Liberdade e libertinagem nas eleições de 2022

Projeto de conservadores contra trabalhadores e trabalhadoras e suas famílias.

de Alfredo J. Gonçalves

O processo eleitoral de 2022 obriga a repensar determinados conceitos. A razão disso se bifurca: de um lado, na polarização exacerbada das práticas e das palavras, torna frequente a banalização de noções e valores histórica e cientificamente consolidados; de outro lado, constata-se não sem espanto certo derretimento de cláusulas civilizatórias pétreas, circunstância que levou o polonês Z. Bauman, sociólogo e filósofo, a cunhar o adjetivo “líquido” em uma série de suas obras sobre o medo, o amor, a modernidade, e assim por diante.

lulabolsonaroO quadro nos força à consulta dos dicionários. De acordo com estes, liberdade consiste em um “grau de independência legítimo que um cidadão, um povo ou uma nação elege como valor supremo, como ideal”. Ou também “condição daquele que não se acha submetido a qualquer força constrangedora física ou moral”. Já o termo libertinagem, por outro lado, é definido como “licenciosidade de costumes, conduta de pessoa que se entrega imoderadamente a prazeres sexuais; a prática do libertino”. E ainda “insubmissão, indisciplina”.

A confusão entre os dois conceitos tem sido levada a uma potência máxima, na exata proporção em que se acirram os extremos da polarização política e ideológica. Assim a liberdade, para os seguidores fanatizados do presidente Bolsonaro, passa a ser sinônimo de uma vontade solta e endiabrada de agredir, mentir, distorcer os fatos, descontextualizar as palavras, desautorizar as instituições e instâncias democráticas, desrespeitar os valores mais sagrados da fé, impor a todo custo seu modo insano e insensato de comportamento.

Para essa seita cega, surda e rumorosa, liberdade se mescla com instintos, interesses e paixões desordenados. Daí a apologia da compra, porte e uso de armas e à violência. Daí também a licenciosidade diante das “meninas venezuelanas”, migrantes e vulneráveis, em perfeito acordo com o olhar perverso, depreciativo e libidinoso na relação com a mulher. E daí, enfim, a quebra de regras, leis ou costumes, a indiferença diante da pandemia e da dor, a destruição do fio que tece as relações humanas. A razão é banida em favor dos desejos e instintos selvagens.

Semelhante modo de pensar, por outro lado, é incapaz de deter-se até mesmo na relação com a esfera do sagrado. Tal esfera, em lugar de orientar, corrigir e iluminar os projetos, os caminhos e os passos, ao contrário, é instrumentalizada para justificar toda e qualquer ação, mesmo quando esta última prioriza o caos e a barbárie. Deus se converte em ídolo, o qual, manipulado por mãos iníquas, se presta a toda violência e destruição. A palavra bíblica se converte em ferramenta que torce, inverte e pisoteia aquilo mesmo que deveria defender. Os lugares de culto e oração, vistos com olhar míope e depravado, acabam sendo difamados e conspurcados.

Também os conceitos de “pátria”, “família” e “democracia” – que jamais existem como ideais, mas como construções históricas e conjuntas – atropelam as etapas de uma lenta e laboriosa construção, para encobrir as mazelas da existência concreta. O véu de uma ideologia populista e nacionalista vela e revela, ao mesmo tempo, um modo distorcido de analisar o cotidiano real, e ainda mais, de transformá-lo. O uso e abuso dos símbolos sagrados, patrióticos e familiares torna-se o retrato vivo da ilusão e perversão que contaminam o gado arrebanhado. Emblemático a esse respeito tem sido o sequestro da bandeira e das cores nacionais.

Nesse cenário turbulento e conturbado, a noção de liberdade sofre dupla deturpação: primeiro, restringe-se à libertinagem de um punhado de pessoas da classe dominante, a qual, dispondo do poder, do dinheiro, da influência e da máquina administrativa, impõe sua vontade à nação e ao rebanho incauto. Em segundo lugar, liberdade não significa fazer o que constrói e leva ao bem-estar do maior número de pessoas, e sim campo livre e aberto para todo tipo de farsa e falsidade, violência e humilhação. Ou seja, projeto dos parasitas, conservadores e reacionários contra os trabalhadores, trabalhadoras e suas famílias.

Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço de Proteção ao Migrante, São Paulo.

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