Mística e Teologia da Libertação

Alfredo J. Gonçalves *

Em um de seus últimos escritos, o teólogo italiano Bruno Forte retoma o tema da Teologia da Libertação (TdL). Citando Gustavo Gutiérrez, o autor diz que essa reflexão estimula as comunidades cristãs a uma opção preferencial pelos últimos. Nada de novo para quem navega nas águas da TdL, é bem verdade! Mas, no contexto desse novo empenho pela libertação e pela justiça à luz da fé no Deus de Jesus Cristo, Forte nos conduz a algumas perguntas decisivas, reportando-se sempre àquele teólogo peruano: "De que modo falar de um Deus que se revela como amor numa realidade marcada pela pobreza e opressão? Como anunciar o Deus da vida a pessoas que sofrem morte prematura e injustiça? Como reconhecer o dom gratuito do seu amor e da sua justiça a partir do sofrimento dos inocentes? Em que linguagem traduzir tudo isso àqueles que não são considerados como pessoas humanas, filhos e filhas de Deus?" (FORTE, Bruno, Dialogo e anuncio - l'evangelizzazione e l'incontro con l'altro, Ed. San Paolo, Torino, Itália, 2012, p. 24-25, citando GUTIÉRREZ, Gustavo, Parlare di Dio a partire dalla sofferenza dell'inocente, Queriniana, Brescia, Itália, 1986, p. 19).

Tampouco essas perguntas são novas! A novidade está em que Bruno Forte insiste numa interação crescente e cada vez mais profunda entre a mística da tradição espiritual cristã, de um lado, e o compromisso sócio-político e libertador, de outro. Segundo ele, alguns setores da TdL procuram atualmente aprofundar sua relação com a mística espanhola do "século de ouro", por exemplo, a qual encontra Deus não acima ou além da história, mas dentro e através dela. É assim que não poucos teólogos atuais dessa corrente libertadora se reconhecem mergulhados na motivação histórica e espiritual de figuras como Santa Teresa, São João da Cruz e Santo Inácio de Loyola. Nelas e por elas, justamente na época das conquistas colonizadoras, desenvolvem uma mística que valoriza e sublinha a presença de Deus junto às vítimas mais débeis da exploração, chamando inclusive à conversão os próprios exploradores e poderosos. Às figuras citadas não podemos esquecer a obra e escritos de um Bartolomeu de las Casas, bem como os nomes mais recentes de Ellacuría, Dom Oscar Romero, Irmã Dorothy e tantos outros.

Resulta que a verdadeira via mística jamais aparece como uma fuga aos embates históricos. Ao contrário, na busca incansável da face invisível de Deus, os místicos se defrontam com os rostos visíveis e desfigurados dos pobres, marginalizados, indefesos e excluídos. São interpelados simultaneamente pelo brilho do amor divino e pela escuridão da condição humana vilipendiada. O desafo é precisamente aproximar a luz das trevas, na perspectiva que na interação entre o divino-humano e o humno-divivo, este último possa superar e libertar-se das amaras que o acorrentam: pecado, ódio, vingança, miséria, exploração... Desta maneira, a tradição mística tanto oriental como ocidental, quando levada às últimas consequências, desemboca necessariamente no apelo insistente à missão em favor daqueles que têm sua vida mais ameaçada. Isso explica porque Santa Teresinha do Menino Jesus, sem deixar a clausura, torna-se padroeira dos missionários. Ou então, como os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola desencadeiam uma obra que rapidamente se estende e cobre todos os continentes do planeta.

Mas semelhante entrelaçamento entre mística e empenho histórico encontra suas raízes mais profundas na própria tradição bíblico-teológica e espiritual. A oração de Moisés no episódio da sarça ardente o leva a empenhar-se na organização do povo hebreu para a libertação do Egito. A verdadeira oração reconduz Moisés ao compromisso com os escravos e oprimidos, dos quais, fugitivo e temeroso, havia se afastado (Ex 3,1-12). Vale o mesmo para a oração de Jonas no ventre do peixe. Após um longo processo de fuga, o encontro com Deus o faz "desembarcar" na grande cidade de Nínive. Ou seja, escapando à face de Deus e de si mesmo, viu-se obrigado a escapar da terra dos pagãos e aos desafios que esta comportava; regressando à própria consciência pessoal e ao diálogo silencioso com o mesmo Deus na oração, esta o reconduz à missão (Jn 2,1-11).

Dois outros exemplos neo-testamentários podem ilustrar a ligação entre oração/meditação e ação social, mística contemplativa e interesse pelo desenrolar dos acontecmentos históricos. No primeiro, Jesus toma consigo os amigos mais íntimos - Pedro, Tiago e João - e com eles sobe à montanha, onde, numa antecipação da ressurreição, se transfigura, revelando a face resplandecente do Pai. A tendência de Pedro, como portavoz dos apóstolos, é fazer três tendas e permanecer ali. Mas o próprio Jesus como que aponta a direção da planície, onde os espera tantos rostos tristes e infelizes, pecadores e amargurados (Mt 17,1-13). O segundo exemplo remonta às primeiras comunidades cristãs, na quais a lembrança celebrativa do crucificado e ressuscitado levava os cristãos não somente à reflexão da Palavra e à oração em comum, mas também à partlha dos bens e do pão com os mais necessitados (At 2,42-47; 4, 32-37)

De resto, é nesse movimento dinâmico e dialético entre montanha e caminho que se revela a prática incasável de Jesus. Quanto mais se aproxima do Pai no silêncio da oração, mais se sente atraído para as "multidões cansadas e abatidas" (Mt 9,5-8). Numa palavra, a intimidade com Deus cresce na mesma proporção que o compromisso com aqueles que a sociedade (e a própria religião) rejeita, marginaliza e rotula de impuros. Uma terceira dimensão de sua prática é o esforço de constituir uma pequena comunidade que cultive, ao mesmo tempo, a alegria do encontro com Deus e a misericórdia e compaixão com os pobres. A Teologia da Libertação constitui, sem dúvida, uma expressão viva entre a via da mística contemplativa e a via da missão engajada. O que significa uma ação pastoral e socialmente comprometida com a transformação social nos embates conflituosos da história.

* Alfredo Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos em Roma.

 

Fonte: Alfredo J. Gonçalves / Revista Missões

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