Polarização e Doutrina Social da Igreja

Em tempos de crise, a distância entre o pico e a base da pirâmide social tende a aprofundar-se.

Por Alfredo J. Gonçalves*

Os convertidos em geral tendem a desenvolver e cultivar uma espécie de moralismo de tipo maniqueísta, marcado por um maior ou menor grau de dualismo. Não raro, fixam fronteiras rígidas, precisas e intolerantes entre o bem e o mal, os “nossos” e os “outros”, os “de dentro” e os “de fora”, os “fiéis” e os “infiéis”, os “patriotas” e os “inimigos da pátria”. Alguns casos emblemáticos deixaram as digitais em seus escritos, como Paulo de Tarso, Agostinho de Hipona, Calvino... Conversão e intransigência moram vizinhas. Em se tratando de um Brasil hiperpolarizado, muitos dos que passam a essa postura dualista começaram a sair às ruas e a posicionar-se na política apenas nos últimos anos. Falando ainda do território brasileiro, uma outra polarização divide os grupos politicamente mobilizados em manifestações públicas, sejam elas reais ou virtuais: os que se dizem de direita e os que se identificam com a esquerda; os que vestem as cores “verde e amarela” e os que preferem a cor “vermelha”.

moradores-de-rua-1-2280x1052_cAmbas essas polarizações, entretanto, escondem um antagonismo bem mais profundo, cujas raízes históricas e estruturais, em terras de Santa Cruz, mergulham na noite dos tempos. Trata-se do abismo crescente entre os que vivem na carência e os que habitam a opulência; os que para sobreviver praticamente chafurdam do lixo e os que acintosamente navegam no luxo. Tanto a carência quanto a opulência encontram-se fora do espectro elástico dos direitos humanos. A primeira por falta dos direitos básicos e essenciais, a segunda por excesso de bens supérfluos e pelos privilégios desfrutados ao longo dos séculos. A consequência é que uma e outra, como face e contraface da mesma moeda, juntas, combinadas e interdependentes, concentram ao mesmo tempo renda e exclusão social.

Agravamento

No rastro perverso da pandemia Covid-19, as polarizações tendem a agravar-se. Os ricos se tornam mais ricos “às custas” dos pobres que se tornam mais pobres, alertava já no início da década de 1980 o então Papa João Paulo II. Desde a inauguração da Doutrina Social da Igreja, porém, com a publicação da Carta Encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII, a denúncia sobre as desigualdades sociais toma espaço relevante no corpus secular desse ensinamento pastoral. O núcleo fundamental de semelhante alerta profético consiste na sequência entre a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965), aprovada pelo Concílio Vaticano II, e a Carta Encíclica Populorum Progressio (1967), ambas coordenadas pelo cardeal Montini, o qual, com a morte de João XIII, viria a se tornar o Papa Paulo VI.

Tomemos dois estudiosos contemporâneos que têm se debruçado longamente sobre a temática das assimetrias socioeconômicas: o economista francês Thomas Pikety e o sociólogo brasileiro Jessé José Freire de Souza, respectivamente mais perto de nossos dias e mais perto de nossa terra. Um e outro, com farto material de dados, números, estatísticas e análises, põem a nu um sistema em que a própria produção encontra-se contaminada pelo vírus de uma disparidade progressiva. Mais grave ainda, a distância entre o pico e a base da pirâmide social tende a se aprofundar em tempos de crise. Em outras palavras, os desequilíbrios econômicos e sociais acentuam-se na proporção inversa do crescimento de bens produzidos.

Por isso, não basta proclamar o aumento do PIB (Produto Interno Bruto) como panaceia para todos os males e crises. Além da quantidade a ser produzida, é necessário e urgente perguntar como serão distribuídos os frutos somados do trabalho humano. E mais, em termos de produção é preciso perguntar ainda o que, como e para quem produzir? Como envolver as instituições da sociedade civil e demais agentes sociais sobre as decisões econômicas a serem tomadas? Como criar novos canais, instrumentos e mecanismos de participação popular, no sentido de ampliar o processo democrático de produção-comércio-consumo? E tudo isso sem deixar de lado seja a preservação da vida em todas as suas formas (biodiversidade e o equilíbrio ecológico), seja o legado sustentável para as gerações futuras.

*Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, SP.

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