Vale: uma estratégia ou apenas um acaso?

Lucio Flavio Pinto*

Foi em 2005 que a Companhia Vale do Rio Doce imprimiu seu último balanço anual em papel. A partir do ano seguinte só teria essa versão o seu relatório de sustentabilidade. As demonstrações contábeis e financeiras ainda podem ser consultadas, mas apenas na versão eletrônica, no site da empresa. Mesmo assim, o relatório não é mais anual: limita-se a períodos trimestrais. Quem quiser ter uma visão integral do desempenho da empresa vai ter que agregar os números por iniciativa própria, o que demanda mais tempo, paciência e competência.

Em compensação, a cada trimestre - ou a cada momento importante das atividades da companhia - são abundantes os press-releases que envia aos jornalistas. Tão detalhistas que quase contêm a verdade. Quase. Sempre há um detalhe, em geral inconveniente, que não é contemplado nesse feérico material de divulgação. Para obtê-lo, porém, o profissional da informação terá que gastar muito mais trabalho. Por que não se contentar com o belo prato feito?

Um número crescente de jornalistas faz essa opção, até se esforçando por esticar ao máximo o rendimento em cima dos dados fornecidos pela Vale. Devem ter a sensação de poder surpreender a autora da gentileza e serem fiéis ao compromisso com o leitor, mas é difícil.

O enredo parece perfeito. Consciente da sua responsabilidade social, a empresa se dispõe a um strip-tease informativo, fornecendo tudo que é relevante para uma análise séria e honesta do seu desempenho. Tão desprendida nessa disposição que torna perfeitamente dispensável a apuração à margem ou além dos alentados pacotes que despacha para a mídia.

Muitos jornalistas e analistas em geral devem reagir positivamente aos relatórios de sustentabilidade da Vale. Neles, a empresa demonstra o grau e a extensão do exercício das responsabilidades que lhe cabem em relação à sociedade e à natureza. Os relatos são abundantes e as imagens, sempre de impressionar, são numerosas. A mineradora faz jus ao crédito: está procurando um relacionamento franco com a opinião pública, convicta de que o seu modo de proceder é sua melhor defesa.

Quando a Vale deixou de publicar em papel o seu balanço anual, que sempre incluía as demonstrações contábeis e financeiras em toda a sua extensão, fiz chegar minha estranheza e, em seguida, meu protesto a quem interessava, os ditos canais competentes. Não se tratava apenas de uma impensada e automática adesão da corporação ao meio eletrônico, como tem acontecido com freqüência preocupante no mundo dos negócios e no âmbito público.

Afinal, o relatório de sustentabilidade continuou a ser impresso, com os recursos gráficos sofisticados de antes. Além disso, o verdadeiro balanço contábil também deixou de aparecer até no site da companhia, no qual só os relatórios trimestrais sobreviveram. Para completar, press-releases cada vez mais fartos, como se contivessem todas as demonstrações e as tornassem dispensáveis.

Minha resistência a aceitar essa nova realidade era apenas sinal de caduquice e teimosia, de iconoclastia irracional? Convido o leitor a comparar as análises que este jornal faz das atividades da Vale com o que sai não num ou noutro jornal, mas em toda a mídia nacional. Se concluir que o que aqui sai nada tem de diferente dos demais meios de comunicação (não estou falando em interpretação, mas em dados brutos mesmo), então é verdade: não passo de um criador de caso.

No entanto, desde que a censura política se restabeleceu no Brasil, depois do AI-5, no final de 1968, ao buscar informações significativas e de confiança num ambiente empobrecido, acabei descobrindo que os balanços das empresas (como os orçamentos dos governos, estes com menor grau de segurança e credibilidade) são fontes indispensáveis sobre o que vai pelo mundo, conforme anunciavam aqueles noticiosos exibidos nos cinemas até meados da década de 60 do século passado.

Quando comecei a consultá-los, os balanços ainda eram muito suscetíveis a manipulações e maquiagens. Com o passar dos anos, graças à melhoria na legislação e ao melhor controle da Comissão de Valores Mobiliários, as demonstrações foram espelhando mais adequadamente a realidade das empresas. Mesmo algumas manobras ainda cometidas podem ser identificadas e revertidas, de tal maneira que boa parte delas perdeu eficácia (não de todo, como se pode verificar em algumas descobertas de fraudes feitas, infelizmente, só a posteriori dos danos que causaram).

Em tal contexto, é inaceitável que a maior empresa privada do Brasil e do continente, uma das mais disputadas e valorizadas na bolsa de valores, não procure dar a maior difusão possível às suas contas. Pelo contrário: segue em sentido inverso ao que seria de se esperar se aplicasse os compromissos - que diz pôr em prática no balanço social - às suas demonstrações contábeis e financeiras. Os jornalistas conscienciosos e sérios deviam se interessar pela questão e cobrar da Vale a publicação do seu balanço anual, na íntegra. Só assim -e não com ricos press-releases- ela cumprirá sua responsabilidade social. Permitirá que os verdadeiros analistas se debrucem sobre suas contas sem viseiras nem pretextos outros que desviem sua atenção do compromisso maior: com a opinião pública e não com a empresa, qualquer que ela seja. Mesmo a mais reluzente de todas.

Jari: história errada

O grupo Orsa anunciou, no início do mês, que decidiu transferir sua matriz de controles, antes instalada em São Paulo, onde a corporação tem sua sede, para Monte Dourado, no Pará. A decisão foi adotada como forma de "celebrar os 110 anos do início do extrativismo no Vale do Jari e a concepção do Projeto Jari, adquirido no ano 2000 pelo Grupo Orsa, data da mudança em relação à sustentabilidade".

A transferência é uma iniciativa positiva. A inspiração é péssima. Não há razão decente para celebrar o início do império do coronel José Júlio de Andrade no vale do rio Jari. Durante quase meio século, entre 1899 e 1948, quando vendeu as terras que dizia lhe pertencerem a um grupo de comerciantes portugueses, o imigrante cearense impôs um regime de violência, abusos e trabalho escravo sobre legiões de trabalhadores, que recrutou para a coleta de castanha, seringa e balata.

A história oficial, à qual os atuais proprietários do Jari dão um toque de renovação descabida, proclama José Júlio como herói, o desbravador do vale, o mecenas, patrono e padrinho de centenas de afilhados e seus dependentes, aos quais proporcionava ofício e meios de sobrevivência. Era, de fato, muito poderoso. Tinha um dos mais extensos domínios de terra, embora boa parte da papelada que juntou não lhe conferisse propriedade legal. Ele esquentava os papéis com seu prestígio junto aos políticos e governantes da 1ª República no Pará. Dava-lhes abundância de votos recrutados em currais cativos e financiava campanhas. Em troca, recebia os favores da lei - e o que a própria lei não seria capaz de conferir.

Essa farsa desmoronou quando, em 1928, um dos navios de sua frota atracou em Belém. Trazia dezenas de trabalhadores, que se rebelaram contra o regime de escravidão a que eram submetidos. Sob a liderança de outro cearense, José Cesário, tomaram a embarcação e fugiram do reino de pavor, trazendo consigo as provas vivas e documentais do que sofriam. Embora José Júlio comprasse jornalistas e autoridades, O Estado do Pará reproduziu com destaque as denúncias dos fugitivos, provocando um grande impacto junto à opinião pública da capital.

O impacto ainda ressoava quando os tenentes fizeram sua revolução, em 1930. O líder do movimento no Pará, Magalhães Barata, tomou José Júlio como exemplo do regime "carcomido" que queriam eliminar e lhe dispensou perseguição pessoal, como uma espécie de vingança pelo que fez no Jari aos trabalhadores. Obrigou o antigo soba a se refugiar no Rio de Janeiro e se desfazer do latifúndio.

Depois de passar pelo grupo português, as terras foram compradas por Daniel Ludwig, em 1967. Começava o Projeto Jari, nacionalizado em 1982, porque o milionário americano se recusou a pagar o empréstimo internacional que contraiu para a aquisição da fábrica de celulose e de uma termelétrica, com o aval do tesouro nacional. Em 2000 o empreendimento passou para o grupo Orsa, que pagou um dólar como valor simbólico e assumiu a dívida ainda remanescente, de 415 milhões de dólares.

Ao celebrar os 110 anos de extrativismo no Jari, a Orsa retoma uma história trágica dando-lhe falsa roupagem cor de rosa. Antes de se lançar a essa infeliz aventura, a empresa devia fazer uma revisão mais rigorosa do passado no vale. Um dos participantes da revolta de 1928, Jesus de Miranda Carvalho, escreveu um livro, Revolução do Jari (2004, 113 páginas, Smith Produções Gráficas), que é um testemunho precioso sobre a história verdadeira, que a empresa paulista ignora, do "maior escravista da região". Fazendo a opção errada, os novos donos do Jari assumem um papel negativo no novo enredo.

* Jornalista paraense. Publica o Jornal Pessoal (JP)

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