Menina de dez anos

Perdoa-nos a todos e todas pelo sofrimento que se abateu sobre teu corpo e tua alma.

Por Alfredo J. Gonçalves*

Perdoa-nos a todos e todas, Menina de dez anos,
pelo sofrimento que cedo se abateu sobre teu corpo e tua alma;
há quatro anos, vítima no interior mesmo do “lar sagrado” que a devia proteger,
o que resultaria numa gravidez indesejada, com suas consequências unilaterais.
Não, não queremos saber teu nome, tua família nem teu endereço;
tampouco desejamos chafurdar em teus segredos e mistérios de criança,
precocemente atropelados pela trágica trajetória, em espiral e crescente,
do uso e abuso, estupro e violência contra a mulher – cujo fim é o feminicídio.

coronavirus_olhar-a-pessoa-com-o-coracaoPerdoa aos que, moralizantes, insistimos em apontar o dedo em riste,
aos que, em lugar do criminoso, tentamos linchar a vítima inocente e indefesa,
e aos que, de tua infância rota e interrompida, fazemos um espetáculo.
Sentados e protegidos confortavelmente nos sofás de nossas casas,
acostumamo-nos a consumir, através dos jornais, telejornais e Internet,
histórias sinistras e macabras, que tendemos a engolir e naturalizar
como se fossem notícias normais do dia-a-dia, da mesma forma que se consomem
roupas e calçados, bolsas e viagens, gols e futebol, celulares e falsas notícias.

Na pessoa do tio homem, macho e covarde, física e moralmente miserável,
logo medroso e desconhecido, foragido da lei e das responsabilidades;
perdoa-nos o comodismo da banalidade e da impotência, ambas hipócritas.
Perdoa-nos quando, não obstante a clara evidência em contrário,
longe e ao mesmo tempo perto dos acontecimentos que nos circundam,
sentimo-nos e agimos como se fôssemos protagonistas e sujeitos da história,
um tecido social, político e econômico que, à revelia dos “sábios e conscientes”
é costurado diariamente por nomes e rostos invisíveis, “descartáveis” e silenciosos!...

No mapa da existência, seguimos nos achando uma espécie centro ou epicentro
das coisas e dos fatos, das relações e polêmicas, da continuidade e ruptura:
ponto de convergência do cotidiano agitado, voraz e veloz, das vidas frenéticas;
redemoinho sem norte, destino ou direção, girando em falso e em vão,
Sempre em busca de ventos fortes, raios furiosos e chuvas torrenciais.
Novidades febris que venham sacudir a letargia e trazer sentimentos e sensações,
capazes de preencher o vazio inócuo desta ilha do aqui e agora em que nos instalamos,
onde o barco dos “tempos modernos” encalhou num arquipélago de fantasias
de uma geração volátil e virtual, efêmera e transitória, mas em busca de novo rumo,
abandonada, sedenta e solitária no hoje imediato, desligada do passado e do futuro,
sem saber ao certo o que fazer no presente – com seus apelos, clamores e desafios.

Sós e embrutecidos, ébrios ou eufóricos – farejamos e nutrimo-nos de escândalos;
por isso, Menina de dez anos, perdoa-nos por que não sabermos o que fazemos!
Nosso silêncio e indiferença favorecem a ação criminosa dos tios perversos,
e que, perversamente, se ocultam ao abrigo da “inviolabilidade do espaço familiar”;
a apatia parece paralisar nosso cérebro e nossas mãos duras e cerradas;
perdoa-nos e ensina-nos a despertar para a realidade viva, nua e crua
das ruas e becos, dos porões e periferias, dos “infernos humanos” sobre a terra,
em vista de participar na construção de um “céu humano-divino”, onde ninguém será excluído!

*Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro.

Deixe uma resposta

oito − 4 =