Religião e Pão

Walmor Oliveira de Azevedo *

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Emenda Constitucional, PEC 0047/2003, neste momento na Câmara dos Deputados, visando garantir a alimentação como direito social na Constituição Federal. Espera-se a sua aprovação, como gesto parlamentar de solidariedade e compromisso social e político, até a próxima celebração do Dia Mundial da Alimentação. Este passo será fruto de um entendimento que tem como referência a compreensão moral da destinação universal dos bens. Há, pois, uma compreensão moral que remete o entendimento legislativo e seus desdobramentos a fontes de inspiração que ultrapassam e estão antes da definição da organização social e política. Como o pão, a religião deve ser considerada, pois, à luz de valores e de referências com força de inspirar, adequadamente, a compreensão social e política com seus desdobramentos legislativos e jurídicos. É óbvio que, dentre as múltiplas implicações do bem comum, a destinação universal dos bens é um princípio de particular importância.

A pessoa não pode prescindir, é incontestável, dos bens materiais que respondem às suas necessidades primárias e constituem as condições basilares para a sua existência. Trata-se de necessidades básicas indispensáveis da pessoa para alimentar-se e crescer, comunicar-se, associar-se, e para poder conseguir as mais importantes finalidades a que é chamada. Esta compreensão é argumento da Doutrina Social da Igreja enquanto considera o princípio da destinação universal dos bens da terra que está na base do direito universal do uso dos bens. Quando se trata de alimentação, por exemplo, trata-se, antes de tudo, de um direito natural, inscrito na natureza do homem e não de um direito somente positivo, ligado à contingência histórica. Há, pois, uma dimensão ético-social que exige regulamentações jurídicas de modo que o sistema econômico-social não esmague este direito natural.

Naturalmente que a atuação concreta do princípio da destinação universal dos bens, referência específica à alimentação, levando em conta os diferentes contextos culturais e sociais, implica uma precisa definição dos modos, dos limites e dos objetos. Importa, pois, considerar que o pão não é passível apenas de uma consideração material ou comercial. Implica uma sua consideração à luz de princípios como o princípio da destinação universal dos bens e do direito natural, original, para além de contingências históricas, o direito social da alimentação. Há de se considerar também a religião. A consideração da religião tem implicações que se referem à alimentação moral indispensável para o equilíbrio de processos e regulação adequada das relações humanas. Isto porque a religiosidade diz respeito à dignidade humana.

O direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil em matéria religiosa se justifica enquanto tal liberdade está inscrita na natureza humana. Há, pois, uma estreita ligação entre o entendimento da dignidade da pessoa e a própria natureza da busca de Deus. Esta busca de Deus não é uma simples busca de Deus, até considerada como alienação em determinadas abordagens. Ou considerações pejorativas que advém de entendimentos extremamente positivistas, ou de compreensão ideológica que impede alcançar raízes mais profundas da configuração da dignidade humana. A religião é fundamento da moral, ainda quando se pode encontrar pessoas profundamente morais, mesmo sendo irreligiosas, como outras que, mesmo sendo religiosas, não pautam seu comportamento em Deus.

O secularismo que vem desde o século XIII alimenta o fenômeno histórico que leva a colocar com vigor o acento principal na realidade mundana, reconhecendo nela valor e sentido próprio. Daí nasce a compreensão de libertar a realidade da tutela da religião visando conquistar diante dela uma total autonomia. Este fenômeno histórico provoca grande crise na religiosidade trazendo consequências e incidências sérias na consideração da vida interior, fonte da indispensável moralidade que equilibra o mundo nas suas relações, tratando-a como realidade alienante da vida comum, gerando até oposições a ela. É, pois, indispensável que se ponha na pauta de discussão e entendimentos que se refere à liberdade de consciência e de religião. A Doutrina Social da Igreja advoga que a liberdade religiosa deve ser reconhecida no ordenamento jurídico, e sancionada como direito civil. A consideração, pois, de liames históricos e culturais com uma nação, abre caminho para que uma comunidade religiosa receba um especial reconhecimento por parte do Estado sem gerar discriminações de ordem civil ou social. A visão das relações entre Estados e as organizações religiosas, promovida pelo Concílio Vaticano II, corresponde às exigências do Estado de direito e às normas do direito internacional. É importante defender e garantir o direito de religião e pão.

* Dom Walmor Oliveira de Azevedo é Arcebispo de Belo Horizonte.

Fonte: CNBB

 

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