Leitura bíblica na abertura das sessões do Legislativo

?sio Francisco Salvetti *

Nesta semana acompanhamos o debate em Passo Fundo - RS, sobre o desarquivamento de três projetos de lei. Gostaria de fazer uma breve reflexão sobre o projeto que determina a leitura de um versículo bíblico na abertura das sessões legislativas da Câmara de Vereadores de Passo Fundo. A pouco tempo, ocorreu semelhante debate em nível nacional sobre a retirada dos crucifixos de repartições públicas. De modo geral o argumento central de ambas as posições, centra-se basicamente no seguinte: "o Estado é Laico por isso não deve pender para nenhuma religião". Esta pretende ser uma postura de respeito a crença e fé de cada cidadão. Outros se apoiam na "cultura e tradição do povo", como a maioria é cristã, esta seria uma forma de representação legítima.

A partir dessas duas posturas, pretendo fazer algumas reflexões de cunho filosófico-político. No início da modernidade, com a separação entre Igreja e Estado, buscou-se levar a cabo a laicização do Estado. Com o poder estatal fundamentado em princípios seculares, criou-se a esperança que toda a identidade com base religiosa não teria relevância política. Contudo, evidencia-se atualmente, um reavivamento dos referenciais religiosos como dimensão significativa da atualidade. Esse retorno às dimensões religiosas põe fim às teses que anunciavam o fim da religião, ou a necessidade da exclusão desta da esfera pública. É paradoxal que a mesma modernidade que exigiu a separação entre Estado e Igreja, também institui a liberdade religiosa. Se o Estado se tornou laico devido ao processo de secularização do poder, de outro lado, incorporou-se do Estado Democrático de Direito o tema da liberdade de consciência e de religião. Portanto, a pergunta que devemos fazer é: após a separação entre Estado e Igreja o poder político retira sua legitimação apenas de justificações seculares? Essas justificações bastam para uma sociedade plural e complexa? De que forma os sujeitos religiosos são representados neste Estado Democrático de Direito? Até que ponto um cidadão religioso pode participar das decisões do Estado? Qual é o papel político das religiões? Em que medida é legítima a fundamentação religiosa, na esfera pública política, para a formação política da opinião e da vontade dos cidadãos?

Nas sociedades modernas, o Estado Democrático de Direito se defronta com o pluralismo religioso que clama por inclusão cultural e política, no entanto, o Estado tem a delicada tarefa de observar o não ferimento do mandamento da neutralidade, mas ao mesmo tempo, não pode assumir uma postura de intolerância diante dos sujeitos religiosos e principalmente das minorias religiosas. Em nome da liberdade de religião, as minorias religiosas passaram a exigir de forma legítima a igualdade de tratamento, regras de exceção ou medidas do Estado. O grande problema é que a igualdade é frequentemente ameaçada pelo predomínio de uma cultura da maioria que abusa de seu poder adquirido na história, para determinar o que pode valer como cultura política obrigatória em geral. Os conflitos surgem no momento de decidir quem deve e quando deve aceitar o ethos (costumes) das outras culturas. Por exemplo: Os alunos que não seguem nenhum tipo de religião ou que são de outra denominação religiosa devem aceitar que a professora venha para a sala de aula em traje islâmico? Ou o pai turco deve aceitar que a filha tenha aulas de esporte juntamente com meninos? Entendemos que o Estado é democrático quando possibilita e incentiva a expressão dos diversos grupos que o compõem.

Desde a época da reforma, e do iluminismo, houve uma mudança real na consciência religiosa, a ascensão das ciências modernas e a disseminação do direito positivo e da moral social profana exigiu dos cidadãos religiosos um novo enfoque epistêmico, aberto às visões de mundo, aberto ao saber secular e aberto aos saber científico. Diante dessas mudanças, esse fardo não recai somente sobre os sujeitos religiosos. Os sujeitos seculares também carregam o fardo de adaptação, a qual requer deles uma superação auto reflexiva de uma auto compreensão da modernidade, exclusiva e esclarecedora em termos secularistas.

Enquanto os cidadãos seculares estiverem convencidos de que as tradições religiosas constituem apenas uma relíquia arcaica de sociedades pré-modernas que apenas se mantiveram na sociedade atual, eles não conseguirão conceber que a religião possui uma justificação interna. Assumindo tal enfoque epistêmico, esses cidadãos não levarão a sério as contribuições religiosas nas disputas políticas, nem examinarão tal conteúdo religioso.

Sob premissa de um Estado Democrático, a admissão de exteriorizações religiosas na esfera pública política requer de todos os cidadãos que não excluam a possibilidade de um conteúdo cognitivo dessas contribuições. O grande problema é que se pressupõe uma mentalidade que ainda não é auto-evidente nas sociedades secularizadas. O ideal é a sociedade sintonizada epistemicamente com as várias formas de vida. Para isso ocorrer depende de uma mudança de mentalidade, tanto na perspectiva religiosa como secular. Eis a tarefa, também do nosso legislativo.

*Ésio Francisco Salvetti é doutorando de Filosofia e Professor do Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE) de Passo Fundo, RS.

Fonte: ?sio Francisco Salvetti / Revista Missões

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