Mulheres indígenas na liderança

Jaime Carlos Patias e Karla Maria *

A participação das mulheres indígenas na conquista da terra em Roraima.

Após mais de 30 anos resistindo a todo tipo de pressão, a terra indígena Raposa Serra do Sol - RSS foi finalmente homologada pelo presidente Lula em 15 de abril de 2005 e ratificada pelo Supremo Tribunal Federal, STF, em março de 2009, apesar de impor 19 restrições. A área abriga cerca de 19.000 indígenas que seguem sua organização social, em 194 comunidades dos povos Macuxi, Taurepang, Patamona, Ingaricó e Wapichana. Todas as questões relativas à vida das comunidades são coordenadas pelo Conselho Indígena de Roraima - CIR. "Aos poucos as mulheres também conquistam espaço", explica Marizete de Souza, 37, secretária-geral do Movimento das Mulheres Indígenas ligado ao CIR. Filha de um dos mais respeitados líderes na RSS, Jacir de Souza e de Juventina da Silva, da etnia Macuxi, Marizete é casada com Aldenir Cadeti Wapichana, assessor de comunicação do CIR. No dia 5 de maio de 2008, Aldenir filmou cenas de violência em mais um ataque de jagunços armados contra as comunidades indígenas. As imagens capturadas enquanto o cinegrafista fugia ganharam o mundo sendo cedidas para um documentário que foi premiado na Espanha. Marizete viajou ao país representando o CIR, para falar sobre a RSS na Universidade de Navarra. Passando por São Paulo, ela concedeu entrevista à revista Missões.

Marizete, qual a situação atual na Raposa Serra do Sol?
Fizeram muitos comentários de que após a retirada dos invasores não-índios haveria conflito entre os indígenas, mas a situação é mais tranquila. Para trabalhar melhor na distribuição das benfeitorias que ficaram lá, formamos uma Federação. Isso porque a Sociedade de Defesa dos Indígenas Unidos do Norte de Roraima - SODIUR, contrária à saída dos arrozeiros, queria ficar com tudo. Conseguimos distribuir as coisas entre as várias organizações. Foi feito um acordo para trabalhar com representantes de cada organização indígena, para não haver disputa. Todo o planejamento dentro da RSS deve estar de acordo com todas as organizações. Não é verdade que o CIR estava querendo tomar conta de tudo. As decisões são tomadas pela comissão da Federação e isso está funcionando muito bem. Temos ainda a situação de índias casadas com não-índios que não foi resolvida. Ninguém vai impedir que um índio ou índia se case com não-índio, desde que os trabalhos sejam de acordo com as comunidades no seu coletivo.

E os missionários que atuam na área, como ficaram?
O pessoal missionário deve solicitar uma autorização ao CIR para entrar na área, com o objetivo e o tempo que vão ficar lá. São as comunidades que dão essa autorização em coordenação com a Funai. Nestes dias a Funai não entregou a autorização e no dia 15 de outubro, a Polícia Federal e o Exército fizeram uma operação exigindo que eles saíssem. Levaram todos para Boa Vista onde obtiveram a autorização para voltar ao trabalho na área até o dia 31 de dezembro. Durante a operação o Exército destruiu vários motores e equipamentos da SODIUR alegando combater o garimpo na região. Chegaram a Maturuca, a 120 quilômetros de Boa Vista, armados como se lá estivesse algum bandido, mas a comunidade estava trabalhando tranquila. As lideranças disseram que se fosse para conversar, eles deveriam baixar as armas. Os Tuxauas perguntaram porque eles estavam fazendo isso sem o pessoal da Funai e do CIR, que normalmente os acompanha. Eles responderam que estavam fazendo um trabalho sigiloso por receberem várias denúncias.

Qual é o trabalho da Secretaria das Mulheres que você coordena?

É acompanhar as mulheres na articulação, nas reuniões, na participação em seminários e cursos, políticas para desenvolver as mulheres. Nós trabalhamos na coordenação geral do CIR e ao mesmo tempo desenvolvemos trabalhos específicos voltados para as mulheres na formação de jovens, oficinas na área da saúde, educação, sobre a violência por conta das bebidas alcoólicas e dos problemas que afetam a comunidade. O trabalho é feito nas 12 regiões da RSS, repassando o conhecimento da tradição para os jovens. Hoje tem mulheres exercendo grandes responsabilidades fora de casa e o marido fica tomando conta dos filhos e da casa. Não existe mais aquela submissão ao homem. A Organização das Mulheres Indígenas de Roraima - OMIR teve um papel muito grande nessa mudança. Antes, as mulheres participavam das reuniões dos Tuxauas, mas não tinham voz. Hoje elas têm direito a voz e voto.

Como está funcionando o serviço da saúde e a assistência da Funasa nas comunidades?

Quando existia o convênio entre o CIR e a Funasa o atendimento não era 100%, mas funcionava. Depois que o convênio foi encerrado, surgiram muitas reclamações. Não tem atendimento, faltam medicamentos e médicos. Já morreram mulheres, pacientes. O agente de saúde solicitou remoção e isso só chegou depois de dois dias. Há muita reclamação das comunidades. Denunciamos isso, porque agora quem assumiu a assistência foi a Secretaria Estadual de Saúde - SESAU, e eles disseram que dariam toda a assistência. As comunidades não aceitam essa assistência. Antes o CIR ficava com o controle social, marcava consultas e acompanhava a comunidade. Hoje não tem isso. Estamos brigando porque a Funasa está fazendo convênio com a Missão Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

Qual a situação da educação nas escolas das comunidades e no Centro de Formação de Surumu?

Nós temos o ensino fundamental e médio nas comunidades onde a maioria dos professores é indígenas, 40 deles formados a nível superior. A formação continua. A linha de ação é feita a partir de três princípios importantes aprendidos na luta: terra, identidade e autonomia. Isso serve para a formação dos indígenas. Quando o governo quis impor escolas dentro da comunidade, sofremos as conseqüências. Tentamos melhorar não só na parte do ensino, mas dos trabalhos e no resgate da cultura, preservando os idiomas locais, além do português. No Centro de Formação estamos melhorando as estruturas. Depois da destruição ocorrida em 2005, a qualidade caiu muito, sofremos pela falta de recursos e apoio. Mas, hoje estamos melhorando e no futuro queremos uma universidade indígena. Temos professores, agentes de saúde e técnicos. Estamos trabalhando a questão ambiental buscando experiência junto ao MST para o plantio do arroz orgânico e inseminação artificial para melhorar o rebanho.

No mês de abril de 2010 vocês farão uma festa para comemorar a conquista da terra. Qual o significado dessa celebração?
O objetivo maior é o de reunir entre os dias 13 e 19 de abril, todos os povos indígenas do Brasil para recordar juntos os momentos de luta e repassar essa história aos jovens e fazer um registro geral das conquistas. Para isso vamos convidar os nossos parceiros, os missionários, as organizações e o próprio presidente Lula, que já confirmou presença. Através de dom Roque Paloschi, foi encaminhada uma carta convidando também o papa Bento XVI que, se não puder vir, pode enviar um representante. Enfim, vamos reunir para celebrar a longa luta, na qual morreram tantas lideranças. Eu ouvia o meu pai, Jacir de Souza dizer, que se ele não pudesse viver para ver isso acontecer, seus filhos e netos veriam. Hoje eu me orgulho de poder ver a homologação juntamente com ele e também meu filho, seu neto. Agora meu pai que sofreu tantas ameaças, pode descansar um pouco e nós seus filhos estamos levando em frente o trabalho. Estamos preparando um prêmio para cada liderança porque merecemos.

O que você teria a dizer para os demais povos indígenas que estão lutando para conseguir a homologação de suas terras?
No mês de abril durante o Acampamento Terra Livre, em Brasília ouvimos relatos de várias situações e elaboramos documento de apoio aos Guarani Kaiowás de Dourados, MS, que estão sofrendo. Somos solidários com eles. Se pudéssemos ajudar a colocá-los num lugar que eles merecem, nós faríamos. Os Povos Indígenas que aceitaram a homologação em ilhas, hoje estão com problema de espaço, pois a população está crescendo. Existem também 19 condicionantes que o Supremo colocou na questão da homologação. Eu diria que eles devem ter muita coragem e esperança porque somente com isso vão conseguir. Precisamos colocar sempre Deus em primeiro lugar porque é Ele que nos incentiva a buscar melhorias para nosso povo. Quando paramos para pensar, vemos que não estamos sozinhos, mas alguém está falando na mente o caminho a seguir. Então, sem o plano de Deus nós não somos nada. Foi com essa ideia que partimos para a luta.

Qual a influência que os missionários tiveram para a formação dessa visão?
Eles viram o sofrimento das comunidades, com a invasão, e então nos questionaram: vocês querem continuar sofrendo desse jeito? Então foi tomada uma decisão que ficou conhecida com a expressão "ou vai ou racha", na luta pela terra. Não tinha educação, nem atendimento na saúde. A minha mãe faleceu por causa disso. Havia até a proibição de falar a nossa língua. Só havia espaço para os fazendeiros e garimpeiros. Então decidimos resgatar a nossa cultura, preservar a nossa identidade, por que se somos povo e não temos identidade, o que somos? Acredito que essa foi a iluminação que os missionários colocaram para as comunidades.

* Jaime Carlos Patias, imc, é diretor da revista Missões, Karla Maria, é LMC, estudante de jornalismo e membro da equipe da revista Missões.

Publicado na edição Nº10 - dezembro 2009 - Revista Missões.

Fonte: Revista Missões

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