Há uma clara evangelização da política

Entrevista com Lamia Oualalou, estudiosa da inserção política e religiosa dos evangélicos.

Por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania

Depois da disparada de Bolsonaro na última hora do primeiro turno, o Brasil finalmente encara uma realidade: o poder político das bancadas evangélicas e suas lideranças move montanhas. Para debater esse fenômeno, entrevistamos Lamia Oualalou, estudiosa da inserção política e religiosa dos evangélicos, que contribuiu no recém-publicado "Religião e política em tempos de mudança", da editora Baioneta. Marroquina com cidadania brasileira, ela já publicou sobre o tema em outras línguas e explica as razões que fizeram desta vertente religiosa uma das maiores forças sociais do país.

lamiamarroquinaAntes de tudo, reforça a ideia de que se partidos e grupos progressistas deixaram de fazer o chamado “trabalho de base” e o Estado se ausenta de vastas áreas de pobreza, os evangélicos ocuparam o espaço. “Se a pessoa perde emprego, os membros da igreja ajudam-na a arrumar alguma coisa, se não tem dinheiro pra comida, os líderes da igreja dão um jeito, se os filhos não têm o que fazer a igreja promove uma atividade, o que os afasta de perigos como narcotráfico ou gravidez precoce. Uma empregada que fica quatro horas no transporte público tem nas igrejas um raro lugar de inclusão social e lazer. O pastor é a maior personalidade da vida dessas pessoas”, contextualiza.

Outro aspecto notório desta eleição foi a influência do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal e dono da TV Record, cuja força midiática foi claramente posta a serviço da chapa militar que pode presidir o país. “A Universal é a melhor organizada, tem uma lógica midiática e empresarial muito bem montada. Tem presença mundial, no México, na Argentina, também na França, na África... Tem um papel cada vez maior também na política externa brasileira, pois Edir Macedo decidiu abraçar completamente a causa de Israel. Trata-se da igreja que se adaptou melhor aos novos tempos, usa melhor os mecanismos midiáticos e é a igreja que melhor tomou pra si o papel do Estado”.

Se, por um lado, o crescimento da força das igrejas na política deve aumentar o enfoque crítico a suas pautas, por outro fica registrado o avanço de sua força, que se antes elegia apenas para o legislativo, agora consegue vencer eleições majoritárias. No fim das contas, trata-se de um resultado direto da dinâmica da velha política e seus conchavos históricos.

“A classe política tem muita responsabilidade, pois não fez um trabalho de desconstrução dos pastores e seus interesses. Nunca se preocuparam em falar ao povo que esses pastores têm muito dinheiro, inclusive fora do país... Vamos lembrar da inauguração do Templo de Salomão. A cena era ridícula: toda a classe política foi lá. Estavam Dilma, Temer, Alckmin, prefeitos... Todos lá, mostrando que não era possível ignorar seu poder. Toda a classe política se prestou a disputar favores e preferências do bispo Macedo”, criticou.

A entrevista completa com a jornalista e escritora Lamia Oualalou pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, qual a importância do livro Religiões e política em tempos de mudança diante da atual conjuntura brasileira?

O livro é importante, pois, apesar de a religião sempre ter sido central no Brasil, antes ela não precisava passar pelo Congresso. Uma das primeiras pessoas que um governante sempre teve de ver ao ser eleito era um arcebispo, um líder religioso. O papel hegemônico da Igreja Católica era tamanho que não precisava se articular diretamente com políticos eleitos.

Agora, estamos diante de um tempo de mudanças políticas. Em particular, o Brasil tem uma impressionante força religiosa. Pelo que pudemos ver no Censo de 2010, já há 40 anos se verifica uma queda: antes, tínhamos 92% de brasileiros que se diziam católicos; agora são 64%. De acordo com vários especialistas, nunca se viu um movimento de transformação tão rápido em país deste porte. É profundo e tem implicações sociológicas, culturais e, claro, políticas.

Eu tive enfoque nos evangélicos, mas o livro traz a visão e interrogações de forma mais ampla. Comecei a trabalhar com o tema dos evangélicos há 10 anos, com mais força a partir de 2012.

Conversava com pessoas do PT e outros partidos, mas me interessei mais por falar com pessoas do dito campo progressista. Elas não entendiam meu interesse pelo assunto, achavam-no menor. “Ah, é que você nasceu em país muçulmano, tem uma visão diferente com a questão” (nasci no Marrocos, morei na França, mas tenho cidadania brasileira, pois minha filha nasceu no país).

Não era só isso. Grande parte do que acontece no país hoje tem a ver com a mudança da preferência religiosa de parte da população.

Correio da Cidadania: Nesse sentido, o que você pode comentar mais especificamente da sua contribuição na obra, a tratar do evangelismo neopentecostal e suas consequências na vida política e social?

As consequências políticas e sociais são muito grandes. O Brasil, com as migrações internas, teve uma reversão muito forte da população rural para urbana dos anos 60, 70 pra cá. Essas pessoas, em grande parte, foram morar em favelas ou bairros populares, onde os níveis de emprego e presença do Estado são baixos. Lugares de pessoas muito desamparadas. As igrejas evangélicas, com grande visão estratégica, conseguiram aparecer como resposta e tomaram espaço do Estado.

Se a pessoa perde emprego, os membros da igreja ajudam-na a arrumar alguma coisa, se não tem dinheiro pra comida, os líderes da igreja dão um jeito, se os filhos não têm o que fazer a igreja promove uma atividade, o que os afasta de perigos como narcotráfico ou gravidez precoce. Uma empregada que fica quatro horas no transporte público tem nas igrejas um raro lugar de inclusão social e lazer.

Acabou que as igrejas se tornaram o espaço mais importante da vida dessas pessoas. Elas só ouvem rádio e assistem TVs evangélicas, compram discos de artistas evangélicos, tem Facebook e grupos de WhatsApp só de evangélicos, até se vestem de um jeito relacionado à fé. Tem até uma indústria de moda à parte, escrevi em outro livro sobre este outro aspecto.

Tais pessoas se tornam dependentes do discurso do pastor da igreja, o que têm impacto político importante. Não foi à toa que no dia seguinte do grande protesto do “Ele Não” começou a subida do Bolsonaro, que teve resultados acima do esperado no primeiro turno.

O pastor é a maior personalidade da vida dessas pessoas. Os pastores têm visões de mundo diferentes, mas em comum a capacidade de falar bem, capacidade de persuasão e liderança de grupos. Se o pastor pede voto no Bolsonaro, a grande maioria vota nele. Na eleição legislativa isso também foi forte, vimos a eleição de personagens de quem nunca ouvimos falar na política, mas que são conhecidas no cenário evangélico.

O impacto é forte na escalada conservadora, da intolerância, inclusive religiosa, como em relação às religiões afro.

Correio da Cidadania: Um fenômeno que já algum tempo era inevitável, portanto.

Não era uma fatalidade, ser evangélico não era necessariamente ser de direita. O ponto é que os partidos progressistas, a exemplo do PT, não souberam falar com tais pessoas, não perceberam o tamanho da mudança e abandonaram essa população para os pastores. Não houve nenhum trabalho de desconstrução dos pastores, alguns verdadeiros bandidos, alguns dos maiores milionários do país. Deixou-se passar.

E notemos que a Teologia da Prosperidade tem um discurso muito relacionado ao consumo, uma boa vida material, bastando pedir a deus. De certa forma parece o discurso do PT, quando o partido afirmava o consumo como o ponto central da vida das pessoas. No fim das contas, o partido até sustentou um discurso parecido com alguns aspectos da Teologia da Prosperidade.

Lembro de discurso do Guido Mantega, em épocas melhores, dizendo que agora as pessoas têm acesso ao cartão de crédito e isso as tornava cidadãs. Um discurso que entendo como muito grave, ao menos do ponto de vista progressista.

Hoje os evangélicos demonizam a esquerda, afirmam que não era graças ao governo que as coisas estavam melhor, por mais evidente que fosse o papel do governo. Agora falam do diabo, a crise é culpa de satanás. E o satanás é o PT, discurso aceito por muitos fieis.

Correio da Cidadania: Uma edição recente do jornal da Igreja Universal afirma que a denominação religiosa auxiliou mais de 11 milhões de pessoas no último ano. Independentemente de uma discussão mais acurada de tal dado, como você percebe esse aspecto? Trata-se de um movimento deliberado de ocupação do papel do Estado naquilo que lhe compete em termos de políticas sociais?

Como dissemos no começo, não dá pra saber bem quantas pessoas fazem parte da Universal. No Censo de 2020 poderemos saber melhor.

Mas as igrejas também vivem um momento de diversificação. As grandes congregações perderam bastante gente. Há menos gente na Assembleia de Deus, na Universal, também por algumas dissensões internas, a exemplo da Igreja Mundial, criada por um pastor que era da Universal.

A Universal é a melhor organizada, tem uma lógica midiática e empresarial muito bem montada. Tem presença mundial, no México, na Argentina, também na França, na África... Tem um papel cada vez maior também na política externa brasileira, pois Edir Macedo decidiu abraçar completamente a causa de Israel.

Trata-se da igreja que se adaptou melhor aos novos tempos, usa melhor os mecanismos midiáticos e é a igreja que melhor tomou pra si o papel do Estado.

O sistema presidiário do Rio de Janeiro tem 100 representações religiosas, das quais 92 evangélicas. No fim das contas, o Estado abandona seu papel social e o espaço é ocupado por tais igrejas. No Bope tem um grupo evangélico também, e eles têm um grupo interno, vão fardados às favelas e tudo o mais, apresentando-se como missão social.

Há uma ideia de que conseguem se infiltrar melhor em certas áreas, mais perigosas, mas no fim das contas é catastrófico, pois são eles e ninguém mais que decidem o que pode ou não pode fazer.

Correio da Cidadania: Nesse sentido, como analisa os resultados da chamada bancada da bíblia neste 2018? 

Lamia Oualalou: Boa parte dos deputados evangélicos não se reelegeu. Mas tal bancada continua muito importante – inclusive a ala católica.

De todo modo, é uma bancada cada vez mais conservadora. E no Congresso se batem por temas que os beneficiam materialmente: não pagar impostos, usar as TVs como fazem de forma absolutamente ilegal...

Sobre os temas morais, acabam que não são mais conservadores que os católicos. Às vezes, são mais abertos. A própria Universal não é tão anti-gay assim, considera que o aborto é aceitável em certas situações...

Mas temos de aguardar como será a atuação desta bancada no novo período. Se Bolsonaro for presidente, não dá pra saber se a ação desta bancada será potencializada ou esvaziada, pois se tornará um foco grande da política nacional.

Claro que há uma direitização do Congresso e uma inesperada ocupação de espaços de poder pelos evangélicos. Antes, eles se elegiam vereadores e deputados porque parecia um limite. Mas agora começam a se lançar e até vencer eleições majoritárias. O Marcelo Crivella se elegeu no Rio, inclusive com apoio católico. Podemos ter um governador do Rio evangélico. Bolsonaro não é evangélico, mas representa o mesmo movimento...

Correio da Cidadania: Como você enxerga a figura de Edir Macedo, chefe da igreja Universal e dono da TV Record, neste processo eleitoral e no jogo de poder?

Lamia Oualalou: Ele teve papel importante ao chamar voto em Bolsonaro e oferecer a ele uma entrevista amiga, sem perguntas duras, enquanto os outros iam debater na Globo três dias antes do primeiro turno. Ao colocar seu aparato midiático a serviço de Bolsonaro, exerceu um papel político indiscutível.

No entanto, o problema não é o papel que agora vemos ser exercido por tais igrejas, que já existia de todo modo. A classe política tem muita responsabilidade, pois não fez um trabalho de desconstrução dos pastores e seus interesses. Nunca se preocuparam em falar ao povo que esses pastores têm muito dinheiro, inclusive fora do país...

Vamos lembrar da inauguração do Templo de Salomão. A cena era ridícula: toda a classe política foi lá. Estavam Dilma, Temer, Alckmin, prefeitos... Todos lá, mostrando que não era possível ignorar seu poder. O próprio Lula se prestou a isso. Macedo foi contra Lula em 1989, 94, 98 até que finalmente ficou ao lado dele em 2002, e da Dilma em suas eleições. Vimos o preço que se pagou por isso, altíssimo.

De todo modo, o que ficou claro neste evento é que toda a classe política se prestou a disputar favores e preferências do bispo Macedo.

Correio da Cidadania: Há uma “evangelização da política”? O que isso significaria para a totalidade da sociedade brasileira a seu ver?

Lamia Oualalou: Sim, claramente há uma evangelização da política. Como falei, não dá pra ignorar o antigo papel dos católicos, conservador também. Mas os evangélicos articularam como ninguém os aparatos políticos e midiáticos com a cultura, a sociedade. Têm um papel muito forte, criam um mundo à parte entre seus seguidores, que só se relacionam entre si.

A repercussão disso está visível: uma parte das pessoas vota em função do que fala o pastor. Não todos, claro, mas uma parte muito considerável, porque o pastor é a pessoa que os influencia no dia a dia. E colocam-se valores cada vez mais conservadores. Os partidos progressistas não se interessaram muito em trocar mais ideias, se relacionar mais de perto com tais pessoas.

Fora isso, há o movimento mundial de direitização, de aumento da intolerância. Ser evangélico não é necessariamente ser intolerante, mas hoje eles têm se manifestado cada vez mais contrários às minorias representativas, negros e suas religiões, indígenas... Mesmo sendo uma maioria de pobres e desamparados estão em um mundo paralelo, com uma identidade própria, uma identidade mais evangélica que brasileira, digamos assim, em seu modo de viver.

*Gabriel Brito é jornalista é editor do Correio da Cidadania.

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