Crepúsculo

Está procurando algum livro em especial?

Por Jonathan Constantino *

Era um bonito final de tarde. Camila andava pela calçada de uma avenida bastante movimentada. Carros, motocicletas, caminhões, ônibus e transeuntes cortavam a paisagem. Ela mantinha as mãos nos bolsos e os pensamentos no ar. À certa altura, parou diante da porta de um sebo. Um cubículo mal iluminado, apertado e com prateleiras acompanhando todo o comprimento do corredor, atulhadas de livros de todos os tamanhos, títulos e formas. Ao fundo, podia avistar um balcão, aparentemente desabitado. Cruzou a fronteira entre a loja e a calçada, começou a espiar os tomos, o nome dos autores, a poeira impregnada. O cheiro era de coisa velha, bastante estranho.

Naquele corredor havia coisas demais. Títulos se sobrepunham como árvores numa floresta. Conhecia apenas uma meia dúzia de troncos, folhas e alguns frutos. Achava que bastava, mas a floresta era enorme. Dava medo: feras, espinhos, flores, insetos (haverá baratas?), monstros, nativos sanguinários. Como nos filmes.

“Mas no meio do mato deve ter flores”, pensou e sorriu. Flores são tão bonitas, coloridas, especiais, românticas. Um livro lhe chamou a atenção, A rosa do povo. “Carlos Drummond de Andrade? Não conheço”, pensou. Folheou. Eram poemas. Ela gostava de poesia, era bonitinho, tão paixão. Se deteve num poema qualquer. Desceu os olhos verso a verso. “Como assim? Flores dando trabalho? O que flor tem a ver com burguesia? O que é burguesia?”, questionou-se. Tomou um dicionário numa estante e foi à caça daquele verbete. Assustou-se com o significado e continuou sem entender. Aquelas coisas escritas eram estranhas, mas continuou a desbravar: lianas, musgos, lama. Os textos eram difíceis. Estava acostumada a outros tipos, a ambientes aparentemente macabros, com seus vampiros, uivos, aventuras. Já lera histórias de alquimistas, magos com seus diários e algumas coisas que a professora recomendou na escola, nada muito parecido com aquilo. Era a professora Marília quem dava aulas de Língua Portuguesa. Quando falava de literatura sua voz mudava a entonação, os olhos assumiam faíscas. Empolgava-se. Para Camila, no entanto, aquilo tudo era só mais uma disciplina, um conjunto de provas e trabalhos, acompanhados de uma dúzia de livros que era obrigada a ler. “Nossa, como é chato”, reclamava sempre.

Mas Douglas, seu amigo, lhe disse coisas que a incomodaram. Douglas era um nerd, na opinião massiva dos demais colegas. Fazia todos os seus deveres, tirava boas notas, lia todos os livros. Camila gostava dele, mas era um sentimento guardado a sete chaves. Apaixonada por um nerd? Não podia, era o que aprendera na escola e numa meia dúzia de filmes com enredo parecido com sua história.

“Camila, você só lê essas coisas comerciais, da moda? Poxa, algumas até são histórias legais, mas não possuem mensagem nenhuma... Isso vai emburrecendo. Fecha os horizontes, entende?”, advertiu. Ela não entendeu. Respondeu apenas que ele era um cara que gostava de coisas chatas como ele. E havia sido Douglas quem lhe sugerira visitar um sebo (livros usados).

“Menina, você precisa de ajuda?”, interveio uma voz meio rouca de mulher, que vinha do fim do corredor. “Está procurando algum livro em especial?”

“Na verdade não. Estou só folheando mesmo”, respondeu meio assustada, após ser interrompida em seus pensamentos. A mulher, de cabelos brancos e curtos, com sua blusa de lã marrom e os óculos pousados na ponta do nariz, fez sinal para que ficasse à vontade.

Camila gostava da noite. Muitas vezes ficava acordada até tarde, olhando o céu pela janela do quarto ou aproveitando para conversar com seus colegas no MSN, fuçando a vida dos amigos e inimigos em outros sítios virtuais. Por isso, começou a ler um poema chamado Passagem da noite. “Gostei”, disse.

Surpreendeu-se com o jeito que o poeta falava da noite, com alguma ponta de angústia porque as pessoas anoitecem, mas uma ponta de esperança pela vinda da aurora e suas possibilidades. “Chupar o gosto do dia. Nossa, que engraçado”, e se deixou gargalhar.

“Adorei, vou levar”, disse para a senhora que lhe sorriu satisfeita. Aquele livro iria fazer companhia aos poucos que ela tinha em casa. Quem sabe depois voltasse ali naquele corredor e desse outra fuçada naquelas prateleiras. Atravessou a porta em direção à calçada. Pegou uma chiclete em sua bolsa, pôs os fones do MP3 no ouvido e saiu, salivando em sua língua, o dia que anoitecia.

Para refletir:

1. Quais os livros que você gosta de ler?

2. Quais as mensagens que eles trazem?

3. Você acha que a leitura pode ajudar as pessoas a se tornarem melhores?

* Jonathan Constantino é educador popular.
(CC BY 3.0 BR)

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