Mestre de missão, testemunha de santidade

Manuel Augusto Lopes Ferreira *

Quem se abeira pela primeira vez de Comboni e lê a sua vida fica impressionado, por um lado, com a simplicidade e pobreza dos inícios da sua obra em favor da evangelização da África central e, por outro, com as enormes dificuldades e contratempos que ele teve de enfrentar para viver a sua vocação e realizar a sua missão em favor dos africanos. O ambiente político, social e eclesial em que ele teve de se mover - despertando as Igrejas da Europa central, norte de Itália, Áustria e Alemanha para o desafio da evangelização da África - não foi particularmente fácil. Os recursos humanos e materiais disponíveis eram muito limitados e as dificuldades a superar enormes.

O contraste entre o seu sonho de evangelizar a África e os meios de que dispunha para o fazer era evidente, a ele próprio e a quantos ele procurava conquistar para a sua causa. Mas era na África onde as dificuldades se apresentavam insuperáveis: o isolamento, o clima, as doenças, as dificuldades das comunicações e do transporte, as resistências culturais e a oposição dos muçulmanos. Muitos tinham falhado antes de Comboni e ele mesmo sentia os riscos e os desafios da sua obra, riscos que o tornavam humilde e o abriam a uma confiança ilimitada na Providência Divina.

Ao começar o seu Instituto Missionário em Verona (1 Junho de 1867), ele definiu-o como «pequeno e humilde cenáculo de apóstolos para a África central». E à medida que se multiplicava em iniciativas em favor da evangelização da África, crescia na convicção de que «as obras de Deus nascem e crescem aos pés da cruz». Foi desta contemplação do mistério pascal, de Cristo na cruz, que nasceu a missão à qual se dedicou Daniel Comboni. Era esta a fundamental atitude contemplativa do Crucificado que ele exigia dos seus missionários: para se conformarem a esta atitude de espírito, que é essencial, «tenham sempre os olhos postos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das almas» (Escritos 2721). Para Comboni, a missão cristã não é uma simples proclamação do kerigma - a salvação da humanidade na paixão e na morte de Cristo: ela nasce e vive da identificação do missionário com este mistério pascal.

As cruzes e as dificuldades da sua vida missionária conduziram-no à morte prematura a 10 de Outubro de 1881 em Cartum, deixando os seus institutos órfãos de pai, mas não de causa. No seu leito de morte, os seus filhos e filhas juraram fidelidade à missão, que continuaram a viver como mistério pascal, no meio das cruzes e das dificuldades que assinalaram a vida do Fundador e continuaram a marcar a do Instituto. Logo no ano a seguir à sua morte, desencadeou-se uma terrível perseguição islâmica, chefiada pelo fanático Mahdi, que destruiu a obra missionária no Sudão e a sede da missão em Cartum. Vários missionários e missionárias de Daniel Comboni foram feitos prisioneiros pelo Mahdi e sofreram um cativeiro que durou anos de isolamento e privações (1882-1889). Mas os institutos combonianos renasceram desta prova e desta cruz. No ano de 1901, os filhos e as filhas de Daniel Comboni regressavam a Cartum para retomar o caminho da missão do Fundador. Em Verona, na Itália e na Alemanha, e depois noutros países da Europa como em África, os Missionários Combonianos conheceram uma primavera de crescimento, prenunciada pela profecia do Fundador sobre a missão que nasce da cruz: «Eu morro, mas a minha obra não morrerá!»

Nas fronteiras da missão
Os povos da África central, na situação de extrema exclusão e pobreza em que se encontravam no tempo de Comboni - doenças, escravidão, isolamento, pobreza, extermínio nas mãos dos fanáticos islâmicos -, constituíam a fronteira da missão para a qual ele tendeu durante toda a sua vida com uma intensidade de doação e generosidade invulgar. Movia-o a consciência de uma vocação divina, que o sustentou nas dificuldades e fez dele um missionário capaz de arrastar outras pessoas para esta fronteira da sua missão. «Foi em Janeiro de 1849, ainda eu era estudante de filosofia, que jurei aos pés do meu venerando superior padre Mazza consagrar toda a minha vida ao apostolado da África central», conta ele acrescentando: «Eu só disponho de uma vida para consagrar à salvação daquelas almas: quisera ter mil vidas para as consumir nesse fim» (Escritos 2271).

No seguimento do Fundador, os Missionários Combonianos sempre se orientaram para esta fronteira africana da sua missão, enfrentando com fidelidade as dificuldades de ambiente, a instabilidade social e política que marcaram a vida dos povos do Sudão, do Uganda, da Etiópia, da Eritréia... e dos demais países africanos onde desenvolvem o seu serviço missionário. As vicissitudes políticas e sociais do Sudão, de modo particular, assinalaram a história do Instituto Comboniano: a expulsão dos missionários deste país, no ano de 1964, constituiu uma dura prova para os Combonianos, mas acabou por se tornar a ocasião providencial para o alargamento da sua presença a outros países africanos.

A fronteira africana abriu os Combonianos, durante o século XX, a outras fronteiras geográficas da missão: à América e à Ásia. E das fronteiras geográficas, com a paixão e a criatividade do Fundador, os Combonianos descobriram as novas fronteiras da missão hoje: as periferias das cidades, a evangelização da juventude, o empenho pela transformação social e política na África; as presenças proféticas entre os índios, os afros e os sem-terra na América; a presença nos mass media e a promoção da justiça e da paz na Europa; a presença no mundo das grandes culturas e religiões da Ásia. Esta atenção às fronteiras da Igreja e da sua missão, esta capacidade de se tornar presente nos lugares de encontro da Igreja com a sociedade e a cultura tornaram-se uma nota distintiva dos Combonianos e da sua maneira de ser missionários: «Quanto a mim e aos meus companheiros de missão», dizia Comboni aos membros da Sociedade de Colônia que o apoiavam, «os senhores sabem com quanto entusiasmo consagramos a nossa vida ao bem desta parte do mundo, que é ainda quase desconhecida e que jaz em tão grande miséria, tratando de ganhá-la para Cristo» (Escritos 2941).

Testemunho e martírio
A missão na fronteira africana exigiu de Comboni a capacidade de permanecer nos momentos difíceis, nas situações de extrema provação: pediu-lhe a fidelidade ao preço da própria vida. «Meu Deus! Cruzes e mais cruzes. Estas pesam terrivelmente no meu coração; mas fazem crescer em mim também a força para combater as batalhas do Senhor, porque as obras de Deus nasceram e se desenvolveram sempre assim...», escrevia ele poucos dias antes de morrer aos 50 anos, vítima das febres e das canseiras apostólicas.
Esta capacidade de martírio, de testemunho em situações e condições difíceis, de coragem para permanecer quando outros se retiram, continua a ser um dom que os Combonianos receberam do seu Fundador e que hoje testemunha a autenticidade do seu carisma. Nos conflitos tribais e nas guerras que dilaceraram tantos países da África os Combonianos sempre renovaram a sua opção em ficar, em permanecer ao lado das populações e das comunidades cristãs a que eles deram vida. Esta capacidade de resistência e fidelidade teve um preço que o Instituto pagou no martírio de 20 dos seus membros, que, de 1940 até hoje, foram vítimas da violência política e da instabilidade social e deram a vida por Cristo e pelo Seu Evangelho em situações de conflito e de guerra.

Comunhão de destinos
Daniel Comboni cultivou um sentido muito forte de doação aos povos africanos a que tinha consagrado a sua vida e missão: tratava-se de uma comunhão de destinos que o fizeram viver em solidariedade e falar de «partilhar a sorte» deles. «Tende a certeza de que a minha alma vos corresponde com um amor ilimitado para todo o tempo e para todas as pessoas», dizia ele aos fiéis na homilia do seu regresso como bispo a Cartum. «Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado para sempre ao vosso maior bem. O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender as vossas necessidades espirituais: o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração. O vosso bem será o meu e as vossas penas serão também as minhas. Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós» (Escritos 3158).

Os seus filhos e filhas herdaram dele e mantiveram vivo, como sinal de vitalidade carismática, esta capacidade de partilhar a sorte com os povos aos quais o Senhor os envia como missionários. Trata-se de uma sensibilidade que os leva a abraçar as causas dos pobres e dos deserdados da terra, a compreender os seus problemas, a denunciar profeticamente os seus males, a propor criativamente soluções e perspectivas de uma transformação das sociedades segundo os valores do Reino de Deus. Nesta nossa sociedade globalizada, esta sensibilidade coloca-os, naturalmente, do lado dos excluídos e os faz adotar formas de presença e ação que, por vezes, despertam surpresa, tanto na sociedade como na Igreja. Mas, para além da surpresa que as formas de presença podem despertar, trata-se de uma sensibilidade que é expressão de um compromisso missionário genuíno, em linha com o carisma do Fundador, e que certamente enriquece a missão da Igreja hoje.

Sentido de Igreja
Comboni concebeu a sua iniciativa missionária para a África como iniciativa das igrejas da Europa central que ele procurou animar missionariamente, como uma iniciativa de Igreja que ele tentou desenvolver em estreita comunhão com a Congregação da Propaganda Fide e com o Papa. Dentro de uma visão de futuro, ele reuniu à sua volta missionários de variada origem eclesial e suscitou apoios de uma grande variedade de instituições nos mais diversos ambientes, de Roma a Colônia, de Viena a Paris. «A obra da evangelização da África central», costumava dizer Comboni, «tem de ser católica, não espanhola ou francesa, alemã ou italiana» (Escritos 944).

Seguindo o exemplo do Fundador, os Combonianos mantiveram viva esta consciência da missão como «fato eclesial» e desenvolveram um sentido de fraternidade para a missão que ultrapassa a proveniência cultural dos membros do Instituto. A interculturalidade no Instituto e o número crescente de comunidades constituídas por membros de diferentes proveniências culturais dão testemunho vivo e significativo de uma missão que, como o quis o Fundador, é realmente católica. Este sentido de Igreja tem alimentado a fecundidade apostólica do Instituto, que, particularmente nas igrejas do Sul, tem sabido conservar todo o poder de convocação próprio da vocação missionária e permanecer fiel a uma tradição de grande generosidade para com as igrejas locais, fazendo-lhes dom de iniciativas e obras, em linha com os dinamismos da missão, com a autonomia e o protagonismo das igrejas locais. No seu tempo, Comboni foi pioneiro na promoção do clero local, segundo a sua visão de «salvar a África com a África». Hoje os seus filhos vivem a missão com um sentido de igreja local e universal, conscientes de que a missão é da Igreja antes de ser deles e que é desde este contexto eclesial que estão chamados a servir o Evangelho e a favorecer o protagonismo dos povos e das culturas que o acolhem.

Santidade como alicerce
Tanto na vida como na morte, Comboni revelou-se pessoa capaz de atrair outros à sua causa. Àqueles que atraía à sua obra, Comboni queria-os «santos e capazes» (Escritos 6655), com uma santidade enraizada na «caridade divina que torna as pessoas santas e capazes». Só quando estivessem «acesos desta caridade, deste amor divino que dá à luz o amor do próximo» (Escritos 6656) via ele os seus missionários prontos para enfrentarem «a agonia», o combate da árdua missão da África central que ele mesmo tinha vivido em primeira pessoa.

Com a canonização de Daniel Comboni, a Igreja apresenta aos combonianos o Fundador numa luz nova, como mestre insigne de missão universal, como testemunha excelente de santidade para a missão. Este fato personaliza para os Combonianos o convite que o Papa João Paulo II fez à Igreja toda, na NMI 31: colocar a santidade como alicerce da sua vida e missão. A santidade que vemos em Daniel Comboni está enraizada num forte sentido de consagração a Deus e tem a sua fonte, por um lado, na contemplação do amor de Cristo (o Coração trespassado) e, por outro, na contemplação da Nigrícia. Esta dupla contemplação tem o seu ponto de encontro na cruz, ápice da encarnação e da condescendência do amor divino que abraça a debilidade humana.

O desafio que a canonização de Daniel Comboni coloca, de modo particular aos seus filhos e filhas, é regressar a esta fonte da santidade do Fundador e viver as atitudes que foram suas: o olhar posto no Coração trespassado, uma visão de fé no discernimento de acontecimentos e coisas, o abraço à Nigrícia (às situações de exclusão) com um coração marcado pelo amor divino. Somente assim poderão eles e elas ser companheiros fiéis do Fundador nas fronteiras da missão no terceiro milênio vivendo uma santidade à maneira de Comboni: uma santidade encarnada, que caminha pelas veredas da pobreza e da exclusão humana; uma santidade acolhedora do outro, do diferente, do pobre num abraço de comunhão e de diálogo; uma santidade que seja paixão divina a morar num coração humano, capaz ela só de sustentar uma vocação árdua e difícil como a missionária.

* Manuel Augusto Lopes Ferreira é diretor da revista comboniana Além Mar.

Fonte: www.ecooos.org.br

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