A caderneta e o comunismo

Eu fico pensando nos anos 60, quando eu vivia em São Borja e praticamente todas as famílias que eu conhecia compravam coisas na venda com a caderneta.

Por Elaine Tavares*

Outro dia alguém das minhas relações publicou um banner no qual estava escrito assim: “Obrigada militares, por nos livrarem do comunismo em 64. Senão, hoje estaríamos nas filas, com uma caderneta na mão, buscando comida”. Fiquei meditando muito sobre isso. E no fundo do meu coração procurei entender como alguém que vive num país como o nosso, no qual pessoas ainda morrem de fome, dormem em barracos imundos, não conseguem dar vida digna aos seus filhos, considera ruim que em um país comunista as pessoas tenham uma caderneta com a qual conseguem comida. Ora, minha gente, isso significa que as pessoas recebem comida. Onde está o horror disso? Horror não seria passar pela periferia de suas cidades e ver tanta miséria. E saber que aquelas pessoas não tem uma caderneta, nem um fila onde ficar para garantir a alimentação? Horror não seria saber que existem crianças cuja única refeição decente que fazem é na merenda da escola, que é fraudada e diminuída a cada dia? Que pessoas são essas que escrevem essas coisas? Será que não conseguem entender o que estão publicando? Isso sim, me dá horror.

equipe_itinerante_missionarios_consolata_venezuelaMas, tirando isso há que aclarar algumas coisas. Primeiro: não, os militares não nos salvaram do comunismo. Porque o que estava em curso com o governo João Goulart não era comunismo. No máximo um nacionalismo reformista que poderia chegar a um capitalismo de estado, com grande participação popular. Jango era um fazendeiro, apegado a sua classe, ainda que tivesse grande sensibilidade social. O golpe se deu não pelo comunismo que poderia vir, mas pelo que o império sempre considerou o mal maior: o nacionalismo de esquerda. Ou seja, essa ousadia de querer ser autônomo, soberano, de ditar as regras em favor do povo. O Brasil não seria uma Cuba. Infelizmente, não.

Outra coisa importante: quem inventou o golpe não foram os militares. Eles apenas operacionalizaram aquilo que a elite nacional e o império apavorado queriam, que era acabar com a ameaça nacionalista. Então, se tiver de agradecer a alguém pelo Brasil de fome, de pobreza, de atraso, de subdesenvolvimento, não agradeça só aos militares, mas à elite dominante também. Essa mesma, que te consome.

Segundo: o comunismo não é um mundo sombrio, cheio de filas e cadernetas. Essa imagem, criada a partir da realidade cubana e agora venezuelana não representa o comunismo. Cuba tem vivido esses anos todos de libertação sob um bloqueio comercial. Ou seja, o país não consegue comprar coisas nos outros países, mesmo que tenha recursos para isso. Os países que negociam com Cuba sofrem pressões dos Estados Unidos. Então, entendam. Não é o comunismo que provoca filas ou cadernetas. É o bloqueio!

A mesma coisa acontece na Venezuela, que só uma pessoa muito desinformada ou formada pelo uatizapi, pode ver como comunismo. A Venezuela é um país capitalista bem normalzinho, com um governo nacionalista. De novo temos aí o nacionalismo, o verdadeiro temor do império. E o que é o nacionalismo: é pensar no país primeiro. “America First”. Por que todos acham isso bonitinho no discursos de Trump, e no de Chávez, Maduro ou Jango, ou Fidel é um absurdo comunista?

Terceiro: o comunismo é um modelo de organização da vida no qual as pessoas trabalham e recebem conforme suas necessidades. Então, se uma família tem cinco filhos, receberá para dar dignidade aos cinco filhos. Se tiver um, receberá para um. Os velhos são amparados, as crianças também. O trabalho não é exploração, é construção solidária da riqueza coletiva. É o reino da liberdade. Ninguém precisa passar fome. A economia é planejada em função das pessoas, e não para enriquecer meia dúzia de empresas e famílias. Então, porque as pessoas temem o comunismo? Porque a ideologia inventa coisas como essa, da caderneta, das filas, sem contar a verdade toda.

Eu fico pensando nos anos 60, quando eu vivia em São Borja e praticamente todas as famílias que eu conhecia compravam coisas na venda com a caderneta. O comerciante anotava e se pagava no final do mês, ou quando se tinha dinheiro. Havia muita tolerância e praticamente nenhum juro. Então, qual é o problema da caderneta? Era como um cartão de crédito.

Mas, claro, é preciso tornar isso um problema, um terror, para que as pessoas acreditem que o comunismo é coisa ruim. Mas, se pensar bem, vai ver que a caderneta moderna, o cartão de crédito, é muito mais aterrorizante do que a caderneta cubana. Quem aí já não pagou rios de juros ao banco por ter estourado o limite? Quem ganhou e quem perdeu com isso? Pensa aí.

Pois em Cuba, apesar de um criminoso bloqueio que dura 60 anos, tem caderneta, tem fila, mas tem comida, não tem criança na rua, tem educação para todos, saúde universal, moradia, segurança, arte, cultura. Em Cuba o salário é baixo sim, mas há pouco que precisa ser comprado. Então, há que ver a floresta, não a árvore.

Sei que os que publicaram o banner não lerão isso. Cuspirão, com ódio, no primeiro parágrafo. Mas, vou insistindo, como a água, tocando, devagar e insistentemente o rochedo.

*Elaine Tavaes é jornalista.

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