Católicos conservadores idolatram Trump e atacam Francisco abertamente

A adesão dos grupos católicos conservadores a Trump cresceu desde sua vitória em novembro.

Por Mauro Lopes

Grupos católicos conservadores ao redor do mundo realizam um movimento significativo: idolatram o agora presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, enquanto aprofundam seus ataques indiretos e diretos ao Papa Francisco, com virulência cada dia maior. Para isso, utilizam publicações, sites, blogs, numa rede que reúne leigos, leigas e clérigos. A Igreja, na concepção deles, fala pela voz do cardeal que se apresenta como face pública da oposição, Raymond Burke.

Trump-SalviniNos últimos dias, os “contra” realizaram dois movimentos significativos, um que explicita ainda mais sua oposição pública e agressiva contra Francisco e outro que indica uma articulação destes grupos com a extrema direita alinhada a Trump na Europa: 1) pregaram cartazes ofensivos ao Papa em vários bairros de Roma, de maneira clandestina, mas cujo conteúdo de ataques a recentes decisões do Papa na Ordem de Malta e contra a corrupção em institutos e católicos; 2) o cardeal Burke manteve na última quinta (2) uma discreta e longa reunião com Matteo Salvini, líder da Liga Norte, partido de extrema direita xenófobo italiano, que antagoniza-se abertamente com o Papa e é um dos aliados preferenciais de Trump na Europa.

O júbilo destes grupos com a eleição de Trump está vinculado a dois eixos do novo governo:

“Defesa da vida” – sob esta expressão que é chave para o governo Trump e os conservadores cristãos está toda a gama de pensamento e iniciativas de fundo “moralizador”, como a negação ao direito de as mulheres poderem abortar; a defesa da mulher “bela, recatada e do lar”; discriminação agressiva contra qualquer relação homoafetiva e negação dos direitos das pessoas homossexuais, bissexuais, transexuais, transgêneros e travestis; censura a qualquer iniciativa educacional que não veículos os valores de uma suposta “moral cristã”.

Supremacia cristã contra “infiéis”, um dos bordões de Trump. Esta bandeira tem levado tais grupos a manifestarem apoio às medidas do republicano contra os refugiados. A reunião de Burke com Salvini indica uma adesão pública e uma articulação política cada vez maior destes grupos com os políticos de direita xenófobos. A lógica da “supremacia cristã” representa um deslocamento amplo dos conservadores católicos que, com a perda de espaço da Igreja ao longo da segunda metade do século XX, estão aos poucos abandonando o projeto de hegemonia católica, hoje completamente irrealizável, e substituindo pela ideia da hegemonia “cristã” em aliança com os evangélicos fundamentalistas, tendo como plataforma comum a cruzada moralizadora e discriminatória. É curioso que os conservadores defendem o “ecumenismo moralizador” sob a liderança do presbiteriano Trump enquanto hostilizam as iniciativas ecumênicas de Francisco na direção dos luteranos, por exemplo, considerando-as como uma “rendição” ao pensamento de Lutero.

A mais recente onda de euforia com Trump deveu-se ao anúncio do nome de Neil Gorsuch para a Suprema Corte dos EUA. “Trump nomeia o pró-vida Trump Neil Gorsuch para a Suprema Corte” – esta foi a manchete do site do site católico ultraconservador estadunidense LifeSiteNews (algo como “site de notícias sobre a vida”) cujo moto é uma campanha continuada e feroz contra o direito ao aborto e todo elenco de bandeiras moralizadoras. A manchete deu o tom da cobertura de todos os sites conservadores católicos, e encontrou sua versão “tropicalizada” numa campanha de assinaturas lançada por conservadores a favor da indicação ao STF de Ives Gandra Martins Filho, atual presidente do TST e membro da Opus Dei, afinal derrotado pelo ministro da Justiça de extrema direita, Alexandre de Moraes. Um dos líderes da campanha pró Gandra foi o padre ultraconservador Paulo Ricardo – que tem mais de 1,3 milhão de seguidores no Facebook- que espalhou um texto “recorta-e-cola” inspirado na campanha de Trump: “Ives Gandra Filho parece ostentar apenas um ‘defeito’: pensar como a maioria dos brasileiros pensa. Sim, porque, independentemente da religião a que pertençam, a verdade é que a maior parte dos brasileiros é contrária ao aborto, é contrária ao divórcio, é contrária ao casamento gay, ao mesmo tempo em que é a favor da vida, a favor da família e a favor do casamento monogâmico natural. Com a nomeação de Ives Gandra para o Supremo, finalmente teríamos, na mais alta instância do Poder Judiciário, um ministro de identidade cristã, capaz de falar diretamente aos cidadãos de bem de nosso país.”

A adesão dos grupos católicos conservadores a Trump cresceu desde sua vitória em novembro e chegou à beira da idolatria a partir da posse em janeiro. “Seremos protegidos por Deus”, este trecho do discurso Trump foi o escolhido pelo site espanhol InfoCatólica para título da reportagem sobre a posse do novo presidente e todo vazado em torno das referências a Deus e ao desejo de supremacia americana (branca e cristã) e deu o tom da cobertura dessas mídias ao redor do mundo. A celebração destes grupos tem a mesma lógica dos evangélicos fundamentalistas nos EUA e mundo adentro: “Deus está no poder”. Pode parecer espantoso, mas foram estes os termos usados no editorial assinado por Steve Jalsevac, fundador e presidente do LifeSiteNews sobre a posse do republicano: “Trump traz Deus de volta ao governo federal após longa ausência”; no Brasil, o padre Augusto Bezerra, um dos braços direitos do arcebispo do Rio, Orani Tempesta, comemorou assim em sua página no Facebook e no seu blog: “Cristãos de volta ao topo da pirâmide internacional para desfazer o trabalho sujo do materialismo ateu e de toda espécie progressista”.

A defesa da “supremacia cristã”

A contraface da idolatria a Trump é a maneira como estes grupos católicos tratam o Papa Francisco e a explícita oposição entre a figura de um e outro. “Com a vitória de Trump, tornar-se- á o Papa Bergoglio o líder da esquerda internacional?” foi o título de artigo publicado pelo italiano Il Tempo, de autoria de Roberto de Mattei, presidente da ultraconservadora Fundação Lepanto e diretor da agência Corrispondenza romana –o texto foi rapidamente distribuído na Internet pelos rigoristas. Não é diferente no Brasil, onde o site ultraconservador Fratres in Unum , celebrou assim eleição americana: “Vitória de Trump, derrota de Francisco”, para no corpo do texto explicitar: “Francisco está na contramão do povo, na contramão da realidade. Que os bispos acordem. Se eles continuarem na mesma estrada, acabarão deixando a Igreja como apêndice da história, e eles mesmos se tornarão cada dia mais inócuos, distantes dos fiéis e emudecidos pela vida. É, hoje deve ser um dia difícil em Roma. Deus salve a América!”.

Logo depois da posse de Trump, um grupo de católicos ultraconservadores enviou uma carta a ele com ataques violentos a Francisco e solicitando uma “investigação” sobre as relações entre o Vaticano e o governo Obama. O texto explicita a posição xenófoba conservadora: “Durante a campanha presidencial de 2016, ficamos atônitos ao testemunhar o Papa Francisco atuando contra as políticas propostas para proteger nossas fronteiras, chegando mesmo a sugerir que você não é um cristão. Apreciamos sua resposta rápida e pontual a essa acusação vergonhosa.”

Os conservadores estão particularmente indignados com a recente intervenção do Papa na Ordem de Malta e contra a ordem dos Franciscanos da Imaculada, organizações onde aconteceu de tudo e mais um pouco, de desmandos a desvios e corrupção. Adicionalmente, os cartazes são mais uma tentativa de tornar o cardeal Burke, não acidentalmente patrono da Ordem de Malta, numa “vítima”. Foram estes os motos dos cartazes contra o Papa no fim de semana em Roma que, sob a foto de um Francisco aparentemente mal humorado estampavam o texto (em parte escrito no dialeto Romanesco): “France, interditaste congregações, afastaste sacerdotes, decapitaste a Ordem de Malta e os franciscanos da Imaculada, ignoraste cardeais… mas onde está a tua misericórdia?”.

Pouco a pouco os “contra” vão deixando claro que os ataques à carta Amoris Latetitia do Papa, que abre a comunhão dos divorciados em segunda união, guarda pouca relação com o tema em si e sua preocupação com os casais e prende-se cada vez mais ao inconformismo com a perda do poder na hierarquia da Igreja, depois de 35 de hegemonia. Os conservadores deixam escapar aqui e ali que sua preocupação verdadeira é com as mudanças nos postos chave da Cúria romana e com a nomeação de cardeais e bispos que não rezam a cartilha rigorista. Temem que depois de Francisco venha outro Francisco.

Não deixa de ser irônico que eles, que governaram a Cúria e, dela, o catolicismo global com base em excomunhões, censuras, silêncios e terror, agora usem estas palavras para qualificar a primavera da Igreja. É a clássica estratégia da inversão, utilizada pelos autoritários e moralizadores ao longo da história, habilidade levada à culminância na ascensão do nazismo na Alemanha.

Os conservadores plantam um cisma na Igreja, mas acusam o Papa de “cismático”; recorrem a ameaças de toda ordem, mas dizem que Francisco é “autoritário”; defendem os poderosos, as guerras e os massacres contra os pobres mas afirmam que Bergoglio é “contra a vida”; acobertaram e defenderam os pedófilos na Igreja por décadas mas agora dizem que o Papa é “imoral” e “leniente” com eles; malbarataram os recursos financeiros da Igreja, tomando-os para si próprios, para “la dolce vita”, para financiar projetos megalomaníacos deles e seus apaniguados e agora afirmam que há “corrupção”. São monarquistas até a raiz do cabelo e agora apontam o dedo contra Francisco com a acusação de ele agir como um “soberano”, um “rei”.

Há um “lapso narrativo” no discurso conservador corrente, pois um de seus apelos sempre foi o da obediência canina ao Papa como um dogma, similar ao da “virgindade perpétua” de Maria. Agora já se sabe que o dogma só é válido quando o bispo de Roma é um da turma.

Montagem fotográfica publicada em sites conservadores: o “herói” Trump a quem o “esquerdista” Francisco precisaria temer.

A digital dos conservadores ficou patente na reação à iniciativa difamatória do fim de semana contra o Papa. Roberto de Mattei, da Fundação Lepanto, ecoou o texto dos cartazes num artigo que encerrou assim: “’Misericórida, misericórdia, quanta violência se exerce em seu nome!’, poderiam repetir as vítimas do pontificado da misericórdia”. O título do blog A cegonha da Torre, no Infovaticana, foi na mesma linha: “A que o Papa armou se volta contra ele. Muitos cartazes críticos em Roma”. O tema de ambos não eram os refugiados ou os pobres: as “vítimas” são os poderosos da Ordem de Malta e dos grupos rigoristas.

Terão sucesso em sua campanha cujo objetivo, aclara-se a cada dia, é derrubar Francisco? Há visões distintas, de acordo com a posição do analista. Bispos e vaticanistas conservadores alardeiam que são majoritários entre os cardeais. Os que estão com Francisco tendem a menosprezar os “contra”, mas já reconhecem sua força crescente, como o fez recentemente o padre argentino Carlos María Galli, membro da Comissão Teológica Internacional. Ele afirmou que a os conservadores representam uma “oposição minoritária, porém crescente”, capaz de fazer “muito barulho” (aqui).

O fato é que os conservadores são poderosos, articulam-se com o poder econômico e político, têm uma vasta rede midiática e estão nervosos, agressivos, enraivecidos.

Fonte: outraspalavras.net

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