Combatendo a discriminação racial

3 de julho é o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial. A data foi escolhida em 1951, quando o Congresso Brasileiro aprovou a Lei 1.390.

Por Juacy da Silva

“O 3 de julho é o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial. A data foi escolhida em 1951, quando o Congresso Brasileiro aprovou a Lei 1.390 que tornava contravenção penal a discriminação racial. Por tudo isso, o Dia Nacional contra a Discriminação Racial no Brasil tem o dever de reforçar a pauta que reafirma a necessidade de criar novos paradigmas de conhecimento histórico, político e cultural da população negra, de forma efetiva para que estremeça os alicerces que sustentam o racismo estrutural no país”.

“O Ministério da Igualdade Racial, órgão da administração pública federal direta, tem como atribuição elaborar políticas e diretrizes destinadas à promoção da igualdade racial e étnica; políticas de ações afirmativas e combate e superação do racismo; políticas para quilombolas, povos e comunidades tradicionais, entre outras. A pasta foi fundada em janeiro de 2023, após 20 anos do início das políticas de promoção da igualdade racial no Brasil”.

O preâmbulo da Constituição Federal de 1988, deixa bem claras as bases da organização e das relações sociais, econômicas, culturais e políticas que devem ser respeitadas em nosso país, ao estabelecer que “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

escolas-fomeE em seu artigo terceiro está escrito “IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Todavia, já são passados praticamente 35 anos e boa parte dos direitos estabelecidos e reconhecidos constitucionalmente ainda permanecem apenas “letra morta” e continuam fazendo parte da agenda das lutas por direitos, não apenas das minorias, mas da maioria, como no caso dos direitos das pessoas afrodescendentes (negras, pretas, pardas) como podemos perceber na luta contra a Discriminação Racial, na luta contra a violência em relação à mulher, principalmente contra a mulher afrodescendente, a mulher negra/preta; o feminicídio, contra o tratamento desigual, não apenas em relação aos homens, mas também em relação à mulher branca.

Por isso nós, como cristãos, como cidadãos, como eleitores e como cidadãos e cidadãs, vivemos em uma determinada realidade política, econômica, cultural, social e religiosa. Somos feitos de corpo e alma/espírito, por isso não podemos nos alienar em relação `as teias de relações concretas em que estamos inseridos diariamente.

De outro lado, no que concerne aos aspectos da realidade concreta, do cotidiano os países e sociedades, fruto dessas teias de relações acabam dando origem a diferentes formas do que algumas pessoas denominam de “arranjo social”, ou a formação de camadas, classes, categorias e segmentos diferenciados, enfim, o que também é denominado de estrutura social ou pirâmide social.

Do ponto de vista religioso, principalmente para os adeptos das religiões monoteístas, somos ensinados, desde a mais tenra idade a “aceitar” e repetir, muito mais de forma abstrata do que concretamente, que existe um princípio universal, não importa o nome deste princípio, no caso dos cristãos, por exemplo, Deus; o Criador, de todas as coisas que integram o universo, inclusive o ser humano.

Daí surge a ideia ou o conceito de um Deus como figura Paterna, o Pai. E se todas as pessoas, independente da cor da pele, da origem étnica, do sexo ou da orientação sexual, de todos os aspectos físicos e situação familiar, são filhas e filhas de um mesmo Pai, então a conclusão não pode ser outra a não ser de que “todos somos irmãos e irmãs” e merecemos ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos universais para podermos viver com dignidade e respeito.

Todavia, não é bem isso o que acontece. Ao longo da história e ainda em parte, de forma dissimulada, na atualidade mundo afora, inclusive no Brasil, na base dos sistemas econômicos, sociais e políticos está a ESCRAVIDÃO, fundamento da acumulação de capital, de enriquecimento que favoreceram as minorias, em detrimento da imensa maioria que são os pobres, os famintos, os excluídos, os discriminados, os injustiçados e os violentados e também fundamento do poder.

Se volta e meia falamos que existe uma “FAMÍLIA HUMANA, fica difícil explicar para uma criança negra, uma criança pobre, uma criança deficiente, uma criança que vive nas periferias urbanas em casebres, em meio a esgoto e lixo a céu aberto, debaixo de uma lona na beira da estrada, numa criança que não tem acesso aos serviços de saúde, de educação, aos bens culturais, uma criança que fica nos sinais de trânsito implorando por uma moeda, uma criança que passa fome, anda descalça, cuja expectativa de vida e oportunidades jamais as levarão a mudar de vida, que a mesma é irmã ou irmão de outra criança que frequenta locais requintados, escolas de ótima qualidade, que podem ter inúmeros pares de sapato, de tênis, que possuem guarda-roupas lotados de roupas de marcas, muitas que as vezes jamais são usadas.

Enfim, é muito difícil explicar a essas crianças, que são milhões e bilhões no mundo, que podemos construir um novo mundo, onde a igualdade, a equidade, a fraternidade, a solidariedade sejam possíveis, não apenas para uns poucos, mas para todos, para a grande maioria ou a totalidade das pessoas.

Costumo dizer que as nossas igrejas, as religiões, pouco importa se católica, evangélica ou mesmo de outras confissões são a imagem de nossas sociedades, reproduzem entre seus fiéis a estrutura social, econômica, cultural e política das sociedades em que estão inseridas concretamente.

Fazem parte de todas as religiões pessoas de todas as idades, tipos físicos, profissões e nível socioeconômico, cor da pele, origem étnica e racial e, também, os diversos mecanismos de exclusão que dão origem `a pobreza, a miséria, a fome, o racismo, a discriminação em todas as suas dimensões, inclusive a DISCRIMINAÇÃO RACIAL, que ainda na atualidade macula a chamada FAMÍLIA HUMANA.

No caso da Igreja Católica, costuma-se dizer que a mesma é Sinodal, samaritana, pobre, que faz opção preferencial pelos pobres e excluídos, que é também PROFÉTICA, pois não apenas anuncia as “boas novas do evangelho”, inclusive a ideia ou a doutrina de que “todos somos irmãos e irmãs”; mas também DENUNCIA as práticas injustas e, mais importante do que isso, as ESTRUTURAS que geram essas anomalias sociais já mencionadas.

Um dos grandes lutadores pelos DIREITOS HUMANOS no Brasil, Dalmo de Abreu Dallari, no mesmo ano em que foi promulgada a Constituição Cidadã e dos cinquenta anos da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU, escreveu um livro denominado “Direitos humanos e Cidadania”, cuja leitura ainda permanece sempre atual, principalmente para quem integra a luta por direitos humanos, inclusive contra a discriminação racial, para quem seja agente de pastoral social, ambientalista ou defensor do meio ambiente e da ecologia integral.

É importante transcrever o artigo primeiro da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, cuja origem remonta a séculos de luta por igualdade, reconhecimento e garantia dos direitos humanos universais, onde pode-se ler “Todos os homens (gênero humano, homens e mulheres) nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Ou seja, se somos filhos e filhas de um mesmo Pai, a conclusão é que somos irmãos e irmãs e nesta condição não tem sentido a exploração, a escravidão, a discriminação, a pobreza, a miséria e muito menos a violência que provoca tanto sofrimento e morte na “FAMÍLIA HUMANA”.

Dalmo de Abreu Dallari em seu pequeno livro, já mencionado, elenca ou seja, destaca, 13 tipos de direitos que derivam dos DIREITOS HUMANOS, entre os quais mencionamos: Direito `a vida; Direito de ser pessoa; Direito `a liberdade real; Direito `a igualdade de direitos e oportunidades; Direito `a moradia e a terra (a partir de onde o Papa Francisco enfatizou seus três “Ts”: Teto, terra e trabalho); Direito ao trabalho em condições dignas, no que eu acrescento, com salário digno e não salário de fome que acaba sendo complementado com migalhas dos orçamentos públicos e pela caridade das pessoas ou outras formas de manipulação política eleitoral, muito em voga no Brasil); Direito `a participar das riquezas (e dos frutos do desenvolvimento e do crescimento econômico dos países); Direito `a educação (pública, universal, inclusiva e de qualidade); Direito `a saúde (também universal, humanizada e de qualidade); Direito a um meio ambiente sadio (e de qualidade, extensivo, inclusive `as futuras gerações); Direito de participar do governo (das estruturas de poder e não apenas escolher os governantes, mas acompanhar e fiscalizar o uso do dinheiro público, cuja origem são os impostos e outros encargos que recaem sobre os ombros da população, inclusive dos pobres e excluídos que também sofrem com uma imensa e extorsiva carga tributária que mantém, não apenas os gastos públicos, mas também, os privilégios e diversas mutretas que beneficiam os donos do poder e as camadas dominantes); Direito de receber/ter acesso a serviços públicos (universais, de qualidade e com celeridade, não de forma paquidérmica como estabelece a burocracia insana que limita tal acesso); e, por último, Direito `a proteção dos direitos (todos os direitos que as Constituições e todo o ordenamento jurídico estabelecem, como direitos trabalhistas, previdenciários, do consumidor e os direitos dos diversos segmentos, camadas e classes que estão na base das sociedades, inclusive da sociedade brasileira.

Um anos antes da promulgação da Constituição Federal, em 1997, a CNBB – Regional Leste, publicou também um livreto muito importante que foi o Manual de Direitos Humanos e Cidadania, para contribuir na formação de agentes pastorais, atuantes nas pastorais sociais/ dimensão sociotransformadora.

Reporto-me a tudo isso, para fazer uma ligação entre a Ação Sociotransformadora da Igreja Católica, que ainda representa a grande maioria da população brasileira, mais de 65% do total de nossa população, com as características estruturais e conjunturais já mencionadas e a LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, contra o RACISMO ESTRUTURAL que ainda existe e está bem presente no cotidiano de nossas relações, cuja data foi estabelecida há décadas no Brasil e tem “avançado” ainda de maneira muito tênue, constituindo-se em um desafio permanente, tanto para a definição de políticas públicas, de ações afirmativas buscando as transformações para que a discriminação racial, a violência racial e a exclusão da população afrodescendente seja algo de um passado que vem de décadas de ESCRAVIDÃO e praticas racistas em nosso país.

Por todas essas razões, neste 03 de Julho de 2023, quando é “celebrado” o DIA NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO RACIAL, precisamos refletir de uma forma mais profunda, crítica para que os princípios da Igualdade, da solidariedade, da fraternidade e do respeito `as diferenças estejam na base quando da definição de políticas públicas, mas também em nossas ações individuais e coletivas, como pessoas, enfim , integrantes da FAMÍLIA HUMANA.

A luta pela igualdade racial e contra a discriminação racial tem avançado razoavelmente no Brasil, mas muito mais em termos jurídicos e legais do que em termos de mudanças estruturais, políticas, econômicas e culturais, razões mais do que suficientes para que continue na agenda tanto das discussões públicas quanto das LUTAS SOCIAIS.

A luta contra a discriminação racial não deve ser apenas da população afrodescendente, dos negros, negras, pessoas pretas; mas de toda a sociedade brasileira, inclusive de brancos, brancas, enfim, de todas as pessoas, principalmente nós cristãos, católicos, evangélicos, quem professa outras crenças e até mesmo de agnósticos e ateus, afinal, compactuar com as injustiças, com violência, com a exclusão social e econômica de amplos segmentos populacionais é uma afronta tanto aos DIREITOS HUMANOS fundamentais quanto com a ideia de Estado democrático de direito, chavão muito em voga, até mesmo entre segmentos que contribuem para a perpetuação de uma sociedade injusta e desumana.

No dia 20 de Julho de Abril de 2010, há praticamente 13 anos, o então (e hoje novamente) Presidente Lula, sancionou a Lei 12.288; que passou a ser denominada de ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL, que desde então tem balizado a luta contra a discriminação racial no Brasil.

Vejamos o que estabelece esta Lei “Art. 1o Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:

I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada; II....”

Mesmo que algumas pessoas possam imaginar que uma reflexão com poucas páginas seja algo exagerado, creio que seja importante, primeiro que as pessoas possam ler e refletir sobre todos os dispositivos legais, constitucionais ou infra constitucionais que garantem direitos `a população afrodescendente, que representa 55% da população brasileira, e, também conhecer a agenda das lutas afirmativas e contra a discriminação racial em nosso pais.

Neste sentido, transcrevo, nesta oportunidade, dois artigos do Estatuto da Igualdade Racial, sobre os quais gostaria que pudéssemos refletir mais profundamente neste dia da Luta contra a discriminação racial.

“Art. 2o É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.

Art. 3o Além das normas constitucionais relativas aos princípios fundamentais, aos direitos e garantias fundamentais e aos direitos sociais, econômicos e culturais, o Estatuto da Igualdade Racial adota como diretriz político-jurídica a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira.

Art. 4o A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:

I - inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;

II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;

III - modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica;

IV - promoção de ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais;

V - eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada;

VI - estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas oriundas da sociedade civil direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades étnicas, inclusive mediante a implementação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos públicos;

VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros.

Parágrafo único. Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País”.

A democracia só pode ser realmente comemorada quando todas as classes, todos os segmentos e grupos populacionais estejam plenamente integrados `a sociedade da qual façam parte. Falar em democracia ou Estado democrático de direito em um país onde a discriminação racial e outras formas de discriminação e violência generalizada como existem no Brasil soa um tanto fora do contexto.

Precisamos lutar para que o Brasil seja, de fato e não apenas “de direito”, um país política, econômica, cultural e socialmente justo, solidário, fraterno, onde todos sejam participes desta construção coletiva e ninguém seja excluído ou excluída!

Juacy da Silva, professor universitário aposentado UFMT, sociólogo, mestre em sociologia, ambientalista, articulador da Pastoral da Ecologia Integral e Coordenador de Educação Ambiental da Associação em Defesa da Bacia do Rio Cuiabá e do pantanal. Email profjuacy@yahoo.com.br Instagram @profjuacy whats app 65 9 9272 0052

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