Papa, África, a opção pelos pobres e a desobediência

Jung Mo Sung *

No artigo anterior ("Papa, África e a manifestação do amor de Deus na opção pelos pobres"), eu fiz, a partir do pronunciamento do papa Bento XVI aos bispos da República dos Camarões, algumas reflexões sobre como a evangelização só é verdadeiramente anúncio do amor de Deus na medida em que a Igreja se engaja na luta pela vida e direitos dos pobres. Neste artigo eu quero fazer algumas reflexões a partir da segunda parte do texto do discurso do papa que eu citei do discurso do papa:
"No contexto da globalização que bem conhecemos, a Igreja nutre um interesse particular pelas pessoas mais necessitadas. A missão do Bispo impele-o a ser o principal defensor dos direitos dos pobres, a suscitar e favorecer o exercício da caridade, manifestação do amor do Senhor pelos humildes. [...] a Igreja quer, através da sua doutrina social, despertar a esperança nos corações dos marginalizados. Dever dos cristãos, sobretudo dos leigos que têm responsabilidades sociais, econômicas, políticas, é também deixar-se guiar pela doutrina social da Igreja, a fim de contribuírem para a edificação dum mundo mais justo onde cada um possa viver com dignidade". (Bento XVI)

O papa Bento XVI diz que um dos objetivos da doutrina social da Igreja (a partir de agora DSI) é "despertar a esperança nos corações dos marginalizados". Nesse sentido, ela faz parte da missão de evangelização, que, como vimos no artigo anterior, deve suscitar amor e esperança que se concretiza na solidariedade ou na opção pelos pobres. Eu penso que aqui temos o núcleo da missão evangelizadora das igrejas cristãs: anunciar a boa-nova de Jesus que suscita amor e esperança nos e em favor dos pobres e marginalizados, como testemunho do amor gratuito de Deus a todas as pessoas. Esse núcleo é "universal", pois dá um critério que pode e deve ser aplicado em todas as igrejas locais e em todas as lutas concretas.

O discurso do papa, contudo, segue adiante com uma afirmação que nos obriga a pensar com atenção: "Dever dos cristãos, sobretudo dos leigos que têm responsabilidades sociais, econômicas, políticas, é também deixar-se guiar pela doutrina social da Igreja, a fim de contribuírem para a edificação dum mundo mais justo onde cada um possa viver com dignidade".

O papa diz que os cristãos, sobretudo os leigos, que têm responsabilidades sociais, econômicas e políticas, devem se engajar em questões concretas e devem se guiar pela DSI. Para ele a DSI da Igreja Católica não deve ser vista apenas como um direcionamento mais geral, de ordem ética e teológica, mas também como um conjunto de diretrizes concretas. Mais do que isso, ele diz que os cristãos leigos (aqui ele usa cristãos como sinônimo de católicos) devem obediência à DSI. Se a palavra obediência pode soar aqui forte demais, podemos dizer que os leigos devem aceitar ser guiados por essa doutrina até nos níveis mais concretos da sociedade onde eles exercem a sua responsabilidade social, econômica e política.

Isso pressupõe, pelo menos, duas coisas. Primeiro, que as prescrições mais concretas da DSI teria uma universalidade tal que, por isso, poderia e deveria ser aplicada em todas as partes do mundo. Essa idéia de uma proposta ou uma doutrina social com validade universal pressupõe, por sua vez, que não há diferenças fundamentais entre as realidades econômico-social-políticas da Europa, Estados Unidos e a África ou então da América Latina. O que está longe de ser verdade. Essa negação das particularidades locais em nome de uma "verdade universal", ou um "conceito universal" no campo das ciências humanas e sociais, reflete uma visão "eurocêntrica" (que hoje inclui também os Estados Unidos da América) do mundo que nega as especificidades econômicas, sociais e culturais das outras regiões do mundo, além de negar a validade dos conhecimentos e valores culturais acumulados dessas regiões. (Para W. Mignolo, a proposição de conceitos universais tem a ver com o projeto de dominação global do mundo Ocidental moderno.)

Segundo, os leigos devem obedecer ou "deixar-se guiar" pelos bispos em todos os assuntos da vida pessoal e social. Estou de acordo que, segundo a tradição da Igreja Católica, o bispo tem a função de liderar a Igreja local na sua missão de evangelização. Mas, isso não implica necessariamente na definição e direção também das questões operacionais ligadas às responsabilidades econômicas, sociais e políticas dos/as cristãos/as leigos/as. Pois, há uma diferença de nível entre o ensinamento de que o testemunho do amor gratuito de Deus deve ser concretizado na luta pela vida e direitos dos pobres e as formas concretas como devemos viver essa missão. As formas concretas das ações e propostas econômicas e sociais devem ser resultado das análises da realidade e das possibilidades históricas e técnicas disponíveis. Nesse nível, a obediência a priori das determinações da DSI ou dos bispos não faz muito sentido e nem produzem resultados almejados.

A ação concreta da evangelização em um mundo marcado por tanta desigualdade e injustiças sociais deve ser resultado da articulação do "espírito" da missão (testemunhar o amor de Deus através da opção pelos pobres) e a sua encarnação histórica (as condições sócio-históricas e as possibilidades existentes). Isso exige criatividade e não uma simples cópia de "receitas universais".

Por isso, há ocasiões que, em nome da "obediência" à missão de testemunhar o amor de Deus no mundo, devemos desobedecer a algumas determinações da DSI ou diretrizes dos bispos.

(Autor de "Cristianismo de Libertação: espiritualidade e luta social")

* Professor de pós-graduação em Ciências da Religião

Fonte: www.adital.com.br

 

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