Nossa Senhora Aparecida, a antevisão de um Brasil moreno

Dia 12 de outubro de 1717 foi a imagem retirada das águas, quebrada em duas partes.

Carlos Roberto Marques*

Todo estudo leva à conclusão de que a Natureza sempre procura o equilíbrio, a estabilidade. Um rio só repousa quando encontra o mar ou se transforma num lago. Hoje se discute equilíbrio ecológico, ambiental, com a consciência de que tudo funciona de maneira orquestrada, conjunta, interdependente. Mas essa busca da Natureza pelo equilíbrio nem sempre é lenta e suave; um raio equilibra a energia entre o céu e a terra, e o faz de forma instantânea e tenebrosa.

Há não muito tempo, mesmo no Brasil, eram impensáveis algumas uniões inter-raciais, exceto aquelas primeiras, até folclóricas, entre portugueses e negras e, eventualmente, índias. Os italianos foram bem receptivos e sua proximidade com os portugueses deve ter facilitado mútua aceitação. Outros imigrantes, especialmente os japoneses, foram mais resistentes. Hoje, é difícil encontrar família que não apresente uma saudável mistura de raças. Mas isso também nem sempre foi suave, apesar de lento. E este fenômeno vai também sendo observado em outras terras.

Minha primeira lembrança de Nossa Senhora Aparecida vem da infância, quando em Tambaú, SP, aconteciam milagres que o povo atribuía ao padre Donizetti: uma canção sertaneja (O milagre de Tambaú) contava a história de uma ricaça, que, pelo milagre recebido, quis presentear o padre com um colar de ouro que tirou do pescoço. O padre recusou e orientou que o desse à primeira pessoa do caminho. Ao encontrá-la, diz a canção, desceu do carro, mas "na hora se arrependeu. Por ser uma pobre preta, cinco mil-réis ela deu". Logo voltou a sentir a doença e retornou ao padre. Ele, estendendo-lhe a mão: "Teus cinco mil-réis ‘tá aqui, guarde pro resto da vida; a pretinha que ‘ocê' viu era a Senhora Aparecida". Era já denúncia do preconceito contra o negro e o pobre. Muito pior: contra a negra pobre.

Momento de reflexão
Pela ação das águas barrentas do rio e longa exposição à fuligem das lamparinas das primeiras décadas de culto, a imagem de Aparecida adquiriu a cor de canela, símbolo de brasilidade. A miscigenação, reduzindo o preconceito, vai dando ao brasileiro sua coloração definitiva. Se o negro é sensível ao frio e o branco, ao calor, a Natureza aqui está cuidando de buscar o equilíbrio, na cor que a ela melhor se ajusta. Um dia seremos todos cor de canela, como se manifestou a Santa.

Dia 12 de outubro de 1717 foi a imagem retirada das águas, quebrada em duas partes. Primeiro veio o corpo; depois, a cabeça. Então a pesca tornou-se abundante. Veio aos pedaços, como é a formação do nosso povo: uma porção europeia, uma africana, outra de nativos, outra de asiáticos. A abundância virá para todos quando todos formarem "um só corpo e um só espírito", numa concorrência leal e competição sadia; mas, sobretudo, com espírito fraterno e solidário. Dia 12, portanto, celebramos o Dia de Nossa Senhora Aparecida, neste que a ONU proclamou Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes. Que seja um momento de profunda reflexão. Das aparições de Lourdes, de Fátima, de Guadalupe, a uma simples e quebrada imagem de argila, como explicar tamanha propagação de fé e devoção? Essa Virgem morena, cor de canela, certamente tem um recado para todos nós.

*Carlos Roberto Marques é Leigo Missionário da Consolata - LMC, e membro da equipe de redação. Publicado na revista Missões, n. 08 - out. 2011. www.revistamissoes.org.br

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