Fome: um tema sempre atual

Antônio Mesquita Galvão *

Ao pensar em escrever alguma coisa sobre o espectro da fome que nos assola e a doutrina social da Igreja correlata, que às vezes esquecemos, veio-me a suspeita de estar iniciando algo que já foi fartamente debatido, através de jornais, revistas, televisão, pregações, cultos e cursos. Embora o assunto possa parecer esgotado, e o tema "batido", na verdade, hoje, se constata que o problema foi parcimoniosamente minorado. Pelo contrário, aumentou, agravando-se, trágica e assustadoramente. O brasileiro continua padecendo fome e miséria social.

Recordo que, numa rua em que morei, foi criado um "comitê contra a fome". Igualmente na empresa onde sou aposentado, tomaram análoga iniciativa. Como um "fogo de palha" -e isso, em geral, caracteriza as atitudes humanas- meses depois, tudo caiu na apatia e no esquecimento. Os novos governos populares se instauraram sob a égide do combate à fome, através de projetos, mais demagógicos que efetivos, como "fome zero", "bolsa família", e outros. E cabe perguntar: a fome dos indigentes foi saciada?

A resposta todos nós sabemos: não, não foi! Só foi minorada por algum tempo, enquanto as pessoas se lembravam de doar, enquanto a fome era manchete. Depois apareceram outros assuntos, as "meritórias campanhas" foram ganhando páginas de menos destaque, até a exaustão e o esquecimento. Hoje quase não se fala mais no assunto. E pior: pouco ou quase nada se faz para combater a fome dos indigentes e, sobretudo, denunciar e desmontar as estruturas geradoras dessa crueldade chamada fome. Nossa passionalidade latina nos torna ricos em arroubos e gestos de indignação, mas nossa falta de convicção - e de fé até - nos revela fracos em perseverança, sobretudo nas obrigações sociais com o outro.

Qualquer problema ou sobressalto que nos alerte, é capaz de gerar uma reação, um arrebatamento, rico em discurso e carente de ação efetiva. Assim foi quando as igrejas, as pessoas bem intencionadas e parte da mídia nacional denunciaram, no início da década de noventa a existência de cerca de 32 milhões de indigentes e famintos em nosso país. A comoção - recordam? - foi geral e a tomada de medidas imediata. No entanto, por falta de consistência, de programas definidos, de uma preocupação perene com o social, e medidas mais profundas, de mais tenacidade por parte da sociedade e do governo, hoje podemos dizer que o número daqueles excluídos já ultrapassa a cifra de 40 milhões de brasileiros, agravando o problema em extensão e complexidade.

Hoje, reclamamos muito da violência urbana. São os menores infratores, trombadinhas, flanelinhas violentos e achacadores, que diariamente aparecem nos noticiários, praticando assaltos, roubos e extorsões. Preocupa-nos também o avanço assustados dos crimes cometidos pelos traficantes, assaltantes e seqüestradores. É muito cômodo, nesses casos, a gente esconder a cabeça, qual um avestruz, e dizer que é culpa dos pais que são irresponsáveis, ou do governo que é inerte e meramente demagógico. Mas não! A culpa é nossa! É nossa, justamente, na medida em que encetamos campanhas cíclicas, superficiais e de curta duração e depois nos deixamos seduzir por mentiras e estatísticas maquiadas. A fome da população pobre não está na mesma proporção de nossas campanhas filantrópicas. Ela aperta todos os dias, quer nós tenhamos disposição para a caridade ou não.

Por que existe fome?

Em qualquer lugar que se vá, não é difícil ver-se pessoas, especialmente crianças, pedindo esmolas ou alguma coisa para comer. O ato de comer é característico das funções vitais e biológicas de todo o ser vivente, que para manter-se precisa de uma dose mínima de calorias diárias, representadas por algum tipo de alimento, capaz de sustentar a pessoa por algumas horas, até a próxima refeição. Existe fome institucionalizada porque as carências mínimas do organismo dos excluídos não são satisfeitas satisfatoriamente.

O ciclo de absorção e digestão do ser humano determina a ingestão de alimentos em três refeições diárias: uma ao acordar, uma ao meio dia e outra à noite. Os órgãos nacionais de saúde afirmam que 2.400 calorias/dia é o mínimo indispensável para alimentar uma pessoa. Em nosso país, essa exigência é representada por uma xícara de café com leite e açúcar, uns dois pedaços de pão, mais dois pratos (um para cada refeição) de feijão, arroz, salada, massa e um pedaço de carne. Isto é o mínimo. Com uma porção dessas a pessoa fica razoavelmente alimentada e consegue trabalhar, estudar e praticar alguma atividade esportiva ou de lazer. Como afirma Carmen Galvão (in: Os filhos da fome. Revista O Recado, maio 1994) "Em muitos casos, as mínimas exigências alimentares deixam de ser atendidas, resultando extensas filas de pedintes, crianças famintas, famílias desestruturadas, pessoas emocionalmente desestabilizadas pela fome crônica, sem explosão para o trabalho e o estudo, revoltadas e sem capacidade para as atividades da vida normal".

Mas por que existe fome? Se a pergunta é oportuna, as respostas nem sempre são reveladoras ou satisfatórias. Superficialmente se poderia ouvir que existe fome porque o número de pessoas é superior aos estoques de alimentação. Essa afirmação não é verdadeira. É mentira falar em fome num país de super-safras. Há dias, lendo jornais, pude constatar um fato revoltante. Numa determinada região produtora, insatisfeitos com os preços pagos pelos órgãos compradores, os donos de uma safra preferiram jogar no rio toneladas de grãos alimentícios a vendê-los a preços aviltados. Coisa parecida aconteceu antes: por falta de mercado uma empresa avícola preferiu queimar no álcool milhares de frangos. Volta e meia acontecem protestos desse gênero, como queima de cebolas, afogamento de porcos e coisas semelhantes, porque os órgãos do governo e os intermediários (e esses são os que mais ganham) não querem pagar um preço justo ao produtor, capaz de acelerar a atividade produtiva. Com tais atitudes de insensibilidade, destruir o alimento, ao invés de vendê-los, ou dá-los aos carentes, só contribuem para a fome, a miséria, a revolta.

A fome que existe em certas regiões da Ásia e da África é motivada por falta de alimentos. Na América Latina, e em especial no Brasil, não é o que ocorre. Alimentos há, e em profusão. Basta a gente ir a um supermercado, a uma CEASA, ou a um atacado de gêneros. Por que há tanta fome, então? São múltiplas e complexas as causas da fome no Brasil. Em primeiro lugar vemos a ganância e o egoísmo, como geradores de tantos descaminhos, privilegiadamente, a má distribuição de renda e de terras agriculturáveis. Há quem prefira deixar a terra parada, sem plantar, apenas servindo como investimento especulativo. Há falta de seriedade social e ausência de decisões políticas voltadas para o bem comum.

O uso indevido e privativista da terra se associa a esse grande mal. A baixa tecnologia que impede o atingimento de índices médios de produtividade acarreta a elevação de preços e o conseqüente alijamento dos mercados internacionais. Igualmente a excessiva mecanização de nossas lavouras (O Brasil possui o maior índice de máquinas agrícolas por hectare, do mundo), a exploração de mão de obra quase a níveis de trabalho escravo, o pagamento de "salário-mínimo", a falta de condições de estudo, política habitacional elitista, saúde pública falida e saúde privada inacessível. Esses mecanismos de injustiça geram fome, miséria, marginalidade. "Enquanto os ricos ficam mais ricos - prossegue Carmen S. M. Galvão - a classe média empobrece, os pobres tornam-se miseráveis. Por que acontece isso? Por causa dos sistemas injustos, dos mecanismo de marginalização que existem, onde uns poucos se fartam e a grande massa passa fome, pois o mísero salário que recebe (quando recebe), é insuficiente para comprar alimentos e satisfazer as mais elementares necessidades da família".

A essas brutais realidades se devem acrescentar os erros politico-governamentais, como escândalos nunca ressarcidos pela Previdência, incompetência na administração da coisa pública, desperdício de obras faraônicas e os milhões de Reais desviados (só para citar alguns) em 1994 pelos famigerados "anões do orçamento", em 1996 pelos bancos socorridos pelo Proer, em 1997 pelo escândalo dos precatórios e em 1999 pelos maus negócios feito pelo Banco Central. Já imaginaram o que essa soma alimentaria de pessoas, em um ano?

Esse "vale tudo", que passa pelo escândalo do "mensalão" ora em julgamento, é a divisa distintiva do neoliberalismo que devasta o Brasil há trinta anos. Hoje, essas práticas liberais conduziram a sociedade a uma depuração criminosa, no sentido de banir os pobres, aqueles que não têm acesso ao mercado. Aí estão as chacinas, as crises da saúde pública, a mortalidade infantil (que só ocorre nas camadas de baixa renda). Antes, o pobre comia a comida que ia no lixo. Hoje nem isso lhe sobra. No afã de ganhar mais, sob pretextos ecológicos, e visando uma faxina étnica, o tubarão recicla o lixo. Fecharam a lanchonete dos miseráveis... As campanhas do tipo "não dê esmolas" se perfilam nessas práticas.

Há uma frase do escritor alemão Belthold Brecht, dita em 1939, que diz muito de nossas realidades atuais: "No futuro as crianças pobres deverão temer a fome, e as ricas, aos famintos" (A Mãe-Coragem. Exb. 1939).

A grande mentira

As realidades humanas sempre foram um misto de verdade e mentira, ética e farsa. A história humana é narrada pela ótica dos fortes, dos vencedores. Há fome em todos os quadrantes do mundo. Quando a grita geral se eleva muito, que fazem os países ditos desenvolvidos? Mandam copinhos de água mineral, frascos de medicamentos vencidos, garrafas de soro glicosado. E esses paliativos resolvem? Se as super-safras fossem de feijão, arroz, trigo, frutas, milho e mandioca, aí sim, o combate à fome estaria sendo tratado com seriedade. Mas isso não serve de moeda internacional... Além disso, os poucos resíduos alimentares que ficam aqui, são irresponsavelmente estocados, tornados indisponíveis, apodrecendo em pouco tempo, enquanto tantos passam fome. Isso é um crime! Ao revés, apesar de largas extensões de terras, férteis, porém ociosas, o Brasil importa trigo, milho, feijão e arroz. Tudo para facilitar o mercado globalizado com outros países. É ou não uma grande mentira, todo esse artifício de notícias oficiais a respeito de super-safras?

Uma questão de ética

Toda a crise social do Brasil passa por uma terrível crise de ética na sociedade civil, na política, nos poderes públicos, executivo (que não faz nada), legislativo (que faz leis em favor de pequenos grupos) e do judiciário (que sempre se omite). A lei no Brasil é como as cobras: só morde quem está descalço. O cidadão insensível ou acomodado dirá que a fome ocorre porque o pobre é vagabundo, não gosta de trabalhar, porque tem muitos filhos. Essa de dizer que há oportunidades para todos é uma lenda que os acomodados criaram para justificar sua inércia e jogar tudo no status quo. Nunca esquecendo que as "revoluções" ou golpes-de-estado ocorridos no Brasil nunca visaram mudanças, mas, tão-somente, impedir reformas. A fome, do jeito que se afigura, não torna-se problema somente daqueles que a sofrem no estômago, mas de toda a sociedade que, fechando-se, elitizando-se, tornando-se insensível aos problemas de todos, cria essas terríveis distorções, capazes de gerar a intranqüilidade e o desequilíbrio social.

Muitos passam fome porque quem tem alimento disponível e supérfluo é incapaz de repartir. Na impossibilidade de obter os bens pelas vias normais, os miseráveis buscam auferir alguma coisa, pelo estelionato, pela violência que vai desde um simples furto até o assalto, o tráfico de drogas ou o seqüestro. A sobrevivência, o estado de necessidade, às vezes pode levar ao caminho da revolta, da violência e da marginalidade.

QUESTÕES PARA DISCUTIR EM GRUPO

• Tínhamos consciência que ainda há tanta gente passando fome?
• Vamos às raízes. Cite causas sociais, políticas e econômicas, geradoras da fome e da marginalidade.
• Conhecidas as causas, os remédios empregados são eficazes? Por que?
• Se os remédios empregados não atingem objetivos, o que fazer para construir alguma coisa nesse sentido?

* Antônio Mesquita Galvão, 70 anos, é leigo, filósofo, Doutor em Teologia Moral e Escritor, autor de mais de 100 obras, publicadas no Brasil e exterior, entre elas "A fome e o ensino social da Igreja", Ed. Santuário, 2002.

Fonte: www,adital.com.br

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