O importante é que ninguém deixe de fazer política

O que está acontecendo no Brasil tem prestado um enorme serviço para mostrar até onde essa doença, chamada corrupção, pode corroer a vida do país, diz o arquiteto e ex-vereador pelo PT-SP, Francisco Whitaker.

Por Patricia Fachin

“Dentro dessa perplexidade geral que estamos vivendo, estamos tendo que dizer que precisamos fazer o que é possível agora, mas com uma certa direção, por exemplo, no sentido de fazer com que a corrupção seja realmente superada, que passemos a caracterizar esse caminho da corrupção como o pior caminho para a vida das empresas, das pessoas e dos partidos. A corrupção é uma doença que gangrena a vida social e as instituições”, diz Francisco Whitaker, ao comentar o atual momento brasileiro.

Para ele, a superação das crises política e econômica que o país enfrenta depende de uma “visão de conjunto rumo a um tipo de desenvolvimento que não seja baseado pura e simplesmente no crescimento econômico”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Whitaker retoma o pensamento do economista e dominicano francês Louis-Joseph Lebret, que influenciou parte da esquerda brasileira nos anos 1960, como uma fonte para enfrentar os atuais desafios do país, entre eles a questão da descentralização das cidades e a superação das desigualdades.

“Lebret fazia uma análise do problema das necessidades. Segundo ele, havia as necessidades básicas, que têm que ser atendidas de qualquer maneira pelo governo; as necessidades de comodidade, que podem ser atendidas desde que as primeiras sejam atendidas; e as necessidades de superação, que fazem com que se viva em um patamar de humanidade maior. Ele dizia que desenvolvimento é a passagem de uma fase menos humana para uma fase mais humana, e é esse sentido humano que pode ser aperfeiçoado sempre, em uma perspectiva de solidariedade, de vida coletiva respeitosa e isso levaria, de fato, a felicidade às pessoas”, resume.

chicowhitakerFrancisco Whitaker foi presidente da Juventude Universitária Católica – JUC em 1953-1954, assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB no 1° Plano Pastoral de Conjunto em 1965-1966, e assessor da Arquidiocese de São Paulo e da CNBB de 1982 a 1988. Foi vereador, pelo PT, de São Paulo-SP. É sócio-fundador da Associação Transparência Brasil e foi professor no Instituto de Formação para o Desenvolvimento de Paris e no Instituto Latino-Americano de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ilpes/ONU).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor está analisando o atual momento político brasileiro?
Francisco Whitaker – Este momento está provocando, em muitas pessoas, uma enorme perplexidade; é o mínimo que se pode dizer. Objetivamente, esse impeachment foi imaginado pelos perdedores das últimas eleições, que não aceitaram o resultado e se aproveitaram de uma fragilização do governo para montar uma operação para tirá-lo - a Dilma e o PT chamam essa operação de golpe. Efetivamente é um tipo de intervenção não militar - como em geral são os golpes -, que ultrapassa os limites constitucionais. Portanto, a partir do momento em que Michel Temer passar de interino a presidente de fato - se a presidente Dilma for efetivamente destituída no fim do mês de agosto - toda a política econômica e social dos perdedores será implantada no Brasil.

Estamos vivendo um quadro de certa perplexidade e impotência, porque essa nova estrutura de poder que se implantará não poderá atuar como se os outros tivessem desaparecido; haverá uma resistência muito grande e isso criará enfrentamentos e mobilização social, apesar de que ela não chegará mais ao nível que chegou nos momentos mais agudos. Com isso estamos na expectativa de ver no que dará tudo isso.

Em alguns momentos se falou que a melhor solução teria sido que Dilma aceitasse a necessidade de uma Emenda Constitucional para convocar novas eleições. Se é o resultado da eleição que está sendo posto em dúvida, a população deveria dizer o que prefere, porque o país se dividiu, nitidamente, em dois lados, embora em cada lado existam setores variados.

Fim do governo petista

O PT terminará o governo de uma maneira pouco feliz, porque esse governo não é o governo da Dilma, é o governo de um projeto que vinha sendo implementado desde que o Lula foi eleito. Aliás, diga-se de passagem, muitas mudanças propostas por Lula não foram feitas, pelo contrário, algumas dessas políticas caberiam perfeitamente na continuidade dos governos anteriores.

Vou mencionar dois exemplos na área ambiental: um deles é a questão dos transgênicos e outro é a questão nuclear. O Brasil estava livre de energia nuclear há muito tempo, por diferentes razões, e, de repente, foi exatamente o governo Lula que fez renascer essa aliança, retomando a construção de Angra III. Além disso, agora estamos vendo que os dirigentes da Eletronuclear estão presos. De outro lado, no processo de diminuição da desigualdade, a política do Programa Bolsa Família não teve o mesmo peso que a política da dívida.

Agenda econômica

Tanto o governo Lula, quanto o governo Dilma, quanto os governos anteriores de Fernando Henrique e de Itamar Franco, estão baseados em uma perspectiva econômica que precisa ser combatida, que é a perspectiva de centrar a problemática do país no crescimento econômico, como se tudo se resolvesse com o crescimento econômico.

"O importante nessa altura dos acontecimentos é que ninguém deixe de fazer política"

IHU On-Line – Diante desse quadro, que alternativas e rumos o senhor vislumbra para o país?

Francisco Whitaker – Neste momento se fala cada vez mais em uma reforma política, mas ela tem que ser votada pelo Legislativo, que não é capaz de ter uma visão de mudança necessária. Dentro dessa perplexidade geral que estamos vivendo, estamos tendo que dizer que precisamos fazer o que é possível agora, mas com uma certa direção, por exemplo, no sentido de fazer com que a corrupção seja realmente superada, que passemos a caracterizar esse caminho da corrupção como o pior caminho para a vida das empresas, das pessoas e dos partidos. A corrupção é uma doença que gangrena a vida social e as instituições.

Temos que ter um projeto nacional, que é um projeto que, infelizmente, também não se constrói do dia para a noite. Estou muito empenhado na questão do Legislativo, e apesar da confusão geral, conseguimos avançar no ponto do financiamento das campanhas, que era a raiz da corrupção no setor público, principalmente. Temos que trabalhar muito na educação popular para que as pessoas saibam que têm todo o poder nas mãos na hora de votar e que não podem colocar qualquer pessoa como se fosse representante de qualquer líder do parlamento. Ou seja, temos que melhorar as escolhas e os critérios e isso significa um trabalho enorme na educação política, de conscientização política, na qual as instituições mais comprometidas com a democracia, com o avanço do país e com o bem comum, têm que estar implicadas; é um papel que a igreja teria que fazer. A igreja católica teria que assumir com muito mais vigor o trabalho em torno da conscientização da população sobre o poder do voto e a necessidade de votar bem.

Outro tema que precisamos atacar é o número de mandatos: temos que acabar com os profissionais da política, com a profissionalização da representação; temos que fazer com que as pessoas estejam lá por dois mandatos consecutivos, depois o quadro precisa ser renovado.

Eu fui do PT e acho uma pena o que aconteceu com o partido, que, pragmaticamente, para ganhar a eleição e para se manter no poder, assumiu todas as distorções da cultura política brasileira, que é a cultura do toma lá dá cá, da compra de votos desde dentro do parlamento, até na relação do Executivo e do Legislativo, na relação com os eleitores, inclusive a ponto de financiar suas campanhas através do processo de coleta de recursos junto às estatais. Isso tudo significou uma mudança muito grande no partido.

Visão de conjunto

Então, diria que há milhares de coisas a se fazer: temos que ter uma visão de conjunto rumo a um tipo de desenvolvimento que não seja baseado pura e simplesmente no crescimento econômico, que abandone certas opções que podem levar, não só o Brasil, mas a humanidade, ao desastre. Nesse sentido, o problema do meio ambiente já se tornou visivelmente uma grande preocupação mundial, assim como o problema do enfrentamento profundo da questão da desigualdade; o problema das migrações é um problema de muita desigualdade regional, intercontinental; o problema do terrorismo é um problema de dominação de um país sobre os outros, ou seja, são problemáticas mundiais que estão nos levando a um beco sem saída.

Mas o importante nessa altura dos acontecimentos é que ninguém deixe de fazer política. Um dos meus principais inspiradores políticos foi o padre Lebret [1], que quando reexaminava o seu exame de consciência, dizia que “o pior pecado que existe é o da omissão, a omissão diante do sofrimento, da miséria e da desigualdade”. Então, nós temos aí um panorama mundial misturado com avanços tecnológicos maravilhosos, inacreditáveis, que dão a impressão de que o mundo é maravilhoso, quando, na verdade, por trás disso tudo, na raiz, na vida concreta das pessoas, estamos vivendo verdadeiras tragédias pelo mundo afora.

"O Brasil vai mudar, mas vai depender muito de como a própria população irá sentir tudo isso que está acontecendo, ou seja, se ela vai sentir que o sacrifício vale a pena"

IHU On-Line - Como avalia que está se tratando a questão da corrupção no país?

Francisco Whitaker – Esse é um tema pelo qual me engajei muito quando fui vereador em São Paulo. Tive a oportunidade de estar com outros que tomaram esse como um ponto básico de discussão, já que nós vivemos diante de um sistema totalmente estruturado. Antes desse escândalo que estamos assistindo, já havia os clubes de empreiteiras trabalhando para acertar entre elas a distribuição de lotes, para que cada uma ganhasse um pouco, e assim elas se acertavam para fraudar as licitações e concorrências. O ataque que está se fazendo à corrupção está abrindo as vísceras do sistema e isso é muito importante. Estamos vendo que não é um problema só de uma ou duas pessoas corruptas, ou do “famoso rouba mas faz” de vários políticos, que dizem isso com toda “cara de pau”.

Acredito que o que está acontecendo no Brasil tem prestado um enorme serviço para mostrar até onde essa doença, chamada corrupção, pode corroer a vida do país. Espera-se que as instituições que participaram disso, como o Ministério Público, o Judiciário e aquela parte do Congresso que está bastante preocupada com essa questão - porque não é todo mundo que é bandido -, consigam superar o partidarismo e consigam fazer com que o Brasil, depois desse episódio todo - desde o Mensalão, que pegou a cultura política, até a Lava Jato, que pega a cultura econômica na área do empresariado -, viva uma situação diferente. O Brasil vai mudar, mas vai depender muito de como a própria população vai sentir tudo isso que está acontecendo, ou seja, se ela vai sentir que o sacrifício vale a pena.

IHU On-Line - Um personagem que influenciou parte da esquerda brasileira foi o padre dominicano francês Louis Joseph Lebret. Pode nos contar um pouco sobre a trajetória dele e de que modo influenciou a esquerda?

Francisco Whitaker – Estão se completando 50 anos da morte de Lebret. No Brasil e em outros países das América Latina, como Uruguai e Chile, o pensamento dele teve uma influência muito grande, porque influenciou toda uma geração de jovens dos anos 1950. Os seus livros, em 1950, já faziam uma distinção entre crescimento econômico e desenvolvimento. No Brasil, até hoje, a maioria dos economistas não está nem aí para essa discussão: a luta é entre desenvolvimentismo e antidesenvolvimentismo, mas ninguém coloca a questão do que isso significa de modo prático.

Lebret inclusive fazia uma análise do problema das necessidades. Segundo ele, havia as necessidades básicas, que têm que ser atendidas de qualquer maneira pelo governo; as necessidades de comodidade, que podem ser atendidas desde que as primeiras sejam atendidas; e as necessidades de superação, que fazem com que se viva em um patamar de humanidade maior. Ele dizia que desenvolvimento é a passagem de uma fase menos humana para uma fase mais humana, e é esse sentido humano que pode ser aperfeiçoado sempre, em uma perspectiva de solidariedade, de vida coletiva respeitosa e isso levaria, de fato, a felicidade às pessoas.

Ele escreveu um livro que foi fundamental para nós, chamado Princípios para a ação (Brasil, Coleção: Economia E Humanismo; São Paulo: Edições Sal, 1952), que tratava de como agir politicamente, ou seja, de se comprometer, de trabalhar em equipe e de não querer competir, mas cooperar. Havia outros livros mais especificamente ligados à problemática econômico-social, como o livro Suicídio ou Sobre-vivência do Ocidente? (São Paulo: Duas Cidades), em que já se previa um pouco o tipo de crescimento que estava se fazendo e o tipo de globalização baseada no crescimento econômico. Mas infelizmente, nos dias de hoje, Lebret está muito esquecido.

"As pessoas ainda pensam que o poder tem que ser centralizado, autoritário, e quem está no centro do poder não admite ceder um pouco para os outros, mas isso acaba diminuindo a eficácia e é extremamente negativo para o conjunto"

IHU On-Line - Lebret veio pela primeira vez ao Brasil em 1947 para dar um curso de introdução à economia e humanismo e outro sobre introdução ao marxismo na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Em que consistiam esses cursos?

Francisco Whitaker - Na França, depois da Segunda Guerra, em 1945, houve um grande enfrentamento entre forças querendo dominar o país – era um enfrentamento entre o partido comunista e os não comunistas, entre os quais havia muitos cristãos. Logo, não era só uma luta pelo poder, mas uma proposta política de sociedade, embora a proposta socialista-comunista fosse totalmente vinculada à experiência da União Soviética. Lebret e outros da geração dele, àquela altura, entre 1945 e 47, após a Guerra, teorizaram e criaram o que chamaram de economia humana, isto é, uma visão econômica que não era a visão marxista, mas que aprendia muito dos mecanismos que Marx tinha identificado no sistema capitalista, porém dava uma virada no sentido de centrar todo o processo econômico nas necessidades humanas – aquilo que falei anteriormente sobre a questão das necessidades.

Essa economia humana foi chamada de Economia e Humanismo. Ele pretendia que se criasse um movimento de humanismo e se criou. No Brasil, no Uruguai e no Chile, onde Eduardo Frei [2] foi eleito pela Democracia Cristã, iniciou-se um movimento desse tipo. Lebret estava muito vinculado à Democracia Cristã, fazia muita propaganda sobre o tema – isso é algo que é preciso rever, pois depois se mostrou que ela também podia ser engolida pelo sistema. De qualquer maneira, o movimento Economia e Humanismo influenciou, de modo mais leve, países como o Peru e Colômbia. Ele também fez trabalhos de pesquisa de necessidades e possibilidades em outros países do mundo, como Vietnã e Senegal.

Lebret veio ao Brasil pela primeira vez em 1947, logo depois da Segunda Guerra. Ele era dominicano e chegou aqui pela mão de dominicanos, como Frei Romeu Dale [3], que depois foi assistente da JUC [Juventude Universitária Católica] nacional. Então, ele ministrou esse curso na Escola de Sociologia Política de São Paulo. Foi um curso de Introdução à Economia Humana ou Introdução à Economia e Humanismo e também um curso de Introdução ao Marxismo. Isso tudo aconteceu no período da Guerra Fria, então, imagine o que era isso dentro da igreja brasileira. Obviamente que esses cursos “eriçaram os pelos” de toda a igreja conservadora e chegou ao ponto em que ele ficou proibido de vir ao país durante cinco anos. Retornou ao Brasil somente em 1952, porque dominicanos de São Paulo e do Rio de Janeiro conseguiram trazê-lo de volta.

Quando foi proibido de continuar a fazer suas palestras e a publicar seus livros no Brasil, ele voltou para França e foi procurar o Núncio Apostólico, que era, naquele momento, nada mais nada menos que o futuro papa João XXIII, que disse a ele: “Não é para parar não, é para continuar isso que você está fazendo”. Então, o papa deu possibilidade de ele voltar em 1952, já em outra perspectiva, não somente para dar cursos, mas principalmente para fazer análises, estudos sociais, estudos de possibilidades sociais. E foi nesse momento que ele fez grandes estudos, entre os quais, um sobre a aglomeração de São Paulo, que até hoje é uma grande referência.

Paulo VI o chamou para ajudar na elaboração da Encíclica Populorum Progressio, que levantou, dentro da igreja, a questão do subdesenvolvimento. Ele é um dos relatores principais dessa Encíclica, mas morreu logo depois, enquanto estava trabalhando no texto, no Vaticano, e não chegou a ver o documento ser publicado.

IHU On-Line – Que tipo de planejamento urbanístico e arquitetônico Lebret considerava adequado para uma cidade como São Paulo? Em que consistia a proposta dele de descentralizar a cidade?

Francisco Whitaker – O estudo que Lebret fez sobre a aglomeração paulistana resultou em uma proposta dele para São Paulo, a qual era baseada fundamentalmente na descentralização do poder. São Paulo já era uma cidade enorme, na qual todos os serviços públicos e todas as decisões eram centralizadas, inclusive geograficamente. Por exemplo, havia apenas um Tribunal de Justiça na cidade, e as pessoas não tinham acesso a esses serviços por conta da distância e das dificuldades.

Em Paris existe uma prefeitura e cerca de 20 subprefeituras, as quais possuem muita autonomia e são organizadas como poderes descentralizados, muito mais próximas da população e que decidem tudo. O plano de Lebret era que a cidade fosse dividida em subprefeituras, mas estamos lutando até hoje por conta disso, porque as pessoas ainda pensam que o poder tem que ser centralizado, autoritário, e quem está no centro do poder não admite ceder um pouco para os outros, mas isso acaba diminuindo a eficácia e é extremamente negativo para o conjunto.

Lebret, quando esteve em São Paulo, chegou a sobrevoar a cidade de helicóptero e identificar os lugares onde deveriam ser instaladas as subprefeituras, mas essa proposta não saiu do papel. O prefeito que o contratou para esse trabalho foi substituído por outro que não tinha nenhuma preocupação com esse tipo de projeto, então isso não foi levado adiante. Lebret tinha uma visão muito clara de democratização; no fundo toda a temática da descentralização tinha como objetivo democratizar a cidade.

IHU On-Line - Em termos urbanísticos e arquitetônicos, como o senhor vê as cidades brasileiras? O que falta ao Brasil nesse sentido? É possível fazer um planejamento das cidades, por exemplo? Essa proposta de descentralização ainda é atual para nossos dias?

Francisco Whitaker – Fundamentalmente teria que descentralizar ao máximo e dar o máximo de autonomia solidária e corresponsável às regiões das cidades. Por exemplo, os planos diretores dos bairros deveriam ser feitos com a participação de todos. Não se trata de uma escolha ideológica de que a participação é melhor, pelo contrário, é que sem participação não se solucionam os problemas. Portanto, é nessa linha que tem que ser pensado o planejamento urbano, que é preciso definir, no nível central, as grandes diretrizes, e depois têm que autonomizar a prática do planejamento urbano ao nível de cada região da cidade, com bastante participação da sociedade, com instrumentos que permitam que todos os cidadãos possam de igual maneira interferir nisso.

"Lebret tinha uma visão muito clara de democratização; no fundo toda a temática da descentralização tinha como objetivo democratizar a cidade"

IHU On-Line - Como o senhor reage às críticas feitas à arquitetura e ao planejamento urbanístico desenvolvido por Oscar Niemeyer? Alguns criticam sua arquitetura porque ela justamente não possibilita a democratização.

Francisco Whitaker – Niemeyer é herdeiro de uma visão burocratizante e centralizadora da política. Ele herdou toda aquela perspectiva soviética, que na União Soviética era pior ainda porque, além de ser centralizada e determinada de cima para baixo, era quase fascista: os prédios do poder são prédios que se impõem pelo seu tamanho, e a arquitetura é mostrada dessa forma. Apesar disso, Niemeyer é um gênio do desenho, da forma. Portanto, dentro dessa perspectiva de que de cima para baixo podemos decidir tudo, ele decidiu e fez coisas bonitas.

Agora, um problema terrível é que Brasília é uma cidade automobilística; ali quem não tem carro está “frito” e o sistema de transporte coletivo ainda é muito incipiente. Além disso, as cidades satélites acabaram sendo um desastre, porque surgiram na base de enorme clientelismo político. De qualquer maneira, Brasília é uma cidade totalmente planejada de cima para baixo como objeto, e as pessoas foram jogados nas periferias.

IHU On-Line - De que modo o pensamento de Lebret nos fornece elementos para conjecturar acerca do que seria um projeto de desenvolvimento adequado para o Brasil?

Francisco Whitaker – A tese de Lebret, de que crescimento não é desenvolvimento, ainda é extremamente atual. Se conseguíssemos recuperar isso, retomar os textos, criticando coisas que não servem para os dias de hoje, poderíamos lançar uma discussão que está ausente não só nos governos do PT, mas em todos os países da América Latina: no governo Evo Morales, no governo de Rafael Correa, que estão amarrados à questão de que é preciso haver crescimento econômico, o que significa crescimento das empresas. Trata-se, portanto, de fazer com que a economia se volte não para o consumismo, mas para as necessidades humanas.

Então, há decisões que deveriam, inclusive, penetrar nos nossos hábitos. Na nossa vida cotidiana deveríamos pensar duas vezes e optar pela chamada simplicidade voluntária, isto é, a sobriedade voluntária. No entanto, no Brasil, isso passa voando a 300 km de altura e ninguém pensa nisso. Lebret nos alimentaria com essas questões.

"A grande tarefa é de despertar a consciência"

IHU On-Line – Como está avaliando o pontificado de Francisco?

Francisco Whitaker – O atual Papa é uma surpresa, quase equivalente à surpresa de João XXIII. João XXIII não era um padre burocrata nem um padre puramente espiritual, era uma pessoa com uma visão de realidade de mundo.

Francisco, no início do pontificado, recebeu uma série de críticas à ligação que teve com os militares durante a ditadura argentina, mas vem “tirando tudo isso de letra”. Nem se fala mais nisso por conta da coragem que ele está tendo de identificar problemas. Por exemplo, veja o lugar onde foi morar, a maneira como vive e como fala; são tremendas inovações. Espero que a igreja tenha a capacidade de ouvir e receber tudo isso, e que não inventem golpes institucionais para tirá-lo de lá.

A questão que ele levantou na Encíclica Laudato Si’ é uma entrada da igreja em um setor que ela nunca havia mexido de maneira tão incisiva. Enquanto igreja e instituição cristã, já estava tratando do assunto há muito tempo, e o próprio [Leonardo] Boff há falava nessa questão ecológica.

O Papa tem um poder de comunicação enorme; quando ele fala, não fala para uma pessoa, mas para milhões de pessoas, não somente através dos escritos, mas pessoalmente nesses encontros com a juventude. Espero que nós, os leigos cristãos que estamos por aí afora, sejamos capazes de aprofundar essas propostas e levar para o resto da sociedade o que ele está dizendo. A grande tarefa é de despertar a consciência, despertar as pessoas para a realidade da vida e a possibilidade que nós temos de agir e interferir nessa realidade.

Fonte: IHU On-Line

NOTAS

[1] Louis-Joseph Lebret, O.P. (1897–1966): conhecido no Brasil como Padre Lebret, foi um economista e religioso católico dominicano francês, criador do centro de pesquisas e ação econômica "Economia e Humanismo", em 1942, e de um grande número de associações para o desenvolvimento social, em vários países do mundo. (Nota da IHU On-Line)

[2] Eduardo Nicanor Frei Montalva (1911-1982): filho de um imigrante suíço de classe média, foi um político do partido centrista chileno democrata cristão e foi presidente do Chile de 1964 até 1970, sendo o primeiro democrata cristão chefe de Estado das Américas. (Nota da IHU On-Line)

[3] Frei Romeu Dale: frade dominicano, foi professor da Escola de Sociologia e Política da USP. (Nota da IHU On-Line)

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