Democracia diurna e noturna

Alfredo J. Gonçalves *

Tomo emprestada uma imagem do teólogo russo George Florovsky, citado por Hans Küng (em sua obra Cristianesimo, essenza e storia, BUR, settima edizione, Torino, 2013), a qual, embora originalmente referida ao contexto do cristianismo, pode iluminar a prática política esquisofrênica exercida hoje nas democracias ocidentais de qause todos os países (se não todos). De acordo com H. Küng, para o teólogo russo, «sobre a ‘cultura diurna' cristã do espírito e do intelecto», existe, «uma ‘cultura noturna' que se esconde obstinadamente ao longo dos tempos, fugindo ao controle, à avaliação e à purificação do pensamento crítico». Segundo o mesmo autor, trata-se de um «mundo obscuro, fato de embriaguez, superstição e dissolução, de barbárie e de violência (...), com pouca ou nenhuma possibilidade de conversão, de depuração e de renovação».

Como se vë, não é preciso muita imaginação para traduzir essa metáfora diurna/noturna para a atividade política de nossos dias. Também neste caso, a esquizofrenia é estridente. A política diurna se rege pelas cláusulas pétreas da Constituição Federal, mergulha suas raízes nos princípios básicos dos pioneiros da Independência dos Estados Unidos (1776) ou da Revolução Francesa - liberdade, fraternidade e i gualdade. No palco iluminado do Congresso Nacional, Câmara e Senado, vestida a rigor, se apresenta com uma retórica inflamada e discursos altamente rebuscados, proferidos em geral para poltronas vazias ou ouvidos moucos. Cenário onde todos falam, mas poucos são capazes de ouvir. Diante dos espectadores, especialmente dos microfones, câmeras e holofotes da mídia, fundamentam-se estritamente no protocolo, no regimento e nas regras escritas, até porque a legislação favorece os interesses das corporações a que pertencem grande parte deles. Impecáveis representantes do povo (ou parte do povo).

Ja a política noturna opera preferentemente nos bastidores, por trás das cortinas do palco e reza em outra cartilha. Atividade obscura e subterrânea, que trânsita por vias tortuosas e distorcidas nos labirínticos corredores da Rex Publica. Neste caso, predomina o poder encoberto, ou até mesmo explícito, dos senhores e coronéis, com suas tradicionais oligarquias e currais eleitorais. A força do sangue, do berço, da classe ou da riqueza se sobrepõe à racionalidade da lei; o «compromisso de compadrio» ou de «companheirismo» está acima da objetividade das urgências do projeto nacional. Prevalece, em lugar disso, o projeto de poder. O o poder da força e do chicote, ainda que tenha se tornado e extremamente polido, supera toda e qualquer argumentação.

O resultado é aquilo que estamos acostumador a ver no dia-a-dia: tráfico de influência que costuma beneficiar parentes, amigos, compadres e toda a companheirada; Congresso Nacional transformado em verdadeiro balcão de negócios, onde se compra e vende votos, benesses e privilégios; uso indevido dos bens públicos para fins privados, ou puro e simples desvio do patrimônio da União em favor dos que exercem maior poder de barganha (cfr. Conceito de patrimonialismo de Raymundo Faoro, em Os donos do poder); permanência dos tradicionais corporativismos, populismos, clientelismos para não falar de outros « ismos » tão ou mais nocivos ; corrupção como atitude habitual, ilustrada pelo processo do mensalão, em que os honestos tornam-se não somente exceção, mas fazem o papel de bobos; utilização do mandato para a apropriação privada dos bens públicos, materiais e simbólicos, enquanto fonte e meio de enrequecimento, os quais, por sua vez, permitem manter cadeira cativa (às vezes vitalícia) no poder através da compra de votos; campo livre para a promiscuidade entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, os quais, ao mesmo tempo que se protegem reciprocamente, podem promover linchamentos políticos, purgando a corporação com eventuais bodes expiatórios.

Mas a mesma esquizofrenia tem uma face ainda mais preocupante. Eleitos com o voto popular, através do sufrágio universal, os políticos profissionais rapidamente se desvinculam de suas bases eleitorais, dos grupos ou segmentos que dizem representar. Usam as massas para alcançar o poder, mas depois não sofrem qualquer escrúpulo em descartá-las, como quem queima a ponte após atravessar o rio, ou, chegado ao topo da meta, joga fora a escada. Verifica-se um descolamento progressivo entre as necessidades básicas da população de baixa renda, por um lado, e os temas, argumentos e interesses em pauta nas sessões da Câmara e Senado, por outro. A distância chega a ser tão grande que os noticiários televisivos e radiofônicos ou as páginas dos jornais, quando comentam os assuntos políticos em debate, parecem falar uma linguagem completamente estranha.

É como se os extraterrestres estivessem conversando entre si, sem qualquer respeito pelo que ocorre entre os pobres mortais de nosso planeta. A roupa e o pão diários, o desemprego e subemprego, as filas nos postos de saúde e hospitais, a falta de vagas na escola, os altos aluguéis e a precariedade das habitações, os ônibus e trens lotados, o preço dos produtos essenciais, as taxas e impostos exorbitantes, a insegurança crônica das ruas, a droga e a violência que recai especialmente sobre jovens, muheres e crianças - tudo isso são clamores da planície cujos ecos, ao que tudo indica, não conseguem alcançar as alturas do Planalto. Ente lá e cá abre-se um fosso crescente de interesses diametralmente opostos.

Resulta que eleitores e eleitos parecem circular em órbitas diferentes. No topo da escala social, os olhares se fixam predominantemente sobre os indicadores econômicos: indice da bolsa de valores, cotação do dólar, valor da grama de ouro ou do barril de petróleo, juros bancários, lucros das empresas... Enquanto que na base da pirâmide, os indicadores sociais ocupam o primeiro plano, isto é, os indicadores que medem a situação real da população, sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais, tanto com relação à dignidade da pessoa humana (Doutrina Social da Igreja) quanto no que se refere a uma cidadania justa e digna (Declaração Universal dos Direitos Humanos). De fato, do ponto de vista de quem habita o Planalto, por que preocupar-se com a sobrevivência, lá em cima, se esta encontra-se perfeitamente assegurada? Os que moram no andar superior podem dar-se ao luxo de cultivar a retórica, as elocubrações político-filosóficas, as artes e até uma espiritualidade intimista e desencarnada. Somente quem possui a vida material assegurada pode limitar sua vivência religiosa às «coisas do alto», ou seja, à dimensão puramente esperitual. Ao contrário, para aqueles que não sabem se terão o que comer no dia de amanhã ou se terão dinheiro para o aluguel e o pão, a vivência religiosa contém forçosamente uma dimensão material. Diante da luta pelo «pão nosso de cada dia», tudo o resto torna-se «luxo de poucos».

Este desencontro entre políticos, juízes, governadores, perfeitos e autoridades em geral, de uma parte, e a população de baixa renda, de outra, abre espaço para uma política noturna, onde tudo se compra e tudo se vende, onde tudo é possível - ao lado da política diurna que procura seguir as regras da chamada democracia representativa. Ambas caminham, simultaneamente, em vias paralelas e entrelaçadas.

* Alfredo J. Gonçalves, CS é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos em Roma.

Fonte: Alfredo J. Gonçalves / Revista Missões

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