Teologia da Libertação e Teologia da Misericórdia

A misericórdia adquire um rosto familiar, tanto de parte de quem a oferece quanto de parte de quem se beneficia.

Por Alfredo J. Gonçalves*

Digamos que a primeira, Teologia da Libertação (TdL), tem como pontos de referência indiscutíveis a experiência fundante do Povo de Israel, de uma parte, e o movimento profético, de outra. Evidente que tudo isso converge para a Boa Nova de Jesus Cristo, direcionada primordialmente aos pobres e oprimidos. A Teologia da Misericórdia (TdM), por seu lado, fundamenta-se de modo particular no sermão da montanha (ou da planície) e na figura de Jesus como o Bom Pastor em busca da “ovelha perdida”. Além disso, confere um peso todo especial às dimensões do perdão e da compaixão do Nazareno diante de pessoas feridas e concretas que lhe cruzam o caminho.

logooficialanomisericordiaA saga da libertação do Egito narrada pelo Livro do Êxodo – passagem da escravidão à Terra Prometida, através do Mar Vermelho e do deserto – constitui uma das minas mais escavadas pela TdL. De outro lado, o movimento profético, particularmente em Is 61,1-3a, faz a ponte entre a antiga e a nova aliança. De fato, ao iniciar seu ministério público na cidade de Nazaré, em Lc 4,14-14, o Mestre reporta-se justamente àquela passagem de Isaías para pavimentar o alicerce do que alguns estudiosos chamam o programa de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-se para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor”. Resulta notório a centralidade do conceito de libertação, entendido como superação de determinadas condições sociais.

Por outro lado, de um ponto de vista geral, são a bem-aventuranças, as quais, na narração de Lucas, vêm acompanhadas das maldições (Lc 6,20-26), juntamente com as parábolas do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) e do Bom Pastor (Jo 10,21), que pavimentam o alicerce da TdM. Entretanto, percorrendo detalhadamente as páginas dos relatos evangélicos, vemos a misericórdia traduzir-se em inúmeros gestos e palavras de Jesus dirigidos a pessoas bem concretas: a cura dos leprosos e dos cegos, do paralítico e da encurvada; a atenção à mulher que sofria de fluxo de sangue e a outra que havia perdido o filho; o perdão a Pedro, Madalena e aos que o crucificavam; a compaixão diante das multidões famintas, ou “cansadas e abatidas”...

A misericórdia adquire um rosto familiar, tanto de parte de quem a oferece quanto de parte de quem se beneficia. O olhar de Jesus reflete a face oculta do Pai, ou melhor, revela o mistério amoroso de Deus.
O problema está em que, não raro, ao se cruzarem, a TdL e a TdM se chocam, se opõem e se desencontram. Enquanto uma tem como horizonte privilegiado a cruz social e política, através da opção preferencial pelos pobres, por exemplo, a outra concentra sua atitude sobre a cruz pessoal, tentando sanar as feridas que indivíduos e famílias acumulam nos embates diários. Não poucas vezes, implícita ou explicitamente, nas atividades da solicitude pastoral, uma excluía a outra. Em tal caso as duas, seja na análise que na ação, acabam por caminhar em vias paralelas. A própria realidade, porém, desmente essa visão dualista e esquisofrênica. Os fatos encarregam-se de mostrar que a cruz social e política agrava o peso das cruzes individuais ou familiares. E inversamente, a soma ou multiplicação das cruzes individuais e familiares conferem maior gravidade e maior visibilidade à cruz social e política. Em outras palavras, ambas as dimensões – social/política ou pessoal/familiar – se entrelaçam e se complementam reciprocamente. Cabe portanto a pergunta: onde está a sabedoria? O velho Aristóteles dizia que “a virtude está no meio”.

Não se trata de buscar, de forma artificial e mecânica, um meio termo que satisfaça a todos. Ao contrário, trata-se de ler as cruzes pessoais e familiares no contexto mais amplo e histórico da cruz social e política. De outro lado, ao analisar esta última, não podemos deixar de lado rostos, nomes e pessoas com trajetórias próprias, únicas e irrepetíveis. Uma solicitude pastoral integral e de conjunto deve estar preparada não só para compreender a complexidade dinâmica de ambos os aspectos, mas sobretudo para agir de forma coerente e consequente, mirando ao mesmo tempo as feridas particulares, de um lado, e as injustiças, assimetrias e desigualdades sociais, de outro. A caridade evangélica não pode excluir nem umas nem outras. Exemplo concreto dessa sinergia temos na trajetória pessoal, ministerial e missionária do Papa Francisco.

*Alfredo J. Gonçalves, cs, é Superior dos Carlistas, Roma, Itália.

Deixe uma resposta

4 × cinco =