos Provérbios no Antigo Testamento e Carta de Tiago no Novo Testamento, os conteúdos da primeira Carta de João não estão arranjados em um esboço claramente reconhecível.

Apresento um esboço que, na minha opinião, é o que melhor possibilita uma leitura da primeira Carta de João:

1,1-4 Prólogo: O Verbo da Vida
1,5-2,17 Parênese: (exortação moral): comunhão com Deus, suas bênçãos e riscos
2,18-27 Exposição doutrinal: a negação do anticristo de que o Cristo é Jesus
2,28-3,24 Parênese: vinda do Senhor e a guarda dos mandamentos
4,1-6 Exposição doutrinal: distinguir a verdade do erro
4,7-5,4 Parênese: amor de Deus, amor pelos irmãos e irmãs da comunidade
5,5-12 Exposição doutrinal: o testemunho da água, sangue e Espírito
5, 13-21 Epílogo: a vida eterna e os obstáculos.

A centralidade da primeira Carta de João é sem dúvida, rebater o gnosticismo e nos apresentar um Pai que ama seus filhos e em virtude desse amor, nos enviou o seu Filho, o Logos, para nos revelar o Pai e sua essência. E aquele que consegue transformar esse amor paternal em um amor fraternal, amando o seu próximo como a si mesmo e transformando tudo isto em obras, está no Pai e o Pai está nele. Viver o amor de Deus e corresponder a esse amor é viver o Reino de Deus, pregado por Jesus, um amor escatológico, pois aquele que vive esse amor já habita o Reino dos Céus.

Fábio José Bortoni Dias é teólogo, professor do curso de Teologia da Região Episcopal Santana, São Paulo.

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