Manifesto dos movimentos sociais do Xingu e da Transamazônica

Movimento Xingu Vivo *

Altamira, 30 de setembro de 2009

Ao Sebastião Custodio Pires
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis
Brasília, DF

Com cópia para:

Ilmo Sr. Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva
Ilmo. Sr. Presidente do IBAMA Roberto Messias
Ilmo Dr. Procurador da República do Ministério Público Federal, Rodrigo
Timóteo da Costa e Silva

Ref.: Manifesto dos movimentos sociais do Xingu e da Transamazônica a ser protocolado junto ao IBAMA como parte do processo administrativo do licenciamento ambiental do empreendimento denominado Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte.

Prezados,

O Governo Brasileiro está prestes a cometer mais um crime contra Amazônia.

Favorecido pela crise gerada pelos planejadores do setor elétrico, o governo investe na construção de novas hidrelétricas. O alvo prioritário dos novos megaprojetos são os rios da Amazônia, pois os rios das outras regiões estão entrando em colapso.

A Usina Hidrelétrica da vez é Belo Monte, em Altamira, no Pará. Essa hidrelétrica está planejada desde os anos oitenta, tendo sido suspensa, principalmente pela pressão dos movimentos ambientalistas locais, nacionais e internacionais, quando era chamada de Kararaô.

Em 2000, a Centrais Elétricas Brasil S/A‐ Eletrobrás retomou os trabalhos na região, sendo que, ao mesmo tempo em que assenta construções de apoio já em funcionamento, dando a usina como fato consumado, desenvolve um intenso trabalho de convencimento da opinião pública regional e estadual com recursos públicos.

A opinião pública é aliciada pelas velhas e conhecidas promessas de progresso para todos, pelo discurso simplista de que as soluções técnicas da nova barragem não ocasionarão danos ambientais e ancorados na legitimidade criada pela crise energética que atinge o país, criando‐se uma situação de fato consumado e de terror para qualquer pessoa ou grupo que se oponham ao empreendimento anunciado.

A novidade que ancora o discurso de novos métodos na construção da UHE de Belo Monte é um " Plano de Inserção Regional" da obra e a promessa da criação de um Fundo de Compensação e de Mitigação de Impactos, medidas que, segundo a Eletrobrás, minimizariam os efeitos negativos do empreendimento. O Plano de Inserção seria a forma de evitar a prática de enclave de triste história na região.

Mas, igualmente frágil e enganador, pois pelo que a Eletrobrás anuncia, o forte de seu " Plano de Inserção Regional" é a capacitação de empreendedores para a população se viabilizar em outras atividades depois do fim da obra.

A capacitação nunca foi uma solução em si, é apenas um meio que deve estar voltado para uma política de desenvolvimento estruturada em atividades sustentáveis, diversificadas, e apropriadas ás condições especiais da região Amazônica. A construção de hidrelétricas e grandes barramento nunca foram atividades sustentáveis ao meio amazônico. Ao contrário, têm sido as intervenções do capital com maior poder de desordem e destruição ecológica, econômica e social.

Paralelamente, a Eletrobrás faz um trabalho de aliciamento dos prefeitos e vereadores da região, com base na promessa de financiamento de planos diretores para as zonas urbanas dos municípios, prometendo construir infraestrutura local.

Essa prática política, de questionável legalidade, usando dinheiro público como moeda em troca do apoio público e acrítico desses grupos políticos, repete a história da empresa em outros lugares. Ou seja, a busca de apoio nos aliados das empresas madeireiras, mineradoras e grandes agropecuárias animados pela perspectivas de ganhos extraordinários com a vinda da Usina.

A mentalidade imediatista dos governantes locais e do Estado combina com os interesses políticos da Eletrobrás. Os prefeitos vêem uma financiadora direta de suas reeleições através de obras prometidas e se tornam um filtro ao questionamento e ao verdadeiro processo democrático que deveria envolver a discussão de um projeto de barramento de um rio Amazônico.

Essas obras e ações de prevenção e mitigação deveriam ser indicadas e debatidas exaustivamente no EIA‐RIMA com fundamentação científica, buscando a articulação entre diversas ações de minimização dos impactos caso a Usina fosse construída.

Ora, o modo de contratação dos estudos junto as empresas interessadas foi contestado na Justiça (Ministério Público Federal) paralisando os trabalhos por dois meses. Isso indica irregularidades. Ou seja, os resultados desses estudos merecem um exame cuidadoso por parte de todos os interessados, pois são eles que vão dizer quais serão as obrigações das empresas que vão construir a Usina. Se já é difícil negociar com o governo que trabalha com o nosso dinheiro, imaginem como será com as empresas que querem custos reduzidos e lucros aumentados!

O debate sobre a construção de novas hidrelétricas na Amazônia é mais complexo do que a agenda governamental atual pode comportar. Por isso chamamos a atenção para tornarmos esse debate de interesse nacional com o máximo engajamento crítico para não referendamos mais um desastre em nome do desenvolvimento.

Apesar da energia hidrelétrica ser a opção mais limpa que a nuclear como exemplo extremo, colocado pelo Governo Federal‐ e outras fontes com capacidade de armazenamento em grande escala, é a Amazônia o bioma mais apropriado para a extração desse recurso? Será mesmo sustentável uma hidrelétrica de grande porte na Amazônia se colocarmos todos os aspectos positivos e negativos numa balança?

Num quadro de escassez de commoditização da água doce do planeta e de iminência da crise dos recursos hídricos, é inaceitável que os rios da Amazônia, nossa principal reserva hídrica, sejam alvos prioritários de barramento. As barragens sempre trazem efeitos de desordem ecológica, econômica e social que comprometerão a qualidade dessas águas num futuro próximo.

Mesmo que valesse a pena provocar os distúrbios nesses rios para atender a demanda imediata de fornecimento de energia, o país dificilmente terá dinheiro para arcar com os custos de despoluição para o aproveitamento dessas águas no futuro.

Não nos parece conseqüente, um planejamento governamental que enfoca a obra hidrelétrica em si, enquanto intensifica‐se o desmatamento das matas ciliares e das cabeceiras dos rios represados, provocando a alteração do regime hídrico, o assoreamento e a morte desses mananciais a médio e longo prazo, ao alcance das gerações presentes. O rio Tocantis, o Araguaia, o São Francisco estão morrendo e agora querem matar o Xingu.

Por que sacrificar o Rio Xingu com uso hidrelétrico se sua Bacia representa um capital ecológico dos mais importantes do país em seu estado natural, podendo converter‐se em instrumentos de desenvolvimento econômico sustentável e harmonioso com outras opções de investimento como turismo verde, a pesca, o lazer e tantos outros usos de importância estratégica como a própria fonte de água?

No caso do Xingu, com uma usina programada e quem sabe uma outra para regularizar a vazão nos próximos anos, o que restará do rio para o uso de igual importância para os seres humanos como os povos indígenas (Kayapó, Parakanã‐ Apiterewa, Araweté do Igarapé Ipixuna, Assurini do Xingu, Arara do Pará, Juruna, Xipaya e Kuruaya)? E para as populações ribeirinhas que dependem desses ecossistemas? E o que restará das florestas, que deveriam ser protegidas desde a cabeceira do rio até sua foz no Rio Amazonas?

Num país ainda marcado pela lógica do planejamento autoritário, onde quem decide o destino dos investimentos públicos são as empresas privadas (no caso do setor elétrico, as "barrageiras", ávidas por novas obras!), será impossível proteger os mais pobres que serão atraídos pelas promessas de emprego. Assim como serão barrados milhares de trabalhadores que virão de fora. Outros que já estão estabelecidos na região, terão quem deixar suas propriedades para dar lugar à barragem em troca de indenizações que nunca compensam os investimentos deixados para trás. Considerando que a Usina vai atrair trabalhadores do Pará inteiro e de outros estados, nas diversas etapas e após a conclusão do empreendimento, quem garante que a empresa responsável pela Usina vai cuidar do futuro desse povo?
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Será impossível evitar o aumento da pressão sobre a floresta, milhões de hectares de mata serão colocados abaixo com a chegada de mais madeireiras, especuladoras de terra, pecuaristas e famílias de agricultores que ocuparão as terras distantes para produzir comida. As unidades de Conservação que foram criadas após muita pressão da sociedade Civil correm sérios riscos de serem inviabilizadas caso esse empreendimento seja viabilizado.

Quem irá financiar as ações contra os efeitos da multiplicação da pobreza estrutural gerada pela Usina? Certamente não serão as empresas premiadas pelo governo na venda da Usina. Elas querem apenas os lucros bilionários da construção da obra. E o Fundo de Compensação e Mitigação que a Eletrobrás está prometendo? Esse fundo será controlado pelos empresários políticos da região. E a arrecadação dos Estados e Municípios? Isso depende do rumo que a economia da região tomar.

Que setores da economia irão gerar essa arrecadação? Em Tucuruí, a economia continua estagnada, gerando poucas oportunidades no comércio e nenhuma novidade na indústria, pois os principais fornecedores da Eletrobrás/Eletronorte são de fora. Quem cresceu lá foi a Camargo Corrêa que montou uma indústria de silício metálico na beira do Lago, após ter descoberto o minério durante a construção da obra.

As imperfeições da atual lei dos royalties não permitem controle social e a segurança da aplicação correta dos recursos pelos governos. Os fundos de compensação criados para corrigir danos ambientais não são administrados com transparência em outros grandes projetos. Porque seria diferente nesse, se o processo está sendo o mesmo que em outros projetos? Esses recursos são remetidos para um fundo ambiental estadual, sem controle social.

A regulamentação ambiental no Brasil é muito recente e sua operacionalização ainda carece de capacidade institucional, recursos humanos qualificados e independência política para os licenciamentos nos estados. Isso compromete o conteúdo dos licenciamentos e a real possibilidade de implementação de suas recomendações.

Mesmo que as ações mitigatórias estejam inscritas no Edital que será lançado para o leilão da Usina de Belo Monte, não temos segurança de sua aplicação pela empresa que comprar a obra. A experiência reguladora do país após as privatizações demonstram fragilidade dos instrumentos como Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e outras.

Não concordamos com a construção de hidrelétricas do porte de Belo Monte na Amazônia. Esse tipo de obra não combina com os padrões de desenvolvimento apropriados para a região. A modernidade na Amazônia significa ganhar dinheiro e gerar oportunidades de negócios lucrativos com o uso racional das florestas, dos rios, dos solos e do subsolo. A construção de projetos que destroem essas riquezas, esses estoques de capital são pouco inteligentes e estão na contramão da modernidade na região e no país e do mundo que clamam pela salvação do planeta.

Isso nos remete para a necessidade dos estudos da Bacia do Xingu, com um macro zoneamento participativo que defina seus múltiplos usos. Dessa forma, qualquer projeto para a região deverá ser embasado cientificamente e com ampla aceitação social. Já sofremos e aprendemos suficiente com grandes projetos na Amazônia para cair na Armadilha da realização de estudos isolados por hidrelétricas, sem considerar as interdependências de todos esses macroecossistemas e dinâmicas mais amplas.

Nossa avaliação é que a agenda governamental implementada pelas empresas sobre a construção de Belo monte é incompatível com a necessidade de uma discussão responsável e profunda sobre todos os aspectos que envolvem uma intervenção de grande porte num dos ecossistemas mais protegidos que é a Bacia do Xingu.

Consideramos que os estudos até aqui apresentados não reflete os efeitos prováveis em toda a sua extensão no espaço, nas dinâmicas econômicas e sociais. Nesse sentido, os estudos não têm a eficácia necessária para orientar as decisões sobre deslocamentos populacionais e pressão sobre os recursos naturais e povos da região, como os remanescentes florestais, redes hídricas secundárias, espécies alvo de caça e demais interações de reprodução biológica que se estendem por um espaço superior ao foco do estudo.

* Congrega movimentos sociais, ribeirinhos, trabalhadores rurais e povos indígenas do médio Xingu e da Transamazônica e ONGs locais, nacionais e internacionais

 

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