Henry, mártir da violência doméstica

Até quando a sociedade acobertará crimes como infanticídio e feminicídio?

Por Alfredo J. Gonçalves

A expressão do título, mutatis mutandis, bem poderia aplicar-se a Henry Borel Medeiros, um menino de apenas quatro anos, torturado e assassinado na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro – RJ. O bárbaro homicídio, no dia 8 de março de 2021,foi supostamente cometido, pelo padrasto de Henry, Jairo Souza Santos Júnior, médico e vereador pelo Partido Social Cristão da mesma cidade, conhecido como Doutor Jairinho, A morte do garoto contou com a tentativa de ocultamento e cumplicidade de sua própria mãe, Monique Medeiros da Costa e Silva, mulher do Dr. Jairinho. Tanto este quanto Monique sustentaram, inicialmente, que o menino Henry Borel, brincando, havia caído da cama, acidente que o teria levado à morte. Evidentemente, a versão do casal não convenceu a polícia. Ao contrário, exames técnicos realizados no corpo da vítima revelaram vários hematomas e sinais de espancamento. Os golpes comprometeram órgãos vitais da criança, além de provocar hemorragia interna e morte. Após o dito “acidente”, o casal ainda correu com Henry para o hospital, mas o óbito foi inevitável.

borel3Emblematicamente, o Dr. Jairinho é filho de Jairo de Souza Santos, policial militar, conhecido como Coronel Jairo, político filiado ao Solidariedade. Em 2002, Cel. Jairo foi eleito deputado estadual pelo PSC. Sobram indícios de seu envolvimento com as milícias do Rio de Janeiro. Pai e filho constituem uma prova cabal de que, quando entra em jogo dinheiro e poder, chega-se a essa trágica aliança entre policiais militares, milicianos e políticos. Nossa tradicional e histórica corrupção leva a atividades obscuras e estas, por sua vez, costumam deixar um rastro macabro de medo e terror, tiroteios e cadáveres. Os depoimentos do processo em curso – em especial da ex-namorada e amante e da babá do garoto – confirmam que o vereador sempre revelou essa marca de violência para com as mulheres e crianças.

O comportamento de boa parte dos policiais militares e de outra parte dos políticos, não apenas na vida pública, mas também no ambiente familiar, constitui um dos traços característicos de uma sociedade violenta e historicamente patriarcal, como se formou no Brasil. Mais ainda, uma sociedade fortemente hierarquizada e patrimonialista. Nesta, a fazenda, o gado, o negócio e a administração pública devem obediência cega aos “donos do poder” (Raymundo Faoro). Mas não é só isso! A mesma obediência se estende aos escravos, colonos, empregados, capatazes e trabalhadores em geral, como também, embora de maneira por vezes dissimulada e por vezes escancarada, se estende igualmente à mulher, filhos e dependentes. O filme “Pai patrão”, de 1977, dirigido por Paolo e Vittorio Taviani, baseado no romance de GavinoLedda, expõe a tirania do “macho” tanto sobre a propriedade quanto sobre a família.

Felizmente, diversos movimentos feministas ou simpatizantes, somados à lei Maria da Penha, que tem procurado proteger os direitos da mulher, vêm ganhando força redobrada nas últimas décadas. O mesmo se pode dizer quanto à situação vulnerável de tantos meninos e meninas ou jovens e adolescentes, os quais se encontram à mercê seja do autoritarismo doméstico, seja do recrutamento para exploração sexual e trabalhista. Menos mal que atualmente é possível ler na Wikipédia, por exemplo, que “o Estatuto da Criança e do Adolescente é um conjunto de normas do ordenamento jurídico brasileiro que tem como objetivo a proteção integral da criança e do adolescente, aplicando medidas e expedindo encaminhamentos para o juiz. É marco legal e regulatório dos direitos humanos de crianças e adolescentes”. Resta saber até que ponto a lei e a mobilização popular podem fazer frente aos vícios de uma tradição tão tenazmente enraizada no tecido patriarcal e patrimonialista que se instalou em Terras de Santa Cruz.

Por outro lado, com a pandemia da Covid-19, e as consequentes quarentena e isolamento social, não raro a “privacidade familiar” acaba expondo mulheres e crianças a uma violência invisível, mas que deixa feridas, hematomas e cicatrizes, quando não leva ao limite do infanticídio ou do feminicídio. Até quando a sociedade permitirá e acobertará tais crimes?

Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM.

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