Cinzas que curam

Dom Pedro Brito Guimarães *

Chegou o tempo de nos revestirmos e nos recobrirmos de cinzas. No imaginário popular ou científico, cinza é algo desprezível, resto ou resíduo do que sobrou da combustão. E de fato, é isto mesmo. Como então um símbolo tão efêmero pode se tornar eloquente no cristianismo? A Bíblia contêm inúmeras narrativas do uso do pó e da cinza não como cosméticos, mas como símbolos de arrependimento, conversão, sofrimento e humildade (Gn 18,27; 2Sm 13,19; Est 4,1; Jó 2,8; Dn 9,3; Mt 11,21).

A cinza possui um significado terapêutico-espiritual muito forte para a comunidade católica, no início da quaresma: manifesta a busca contínua da reconstrução da unidade da vida. A ação simbólica (a cruz feita de cinza na cabeça ou na testa), acompanhada das palavras explicativas ("Lembra-te que és pó e que ao pó voltarás" ou "Convertei-vos e crede no Evangelho") sinaliza a identificação do cristão a Jesus crucificado, a cruz que deve carregar e o caminho que terá de percorrer, ao longo da vida, particularmente na quaresma, em preparação para a Páscoa. São a penitência e a conversão que nos quer ensinar o gesto da cinza. A cinza então ocupará no rosto o lugar da máscara, da plástica e da maquiagem do carnaval e das outras marcas do dia-a-dia da vida. É, portanto, um sinal de Deus que se carrega na nossa fronte (Ap 7,3; 9,4; 14,1 e 22,4) para sinalizar a mudança de rota e de vida e recordar a fragilidade da vida humana, sujeita à morte.

Cinza, na "literatura" cristã, cura, purifica, liberta, salva, redefine o rumo e a meta da caminhada. Não há obrigatoriedade no uso da cinza. É opcional. O jejum, no entanto, é obrigatório para quem completou dezoito anos, até os sessenta anos começados. Mas se um cristão se sentir movido pelo Senhor a observar esta tradição católica, o importante é que o se faça sob a ótica bíblica. É bíblico se arrepender de atividades pecaminosas. É também bíblico o cristão se identificar com Jesus Cristo. Não é bíblico crer simplesmente que Deus vai automaticamente abençoar uma pessoa em resposta à observação de um ritual. Deus está interessado em nossos corações, não em que observemos rituais. Santo Agostinho resumiu bem este estado de vida: "Procurai o mérito, procurai a causa, procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a graça de Deus".

Em Nínive, diante da pregação de Jonas, o rei e seus súditos acreditaram, proclamaram um dia de penitência, se vestiram de saco e sentaram em cinza (cf. Jn 3,5-6). Estas atitudes e estes ritos supriram efeitos, foram eficazes, caíram nas graças de Deus, mudaram a vida. O Senhor já havia prometido isto: "quando eu trancar o céu e faltar chuva, quando mandar os gafanhotos para devorarem os campos, quando enviar a peste contra o povo, se então o povo, sobre o qual foi invocado meu nome se humilhar, orar, me procurar e se converter, de sua má conduta, eu escutarei do céu, lhe perdoarei o pecado e restituirei a saúde à terra" (2Cr 7,13-14).

Sem ser deselegante e inconsequente, sem querer quebrar os protocolos e as outras convenções sociais, a sociedade brasileira atual, diante de tantos escândalos e crise de governança, bem que podia adotar este mesmo ritual: se revestir e se recobrir de cinzas. Deixar de lado a operação "lava-jato", para não desperdiçar água, e usar a cinza para a conversão social.

Portanto, como um produto que passa pelo fogo, tanto o cristão, como o cidadão, passam pelas cinzas para a conversão pessoal e social. A cinza é a argamassa para a construção de um novo edifício espiritual e social. Deus tem este plano, no recôndito do seu coração, relevado pelo profeta Isaías: "adorno em vez de cinzas, perfume de festa em vez de luto, ação de graça em vez de espírito abatido" (Is 61,3). Jesus Cristo veio ao mundo para realizar este seu plano de amor: curar os corações despedaçados pelas feridas dos escândalos e das injustiças sociais. Não importa o cargo que ocupa na escala ou a posição social e religiosa, o Senhor quer beleza espiritual por meio das cinzas que curam.

No Brasil, a quaresma está visceralmente associada à Campanha da Fraternidade. É ela que ilumina de modo particular os gestos fundamentais desse tempo litúrgico: a oração, o jejum e a caridade. Neste ano, o tema é: "Fraternidade, Igreja e Sociedade", e o lema: "Eu vim para servir" (Cf. Mc 10,45).

* Dom Pedro Brito Guimarães, arcebispo de Palmas (TO) e presidente da Comissão Episcopal para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada da CNBB.

Fonte: www.pom.org.br

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