Migrações: o cão que morde o próprio rabo

Alfredo J. Gonçalves *

A imagem do título, ampla e popularmente conhecida, ilustra bem a atual crise europeia, notadamente na zona do euro. Constata-se, de cara, que o sistema financeiro, tido historicamente como intermediário e facilitador dos negócios em geral, abre um tremendo vórtice na econoia globalizada, um verdadeiro ralo sem fundo para o erário público e privado. Devora a si mesmo e devora as finanças dos países onde a crise é mais aguda. Ao invés de investir na produção de bens e consequente geração de novos empregos, especula com a poupança alheia numa rede internacional que desconhece franteiras, língua, cultura e nação, cego às cores da bandeira e das necessidades de cada país. Cria uma bolha financeira que, cedo ou tarde, desmascara o próprio vazio, abandonando credores e poupadores.

Por isso é que, além de ilustrar esse mecanismo do capital que se morde a si mesmo, a imagem do título explica também o deslocamento massivo dos trabalhadores e de suas famílias. Aos milhares e milhões seguem a rota do dinheiro, sangue vivo da economia. Onde este é mais abundante e mais dinâmico, certamente cairão algumas migalhas da mesa dos ricos para o chão onde se arrastam os pobres. Quando os gatos se banqueteiam, os ratos se nutrem das sobras! Não obstante os obstáculos e leis migratórias restritivas, as pessoas pressionam as fronteiras atrás de uma oportunidade que não encontram nos países de origem. Este se enfraquece ao morder a própria cauda do financiamento público, não deixando outra alternativa aos emigrantes que, em desespero, se lançam onde o capital volátil e digital poderá encontrar algum ramo para pousar. Não raro, antes de pousar já se volatizou completamente e desapareceu pelas vias obscuras de uma administração corroída pelo vírus da corrupção.

Os governos, por sua vez, que também deveriam ser intermediários das forças sociais dos respectivos países, para salvar da falência o capital financeiro costumam reequilibrar as contas com o erário público. Transferem à iniciativa privada o montante necessário, sempre crescente, para socorrer o setor bancário. Ao mesmo tempo, abandonam ao caos a saúde, a educação, o transporte, a segurança, o deficit habitacional, e assim por diante. Não é à toa que, em plena crise, os bancos seguem cobrando taxas elevadas e auferindo lucros abusivos, às vezes estratosféricos. Os governantes fazem o papel de uma espécie de correia de transmissão onde os tributos se transladam do bolso de todos os cidadãos para as contas bancárias das classes dominantes, não poucas delas localizadas em verdadeiros paraísos fiscais. O cão volta a morder a si mesmo, deixando na mão os setores mais pobres da população de baixa renda, enquanto procura salvar a todo custo as camadas mais ricas.

Do ponto de vista socioeconômico e político, a imagem do "cão que morde a própria cauda" é ainda mais viva. Tomemos o exemplo da Itália. O Produto Interno Bruto (PIB) no decorer de 2012 caiu em 2,4%, enquanto a renda e o poder aquisitivo das famílias recuaram em quase 10%. O desemprego geral chega à casa dos 17%, mas o alarme maior vem do desemprego juvenil, o qual no início de 2013 alcançou a marca inédita e preocupante de 38%. Esta cifra é ainda mais alarmante para a Espanha (55%) e a Grécia (60%), ao passo que na Alemanha não passa de 8%. Milhares de pequenos, micros e médios empreendedores decretam falência, fecham as portas e, sempre na Itália, o número de pessoas consideradas pobres se aproxima dos 7 milhões. Em Milão, por exemplo, omeçam a surgir experiências como "supermercados populares" com o fim de socorrer os que caem na desgraça.

A União Europeia é claramente constituída de um núcleo duro que blindou sua economia contra a crise - com destaque para a Alemanha de Angela Merkel - e vários países de periferia que atravessam um caos econômico e político, onde é difícil ver a luz no fim do túnel. Como se isso não bastasse, o governo italiano ainda se vê às voltas com outro tipo de caos, o risco de ingovernabilidade depois das últimas eleições. Nenhum partido adquiriu a maioria necessária para governar com certa segurança, dificultando a elaboração de um programa mínimo. Na economia capitalista, como bem sabemos, produção, crescimento e consumo andam de mãos dadas como irmãos siameses. Se um cai leva consigo o outro. Volta a imagem do cão: gira sobre si mesmo sem conseguir uma via de saída.

Semelhante quadro gera, por fim mas não em último lugar, a fuga em massa de capital humano e social. Ao cnsumir os próprios recursos financeiros num dinamismo morbidamente autofágico, o Estado abandona os cidadãos à própria sorte. Estes, órfãos da terra em que nasceram e sepultaram seus familiares, correm atrás de uma nova pátria em outros países. Recente pesquisa revela que milhares de italianos, em em sua maioria jovens e mulheres, grande parte laureados, encontram-se em New York na tentativa de encontrar trabalho. Embora em menor medida, alguns buscam outras cidades dos Estados Unidos ou se deslocam dentro do velho continente europeu, em direção a Londres, Frankfurt ou Paris. Jovens que refazem o caminho de seus antepassados no final do século XIX e início do século XX.

Repete-se o cenário e a imagem: "o cão volta a morder a cauda". A crise representa um dessangramento continuo das forças jovens e dos principais cérebros do país, comprometendo ainda mais a retomada da pesquisa científica e do desenvolvimento econômico e social. Instala-se o círculo vicioso e vorticoso, abismo devorador das energias que poderiam alavancar uma solução a médio ou longo prazo. Uma dinâmica perniciosa e espiral que expande cada vez mais o núcleo do vórtice, esticando a corda do equilíbrio a um ponto alarmente e irreversível. Se os brotos de uma sociedade são forçados a migrar em busca de terras mais férteis, o tronco envelhece de forma senil e irremediável. Anula ou retarda a possibilidade de uma primavera florifda e de uma aurora renovada. Se o sangue novo deixa um organismo vivo, este perde sua vitalidade e qualquer chance de rejuvenescimento.

* Alfredo Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos em Roma.

Fonte: Alfredo J. Gonçalves / Revista Missões

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