Ele não usou desculpas

Savio Corinaldesi *

Em 29 de agosto de 1912, o cônego José Allamano, fundador do Instituto Missões Consolata escreveu aos Superiores das Ordens e Congregações uma carta na qual lembrava as dificuldades encontradas na animação missionária. O motivo apontado era o escasso conhecimento do trabalho dos missionários no mundo e, consequentemente a pouca ajuda espiritual e material, sem contar a escassez das vocações missionárias. O cônego, da diocese de Turim, no norte da Itália, sugeria que se pedisse ao papa um gesto público que, pondo luz à importância e à obrigação de todos os cristãos tomar parte na dilatação do Reino de Jesus Cristo, recomendasse aos fiéis e ao clero, e particularmente aos bispos, favorecer as vocações ao apostolado entre os não cristãos.
Alcançado o acordo entre os Superiores dos Institutos Missionários, com a aprovação do cardeal Prefeito da Sagrada Congregação de Propaganda Fide (hoje, "para a Evangelização dos Povos"), quem redigiu a carta - posteriormente assinada por todos os Superiores - foi dom Guido Maria Conforti, bispo de Parma e fundador dos missionários Xaverianos. Era o dia 31 de dezembro de 1912.

Missionário apesar de tudo
Não era certamente essa a primeira manifestação do interesse missionário de Conforti. Seus biógrafos descobriram nele sinais da vocação missionária em idade muito precoce. Falam-nos do Crucifixo da Capela da Paz diante do qual, ainda menino, passava todos os dias indo e voltando da escola e a quem, já adulto, atribuía a origem da sua vocação; do seminário no qual os seminaristas se entusiasmavam comentando os sofrimentos do padre Francisco Regis Clet, missionário lazarista na China, preso, torturado e sentenciado à morte, estrangulado e pendurado numa cruz; do padre João Gabriel Perboyre, denunciado e preso na perseguição de 1839. Permaneceu um ano no cativeiro, sofrendo torturas cruéis, até ser amarrado a uma cruz e estrangulado, no dia 11 de setembro de 1840; do padre Teófano Venard missionário no Tonkin, decapitado em 2 de fevereiro de 1861, do bispo dom Pierre Retord, morto numa cabana perdida nos bosques do Tonkin... Falam da vida de São Francisco Xavier que um colega lhe emprestou e que impressionou de tal modo o jovem seminarista a ponto de fazê-lo sonhar com a perspectiva de continuar a missão dele interrompida na ilha de Sanchoão, à porta da China; falam dele como encarregado da Obra da Propagação da Fé; falam da tentativa de ingressar na Companhia de Jesus para poder seguir os passos de Xavier. Tentativa fracassada porque Guido colocava como condição a garantia de ser enviado às Missões, coisa que a Companhia não estava disposta a aceitar. Falam igualmente de uma carta, no mesmo sentido, enviada a dom Bosco, que não teve resposta. O certo é que o seminarista Guido, bem antes de ser sacerdote, estava com tudo para optar pela vida missionária, na China, na África, onde fosse.

Tinha tudo, menos saúde
Aos 16 anos, Guido, que sempre tinha sido pequeno de estatura, começa a crescer e a emagrecer. Aparecem desmaios, fenômenos de sonambulismo durante o dia, formas de catalepsia prolongada, difíceis de serem atribuídas a um normal colapso nervoso. Os médicos não conseguem chegar a um diagnóstico de consenso.
Os colegas de turma são ordenados e Guido, nada. As excepcionais qualidades do seminarista Conforti impedem que ele seja demitido do seminário. Pelo contrário, recebe cargo de responsabilidade como formador. Aos poucos as manifestações da doença vão rareando e finalmente desaparecem. Milagre de Nossa Senhora? O padre Guido, finalmente sacerdote, acredita que sim.

E a vocação missionária?
A experiência da doença seria suficiente para fazer o jovem padre desistir do sonho missionário. Pelo contrário, o levou a formular algo ainda mais ousado que ele passou a chamar de "audacioso projeto". Em carta datada de 9 de março de 1894 para o cardeal Ledochowski, prefeito da Sagrada Congregação de Propaganda Fide, Conforti escreve: "Desde os anos mais tenros da minha vida, sempre senti fortíssima inclinação a dedicar-me às Missões Estrangeiras. E não tendo podido satisfazer essa santa aspiração no devido tempo por razões verdadeiramente independentes de mim, há diversos anos venho projetando fundar eu próprio um seminário destinado a esse sublime objetivo".

Pode um bispo cuidar das Missões além-fronteiras?
Em março de 1893 o padre Guido compra uma casa para acolher os primeiros candidatos à vida missionária. Tempos difíceis, tempos de começo, tudo por fazer, tudo por inventar. Mas o padre Guido leva adiante a sua obra, sem faltar às suas obrigações de Vigário Geral. Por sete anos ele terá que mediar entre um bispo do feitio de dom Magani - pastor rude, impulsivo, acostumado a comandar e desconhecedor de qualquer fineza diplomática e a realidade política e eclesial de Parma, naqueles anos, extremamente tensa.
No dia 16 de maio de 1902 o padre Guido Conforti é chamado a Roma e o próprio papa Leão XIII lhe comunica a nomeação a arcebispo de Ravena. Em respostas às objeções do desesperado candidato, o papa solenemente declara: "ao Vigário de Cristo é preciso obedecer prontamente!"
E dom Guido obedece. Deverá aprender pelo resto da sua vida, a ser tudo para a diocese e tudo para seu Instituto, sem dar motivo de queixa nem a um nem a outro. Ravena, porém, revelou-se desafio superior às forças do jovem bispo. Em apenas dois anos e meio sua saúde fica tão abalada que dom Guido se vê forçado a renunciar.
Volta a Parma e dedica seu tempo e seus cuidados ao Instituto Missionário que já pode contar com seu primeiro mártir e com um grupinho de missionários na China. Dom Guido espera passar ali o resto de seus anos, que prevê poucos, devido às suas condições físicas.

Entre a diocese e as Missões
Mas as esperanças de dom Guido duram pouco: dois anos depois da sua volta de Ravena, sem ainda ter se recuperado, recebe uma carta: "Somos em dois a pedir-lhe um favor que o senhor pode e deve nos fazer, ao custo de qualquer sacrifício". Quem escreve de próprio punho é Pio X: "Para fazer frente ao governo de sua vasta e trabalhosa diocese, o venerando dom Magani deseja ter quem o ajude no ministério... e deseja ter um coadjutor com direito à sucessão".

Mais uma vez dom Guido deve passar a dividir seu tempo entre o Instituto Missionário por ele fundado e uma diocese, desta vez a sua diocese de Parma. Dom Magani morre três meses depois e dom Guido herda as mais de 300 paróquias da diocese. De novo, tudo para a diocese e tudo para as Missões.
E quando aparecerá o padre Manna, com a proposta da União Missionária do Clero, dom Guido encontrará tempo e disposição também para ela. Mas esta é uma história para ser contada em outra oportunidade.

Dom Guido faleceu no dia 5 de novembro de 1931 e foi canonizado em Roma, juntamente com padre Luís Guanella, fundador da Congregação dos Servos da Caridade e do Instituto das Filhas de Santa Maria da Providência, e Madre Bonifacia Rodríguez de Castro, fundadora da Congregação das Servas de São José, pelo papa Bento XVI no dia 23 de outubro 2011, Dia Mundial das Missões.

* Savio Corinaldesi, SX, é Secretário Nacional da Obra de São Pedro Apóstolo e da Pontifícia União Missionária. Publicado na edição Nº08 - Outubro 2011 - Revista Missões.

Fonte: Revista Missões

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