Do Mensalão aos mensalinhos

Alfredo J. Gonçalves, CS *

Por um largo período, as atenções da grande mídia, da política, das ruas e de cada um de nós estiveram concentradas no julgamento do chamado "Mensalão". Poucas vezes uma expressão ocupou tanto espaço por tanto tempo. O Supremo Tribunal Federal (STF) passou longas sessões sob a mira dos holofotes, dos microfones e das câmeras. Um prato cheio para quem vive, estuda e trabalha na área do Direito. Mas também um momento inusitado para uma polêmica exaustiva e inconclusa.

Praticamente ao final do espetáculo, e jogando um pouco com as palavras, talvez seja a hora de passar do Mensalão aos mensalinhos. É conhecida e notória a prática do uso indevido do dinheiro público em todo o território nacional. Prática amplamente disseminada tanto ao longo de nossa trajetória histórica quando no organismo vivo da sociedade brasileira. E convém não esquecer que o campo da política está longe de ter o monopólio desse comportamento. Ele contagia e estende-se a outros membros e células do organismo social como um todo.

Mas o uso incorreto da rex publica não se esgota na obscura manipulação do dinheiro. A isso é preciso acrescentar a utilização da força real e simbólica do poder para o tráfico de influência; o apadrinhamento de amigos e parentes, na consolidação de oligarquias ainda vivas e ativas, embora em decadência; a manutenção das benesses e privilégios das classes dominantes, em detrimento de quem mora no primeiro piso da pirâmide social; a compra e venda de votos, cargos públicos ou de apoio político; a dilapidação irresponsável dos cofres da União, Estados e Municípios, em favor de interesses pessoais, familiares ou corporativistas...

Aqui estamos no coração escuro e labiríntico da corrupção. E vale sublinhar, uma vez mais, que o sangue bombeado pelo coração circula até o extremo pelas veias de todo o organismo. Se o sangue está contaminado, o veneno se espalha, irrigando o tecido social, político e cultural no seu conjunto. Numa metáfora médica, vírus e bactérias navegam com rapidez pela corrente sanguínea. No trato da coisa pública, os vírus e bactérias correspondentes percorrem laços e amizades, alianças e contratos, compromissos e parcerias de toda sorte. O que vale tanto para os altos escalões quanto para o cotidiano das relações humanas.

Com frequência preocupante, na história remota e recente do país, constata-se a apropriação privada dos bens públicos, sejam eles de caráter material ou simbólico. O poder de mando traz custos e benefícios nem sempre contábeis, mas, em geral, socializados os primeiros e privatizados os últimos. Não raro, o mandato político serve de trampolim para novos empreendimentos particulares, nebulosamente mesclados com a busca do bem comum. Tais empreendimentos (familiares, grupais ou corporativistas), por seu turno, ajudam financeiramente a garantir a cadeira cativa na área pública, com seus rendimentos nada desprezíveis.

Disso resulta que, por vezes, o próprio cargo político (no legislativo, executivo ou judiciário) converte-se, ele mesmo, em um verdadeiro empreendimento de ordem privada e altamente rentável. Esse círculo vicioso constitui um nó da prática política em não poucos países, além de um entrave a um projeto de governo e de nação a largo prazo. Prevalece o curto prazo dos ganhos imediatos num evidente projeto de poder e sua perpetuidade. A formação das oligarquias, dos currais eleitorais e do fatiamento da população eleitoral mergulha suas raízes nesse terreno ambíguo da confusão entre patrimônio público e privado.

Rompe-se a fronteira um e outro, diluem-se os contornos entre o bem comum e os interesses de grupos, associações, partidos e corporações privadas. No fim da linha, chega-se ao ponto extremo em que as obras construídas com os cofres do Estado (arrecadação de impostos, taxas, etc.) acabam sendo inauguradas e apresentadas como se fossem um benefício ou um presente do Dr. Fulano de Tal. De preferência às vésperas de algum pleito! Semelhante indeterminação entre o que é público e o que é privado não está somente na prática de muitos políticos de carreira. Está também (e isso é mais grave!) na consciência de muitos eleitores que, ludibriados pelos discursos populistas, demagógicos ou paternalistas, terminam por concentrar no Dr. Fulano os aplausos que se devem à contribuição deles mesmos e da sociedade através de uma das maiores carga de impostos.

O dever do bem comum, conditio sine qua non de todo homem público converte-se, assim, num favor à população. A obrigação do cargo público transfigura-se em presente de amigo e muitas obras adquirem o nome de figuras ainda vivas e influentes no meio político. O jogo se acentua, evidentemente, quando semelhantes figuras são oriundas do topo da pirâmide ou ali se instalaram. É então que a riqueza abre portas para a entrada no mundo da política e esta pavimenta a estrada para novos negócios privados. De novo tropeçamos com o círculo de aço que tende a favorecer uma minoria privilegiada, em detrimento da massa anônima, muda e mutilada, dos cidadãos.

Se esse esquema ocupa a o cérebro, a alma e o coração do corpo social, com mais facilidade será transmitida a outros órgãos, instituições, movimentos, entidades, associações e organizações. Muda o grau de envolvimento e de consequências nocivas, de acordo com o degrau sociopolítico que se ocupa, mas a natureza perniciosa é a mesma. O líquido viscoso e invisível da corrupção escorre sorrateiramente pelos vasos sanguíneos de todo o organismo. Felizmente, já conhecemos alguns antídotos a semelhante epidemia histórica e estrutural, tais como as Leis 9840 e da Ficha Limpa, a participação nos Conselhos Populares, bem como a criação de novos canais, mecanismos e instrumentos de controle da ação dos políticos e do orçamento de municípios, estados e União.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, é assessor das Pastorais Sociais e superior provincial dos missionários Carlistas.

Fonte: Alfredo J. Gonçalves / Revista Missões

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