Vidas atropeladas

Egon Heck *

À beira da estrada,
Na retomada,
No confinamento,
As vidas sofridas
De Kaiowá Guarani,
Vão sendo atropeladas,
Abreviadas,
Ceifadas!
É o caminho da cruz,
Do sofrimento,
Da luta,
Da esperança,
Da terra sem males!

Cruzes à beira da estrada. Ou nada. Simplesmente a memória de que ali muitos Kaiowá Guarani perderam a vida. As rodovias asfaltadas que cortam a maioria das aldeias, são testemunhas silenciosas de dezenas de vidas ceifadas nas últimas décadas.

Lembro, quando em 2004 fui visitar a aldeia de Limão Verde, me mostraram jornal e o local onde há poucos dias haviam morrido atropelados três membros da comunidade. Após um atropelamento, outros foram socorrer e acabaram sendo também atropeladas.

No ano seguinte, visitando a comunidade de Taguapery, quando a BR que corta a terra indígena, recém havia sido asfaltada, falavam das quatro pessoas que já haviam ali morrido atropeladas, inclusive duas crianças que iam para escola. Só muito tempo depois foi colocado ali um quebra molas.

Em Nhanderu Marangatu, depois do asfaltamento da BR... que liga a cidade de Antonio João a Bela Vista, no limite da terra indígena, em 2006, já morreram atropelados três indígenas. A estrada permaneceu sem nenhum indicativo de cuidado e diminuição de velocidade, por vários anos.

Joab, professor indígena, foi atropelado e esmagado, tendo vários carros passado sobre seu corpo, próximo a Maracaju.
A comunidade de Larajeira Nhanderu, município de Rio Brilhante, depois de expulso da terra, permaneceram acampados à beira da BR 163, por quase dois anos. Neste período tiveram três de seus membros mortos por atropelamento. Cansados de ver seus filhos sendo mortos na estrada, decidiram retornar ao seu tekohá, há quase dois meses.

Os que correm maior risco de atropelamento são os Kaiowá Guarani acampados à beira das estradas que somam mais de 20 acampamentos. Ali geralmente não tem sinalização nenhuma. Qualquer descuido pode ser fatal.

Dessas dezenas de mortes por atropelamento, a maioria fica na total impunidade - "é como se matassem um cachorro atropelado", dizem familiares das vítimas. Não tenho conhecimento de nenhum carro que tenha parado após o atropelamento e nem sido identificado ou aberto inquérito para apurar responsabilidades. Fica tudo por isso mesmo.

Sidney e Acacio, pai e filho, a mesma morte
Quando os dois ônibus estraçalharam o corpo de Sidnei Kaiowá, perto de Dourados, apenas mais um registro. Teve a mesma morte que, em 1999, teve seu pai, atropelado pela camionete de um fazendeiro.

Em 14 de abril de 2004 Sidnei foi ao Ministério Público Federal prestar depoimento "Afirma que seu pai, Ilário Cário de Souza fora assassinado em 2002 em decorrência da luta pela terra. Diz, que o Sr. Ilário fora abalroado por um veículo guiado por um fazendeiro proprietário da terra reivindicada pela comunidade do Sr. Ilário de Souza." (DOC. 01).

Segundo depoimento de Sidnei Cário de Souza, o atropelamento foi uma
ação intencional, pois, após atropelá-lo, o motorista não presta os devidos socorros à vítima. De acordo com Sidnei, o atropelamento foi testemunhado também por Damiana Cavanha e Jamiro Isnarde, cunhado do depoente. No documento, Sidnei reclama que apesar dos pedidos da comunidade, nunca foi aberto um inquérito para apurar a possibilidade de um assassinato. Depois do atropelamento de Ilário, segundo o depoimento, o grupo é arbitrariamente levado para a TI de Caarapó, conforme pudemos averiguar:" (Alice Castilho Lutti, Acampamentos indígenas e ocupações: novas modalidades de organização e territorialização entre os Guarani e Kaiowa no município de Dourados - MS: 1990-2009, pg. 51)

Sidnei foi várias vezes ao ministério público denunciar o atropelamento e desrespeito aos direitos de sua comunidade. Não podia imaginar que tivesse sua vida atropelada e abreviada brutalmente, como seu pai.

Aa viúva Rosimara, de 31 anos e quatro filhos, afirmou ter visto os números dos dois ônibus, que atropelaram Sidnei. Um silencio certamente encobrirá mais esta morte, até onde a memória do grupo alcançar.
A via-sacra da guerreira Damiana e seu grupo continuará até chegarem novamente a seu tekohá.

* Egon Heck, Movimento Povo Guarani Grande Povo e Conselho Indigenista Missionário - Cimi MS - equipe Dourados.

 

Fonte: Cimi MS

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