Jesus e a estrangeira sírio-fenícia

Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos.

Por Alfredo J. Gonçalves

Uma mulher corre ao encontro de Jesus. Mais uma, entre tantas. E esta, da mesma forma que outras, também é pagã e estrangeira. Trazia no peito grande aflição: “minha filha está sendo cruelmente atormentada por um demônio”. Confiando na fama do Mestre, buscava a cura da menina. Mas, à primeira vista, Jesus sequer a considera. Depois, impelido pela insistência dos discípulos,presta atenção. Sua resposta, entretanto, é rude, quem sabe pedagogicamente dura. “Não é certo tirar o pão dos filhos e entregá-lo aos cachorrinhos” (Mc 7,24-30).

fazer-o-bem-papa-franciscoEstudiosos afirmam que, no contexto daquela época e no jogo das rivalidades e descriminações, os sírio-fenícios eram considerados pelos judeus como “cachorros”. O desprezo e a xenofobia, como em tantas situações de hoje, intoxicavam as relações entre vizinhos. A estrangeira vinha “de fora”, o que incomodava os “de dentro”, “os nossos”. A mulher, porém, insiste, não se dá por vencida. Quem sabe o quanto já padecera com a filha enferma! Há quanto tempo carregava essa filha amada, a qual, apesar do amor materno, não deixava de converter-se em um “pesado fardo”! As penas e a necessidade levam a pobre mulher a esgotar todas as estratégias.

Daí nova súplica da mulher: “Sim, Senhor, é verdade, mas também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos”. Jesus escuta. Escuta não com os ouvidos, mas com o coração. O tempo de detém. O sofrimento não pode ser ignorado e tanto menos atropelado. A dor de quem grita por socorro merece atenção especial. Tal qual três irmãs gêmeas, dor, fome e solidão não podem esperar. A caravana de Jesus não pode avançar indiferentemente. De acordo com a linguagem da parábola do Bom Samaritano, há alguém “caído” à beira da estrada e, quem sabe, à beira da morte. Há alguém com a vida por um fio. É preciso parar. Compromisso algum se iguala à defesa da vida, particularmente quando frágil e vulnerável.

A escuta e o diálogo se impõem. O clamor e a persistência da mulher, mesmo estrangeira(ou justamente por causo disso) exigem uma atenção redobrada. Coisa espantosa e imprevisível, a visão de Jesus sofre uma modificação. “Tua fé te salvou, o demônio já saiu de tua filha”. O encontro, a abertura e o diálogo sempre transformam. E mudam profundamente o destino de inúmeras trajetórias de vida. Com maior razão, ainda, quando o intercâmbio ocorre diante do “outro, estrangeiro, diferente”. No coração de toda pessoa humana e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo Encarnado, recorda-nos o Ensino Social da Igreja. Se se abre espaço para o confronto positivo, valores e contravalores podem dialogar entre si.

Trata-se da pedagogia do “poço”, se assim podemos classificar, a qual, de forma mais detalhada transparece no encontro de Jesus com a samaritana, outra estrangeira (Jo 4, 1-42). Pedagogia que, de resto, será utilizada com frequência por Jesus. Provocar encontros enquanto “percorria todas as cidades e aldeias (...) e sentia compaixão das multidões cansadas e abatidas, ” (Mt 9, 35-38). Abrir-se à situação sofredora do outro, ainda que se trate de encontros proibidos, como o eram em ambos os casos: mulheres e estrangeiras. Nesse poço aberto, água e sede se revelam, se mesclam, se fundem e se saciam de forma recíproca. Revela-se a ambiguidade da condição humana: mistura de água e sede. Ninguém é só água nem só sede, ninguém é água ou sede o tempo inteiro. Por isso, somente à beira do poço, valores e contravalores se encontram, o joio e o trigo se desmascaram, e as pessoas podem se ajudar mutuamente.

Na pedagogia do poço, as partes envolvidas em encontro acabam sendo enriquecidas. O diálogo, quando sincero e transparente, depura e purifica a formação da identidade e da cultura, uma vez que uma e outra, em lugar de estáticas e acabadas, constituem um processo vivo e dinâmico, em constante movimento e maturação. Na complexidade das relações humanas, de um ponto de vista espiritual e teológico, Deus irrompe nas dúvidas, lacunas e incertezas para mudar os rumos da história. O Espírito sacode a mesmice para abrir veredas movas, alargar novos horizontes.

Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço de Proteção aos Migrantes – São Paulo.

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