6ª. Semana Social Brasileira: ouvir e agir com e pelos sem teto

Ministério Pulico do Rio de Janeiro, da Cartilha de Orientação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania.

Ministério Pulico do Rio de Janeiro, da Cartilha de Orientação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania.

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja (DSI) propõe transformar a realidade social, em mundo marcado por miséria e injustiça

Por Karla Maria | 6ª Semana Social Brasileira *

Às 11h35 de uma quarta-feira de setembro Paula já está na fila da marmita para garantir o almoço do dia que está quente, abafado. A barriga de sete meses pesa e o corpo pequeno, frágil de 23 anos de idade, cansa rápido ao carregar seu segundo menino pelas ruas de São Paulo. Paula é natural de Belém (PA), mas deixou a cidade para trás e desde maio está em situação de rua na terra da garoa.

Paula vive em uma barraca na Praça da Sé, em frente a uma das portas da Catedral. Ela é mais uma entre as cerca de 220 mil pessoas em todo o Brasil que estão sem um teto. “Eu vim porque estava sem dinheiro pra viver lá, achei que aqui arrumaria trabalho, me deram a passagem. Mas não está fácil. A minha sorte é que tenho essas duas aqui e elas me ajudam com tudo, e dividem a barraca delas”, conta a moça que, além da solidariedade das novas amigas, conta com um par de chinelos, um casaco e um macacão tão justo no corpo que é possível ver seu bebê se mexer.

Segundo o estudo “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil”, que utilizou dados de 2019 do censo anual do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas) e que, portanto, não contabiliza o impacto da pandemia, a maioria das pessoas em situação de rua (81,5%) está em municípios com mais de 100 mil habitantes, principalmente das regiões Sudeste (56,2%), Nordeste (17,2%) e Sul (15,1%).

É diante desta realidade que a 6ª Semana Social Brasileira (6ª SSB), uma iniciativa da Igreja Católica por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), movimentos populares e outras Igrejas, vem promovendo um “Mutirão pela Vida: por Terra, Teto e Trabalho” fundamentado na Doutrina Social da Igreja (DSI).

O teólogo jesuíta João Batista Libânio, em seu livro Doutrina Social da Igreja e Teologia da Libertação, explica que a DSI é um conjunto de documentos que refletem o pensamento do magistério da Igreja Católica no que diz respeito às questões sociais e à dignidade do ser humano. Segundo Libânio, a DSI é filha de três fontes diferentes: O direito natural e a filosofia social de valor universal; os elementos bíblicos e a tradição da Igreja; e finalmente os compromissos históricos concretos que oferecem orientação para a ação.

Agir é um verbo bastante conjugado pela 6ª SSB e por todas as pessoas que a fazem acontecer nas ruas e redes sociais

Agir é um verbo bastante conjugado pela 6ª SSB e por todas as pessoas que a fazem acontecer nas ruas e redes sociais, provocando reflexões sobre direitos humanos, espiritualidade e compromisso cristão diante do atual cenário político, econômico e sanitário que o país e a população mais pobre vêm enfrentando.

“A Doutrina Social precisa ganhar carne, corpo, vida. Descer à rua, ver o prato de comida que está na mesa. Muitos dos que assumem a Semana Social Brasileira, o Grito dos Excluídos, as Pastorais Sociais entenderam isso e usam a teoria como uma espécie de apoio à sua prática, e a prática como um selo para esta teoria para ficar coerente”, analisa Fernando Altemeyer Júnior, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Para a também teóloga Rosana Manzini, “trabalho, teto e terra faz parte de uma situação de vida que está profundamente relacionada à dignidade humana, e é isso que a Doutrina Social tem como fundamento principal: a defesa da dignidade humana e dos seus direitos inalienáveis. Morar, trabalhar ter um lugar para o plantio, para dar continuidade à sua família, faz parte integral da Doutrina Social da Igreja”, explica a professora da PUC-SP.

Trabalho, teto e terra faz parte de uma situação de vida que está profundamente relacionada à dignidade humana

Ela, que já se encontrou com o papa Francisco por três vezes, lembra que os três Ts (trabalho, teto e terra) vindos do papa manifestam o desejo dele em retomar a Doutrina Social da Igreja (DSI) como um guia orientador daqueles que professam o catolicismo, trazendo e valorizando cada um e cada uma na sociedade. Um desafio ainda a ser superado, já que a DSI, em sua opinião, ainda não é difundida entre a grande maioria dos fiéis, o que limita a compreensão da atuação da Igreja Católica no mundo.

“A doutrina não faz parte da formação do leigo e ela tinha que estar presente desde o curso da iniciação cristã até o curso de noivos, porque como a família cristã que está se constituindo se apresenta e atua na sociedade? [...] Nós estamos perdendo muito por uma compreensão de Igreja que dispensa o compromisso social”, avalia.

O Compêndio da DSI apresenta-se como parte integrante da evangelização da Igreja. “Daquilo que diz respeito à comunidade dos homens — situações e problemas referentes à justiça, à libertação, ao desenvolvimento, às relações entre os povos, à paz —, nada é alheio à evangelização e esta não seria completa se não levasse em conta o recíproco apelo que se continuamente se fazem o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social do homem.”

O que há de mais concreto do que lutar pela própria terra, teto e trabalho? No Brasil de 2020, não falta combate. O desalento frente ao atual cenário impacta na saúde física e mental das pessoas. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Mensal (PNAD Contínua) de junho, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego no Brasil subiu para 13,3%, atingindo 12,8 milhões de pessoas, sendo que dentre elas 5,7 milhões deixou de procurar emprego em meio à pandemia de coronavírus por precaução, medo ou desalento.

Dentre as pessoas empregadas, observamos a alta da informalidade. Também segundo o IBGE, há cerca de 20 milhões de pessoas trabalhando por conta própria no país, ou seja, estão sem vínculos empregatícios, sem carteira de trabalho registrada ou em documento similar, com rendas que dependem diretamente do número de vendas ou prestações de serviço. Caso fiquem doentes, impossibilitados de trabalhar por algum período de tempo, a renda, que já é menor que a de trabalhadores formais, sentirá o impacto. É o que vemos com os motoristas de transporte por aplicativo, entre tantos outros exemplos.

Basta andar pelas ruas de nossas cidades para constatar que mesmo em tempos de algum isolamento as regiões urbanas estão cheias de trabalhadores informais sem garantia de direitos. E o cenário se agrava à medida que há desemprego ou diminuição expressiva da renda, levando as pessoas ao desespero e a fome a muitos lares.

Foto: Karla Maria

Foto: Karla Maria

Surgimento da Doutrina e o trabalho

A DSI aborda a questão do trabalho em vários de seus documentos e, diferente do que se imagina, as reflexões em torno da exploração no mundo do trabalho não surgiram em 1891 com a publicação da Rerum Novarum. “Ali, em 1891, inicia a história oficial da Doutrina Social com os documentos do magistério pontifício respondendo a cada época histórica e a cada problema, como o subdesenvolvimento nos países pobres, a questão da democracia, mas você tem todas as fontes anteriores que começam na Sagrada Escritura e passam por toda a tradição da Igreja”, explica Rosana.

Na Encíclica Rerum Novarum há a defesa da dignidade dos trabalhadores. Linhas que 129 anos depois se encaixam no cenário que atravessamos. “É vergonhoso e desumano usar dos homens como vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços”. Pio 11, em 1931, faz eco desta defesa. “O trabalho não é um simples produto comercial, mas deve reconhecer-se nele a dignidade humana do operário, e não possa permutar-se como qualquer mercadoria”, conforme consta na Quadragesimo anno.

A luta pela terra, pelo Brasil

O Brasil é um dos países com maior concentração de terras do mundo, já que aqui estão os maiores latifúndios. “Concentração e improdutividade possuem raízes históricas, que remontam ao início da ocupação portuguesa neste território no século 16. Combinada com a monocultura para exportação e a escravidão, a forma de ocupação de nossas terras pelos portugueses estabeleceu as raízes da desigualdade social que atinge o Brasil até os dias de hoje”, explica o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Teto (MST).

Sujeito na luta por terras no Brasil, o MST assumiu uma segunda missão neste período de pandemia, dando a tal da “carne” à Doutrina Social da Igreja. Com a alta dos preços de alimentos básicos como óleo e arroz, somada à queda da renda da população brasileira, o MST, que é um grande produtor de arroz, manteve seus preços acessíveis à população, diferente do mercado “tradicional”, e vem fornecendo marmitas para diminuir a fome dos mais pobres. Toneladas e toneladas de alimentos orgânicos e solidariedade foram distribuídas pelo país.

“A solidariedade é um dos princípios do MST e, mais do que isso, da classe trabalhadora”, conta David Zonoy Cukiermans, da coordenação nacional do MST em São Paulo.

A reforma agrária torna-se, portanto, além de uma necessidade política, uma obrigação moral.

Sobre a terra e seu uso, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja destaca que “em alguns países é indispensável uma redistribuição da terra, no âmbito de eficazes políticas de reforma agrária, a fim de superar o impedimento que o latifúndio improdutivo, condenado pela doutrina social da Igreja, representa a um autêntico desenvolvimento econômico”. Conclui registrando que “a reforma agrária torna-se, portanto, além de uma necessidade política, uma obrigação moral...”

Mas no Brasil de 2020 as obrigações morais e necessidades políticas respondem a outros valores. Levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgado em abril deste ano revela que o Brasil registrou, em 2019, 1.833 conflitos no campo, o número mais elevado dos últimos cinco anos e 23% superior ao de 2018. O dado reúne ocorrências relacionadas às disputas por terra, água e conflitos trabalhistas.

Como profetas de seu tempo, agentes de pastoral e membros de movimentos sociais seguem compartilhando informações sobre os direitos de cada cidadão e cidadã, compartilhando esperança através de uma espiritualidade viva, porque entenderam seus papéis como sujeitos da sociedade, como gente que deve lutar por terra, teto e trabalho.

“Os três Ts de Francisco são algo novo, porque querem colocar um novo sistema que não é socialismo, nem comunismo, mas também não é capitalismo, é um debate sobre sistema. Por que o arroz subiu, por exemplo? Tirar arroz da mesa do brasileiro é matá-lo e aqui a Igreja tem que entrar com força e não ficar em cima do muro ou se contentar com demagogia”, provoca o professor Fernando Altmeyer.

Foto: Karla Maria

Foto: Karla Maria

Fratelli Tutti

No dia 3 de outubro, em Assis (Itália), o papa Francisco assina sua terceira encíclica, intitulada Fratelli Tutti. O texto sobre a fraternidade e a amizade social se insere no conjunto de cartas que até o momento trataram da fé e do cuidado da casa comum. “Ela quer pensar o coletivo, despertar o coletivo. Francisco é movido pela Teologia do Povo. A carta é para animar quem está nas pastorais, para acordar quem anda dormindo ou manipulado. Ele vai lançar desafios: e os refugiados, e a solidariedade aos migrantes, como ficam os novos projetos políticos, como vencer a xenofobia e o fascismo que está aí crescente, como propor algo concreto à juventude, e o pós-Covid-19?”.

Para Altemeyer, o papa não quer discutir o novo normal. “A normalidade que nos levou a essa morte, à Covid-19, é produto do assassinato deste planeta. O papa diz que precisamos enfrentar isso”, conclui.

Foto: Ministério Pulico do Rio de Janeiro, da Cartilha de Orientação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania.

Foto: Ministério Pulico do Rio de Janeiro, da Cartilha de Orientação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania.

* Karla Maria é jornalista e autora dos livros-reportagem Mulheres Extraordinárias (2017), Irmã Dulce, a santa brasileira que fez dos pobres sua vida (2019) e O Peso do Jumbo, histórias de uma repórter de dentro e fora do cárcere (2010), todos pela Paulus Editora.

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