Depois da tragédia: o imortal soluço de vida

Sérgio Abranches*, do Ecopolítica

Agora estamos no triste momento de contar os corpos na região serrana do Rio de Janeiro. Ontem, no início do dia, eram menos de 200 mortos, no começo do dia de hoje são mais de 350 e o número pode aumentar com o prosseguimento das buscas. Há muito entulho impedindo o acesso das turmas de resgate. Muitas áreas ainda inacessíveis.

Ontem, no final da tarde, escrevi para uma amiga que o número de mortos estava chegando a 250 e poderia passar de 300. Mas a previsão é muito pior. Há áreas muito habitadas completamente soterradas. Muitas casas destruídas, a maioria provavelmente ocupada, por causa da hora. É maior a probabilidade de número muito elevado de vítimas porque são regiões de veraneio que, embora tenham população fixa grande e vida autônoma, têm uma parte significativa das casas ocupada sazonalmente. Estamos na alta estação, portanto com ocupação completa. Só não foi pior, porque não aconteceu no final de semana, quando muitas famílias sobem para suas casas na serra.

Temos que torcer para que não venham mais chuvas intensas porque há partes da serra desestabilizadas. O sistema de convergência do Atlântico Sul, que provoca essa concentração de umidade e as chuvas intensas, está bloqueado por um outro sistema criado pelo diferencial de pressão atmosférica e deve ficar assim por mais quatro dias, segundo os meteorologistas.

As perdas são enormes. Quando se vão os entes queridos, a dor e a saudade são para sempre. Sei como é essa dor. Perdi um irmão ano passado em acidente de carro. A ferida permanece aberta.

Vales inteiros foram arrasados. A infra-estrutura foi muito danificada. Há risco de doenças causadas pelas águas infectadas e pela lama.

Com o tempo...

As feridas da natureza cicatrizarão com o tempo e com elas, a memória coletiva irá se dissipando. A tragédia será lembrada aniversariamente. Depois, nem isso. Ela sairá da pauta da mídia tão logo cessem as buscas e se tenha uma contagem final de mortos e desaparecidos. Depois, uma ou outra suíte, se não houver notícia mais quente para tomar-lhe o lugar. Depois, silêncio. Até a próxima tragédia. Ficará, para muitos, somente "o imortal soluço de vida", como disse Drummond em "Os mortos de sobrecasaca", que rebenta das páginas da memória.

As políticas públicas tendem a ser mais efêmeras ainda que o interesse da mídia. Nós nem mais nos indignamos com o descaso das autoridades. Fiquei estarrecido quando a repórter Mônica Teixeira mostrou, no Bom Dia Brasil, que o prefeito de Niterói não resolveu o problema das pessoas desalojadas do morro do Bumba, um lixão aterrado, em cujo deslizamento ano passado morreram 47 pessoas.

Em Niterói, foram mais de 130 mortes, no estado do Rio, mais de 200. Isso em abril de 2010. Hoje ainda há pessoas vivendo no morro do Bumba e muitas das que foram retiradas até hoje vivem em condições precárias. O governador Sérgio Cabral, visitou Niterói na ocasião. Disse que era uma catástrofe, que o governo federal havia liberado R$ 200 milhões em ajuda ao Estado, sendo R$ 90 milhões para a cidade do Rio de Janeiro e R$ 110 milhões para outros municípios. "Vou priorizar Niterói e São Gonçalo nessa distribuição de recursos", prometeu. Hoje o governador falou do morro do Bumba à CBN como se o problema estivesse em fase avançada de solução. Como explicar, então, o morador dizendo que 15 dias depois havia voltado a morar no morro, por falta de alternativa, mostrado na reportagem de Mônica Teixeira?

Outras prioridades se sucederam, o prefeito descansou. Não terminou sequer a remediação e o morro do Bumba continua lá como monumento à omissão e ao descaso. As pessoas permanecem sem moradia. Um quartel desativado abriga 180 pessoas desalojadas do local. Tudo que recebem é um "aluguel social" de menos de um salário mínimo. "A gente se sente abandonado aqui. Estamos entregues à própria sorte", disse Leandra à repórter Mônica Teixeira. E o pior é que estão mesmo. E outras muitas se juntarão a ela.

Depois da tragédia

Essa história vai se repetir. O Bom Dia Brasil mostrou reportagens com outras calamidades ao longo dos últimos 15 anos, com a repórter Ana Luiza Guimarães. As cenas eram praticamente as mesmas, mudavam a roupa e o cabelo da repórter. Sonora de 2003: "foi uma tragédia anunciada". Todas são.

Hoje, o governador, que interrompeu suas férias, se o tempo permitir sobrevoa a região serrana com a presidente Dilma Rousseff. Recursos serão assegurados, haverá veementes declarações de solidariedade, promessas eloquentes. As ações talvez tenham começo, mas dificilmente terão fim. Não se transformarão em políticas públicas coerentes e consistentes, com visão de longo prazo. Serão apenas ações para consumo imediato. As medidas que deveriam ser tomadas não serão tomadas.

Contabilizadas as perdas humanas e patrimoniais, o que deveria acontecer e quase certamente não acontecerá?

Uma revisão integral da ocupação das encostas e dos vales, considerando o fluxo normal das águas, as modificações de terreno que alteraram esse fluxo e aumentaram a força das águas.

Um rio que serpenteava, por exemplo, e que foi canalizado em linha reta, quando enche, as águas correm com muito maior velocidade e violência. Áreas impermeabilizadas impedem a absorção das águas. Remoção de terras nas encostas e vales e desmatamento para edificação desestabiliza os terrenos. Obras viárias e de arte - pontes, viadutos - e edificações mal localizadas bloqueiam o curso das águas.

Ontem, a repórter Beth Luchesi mostrou ao vivo, nos jornais da Globo, como um córrego aumenta de volume, muda seu curso e onde era rio, fica uma faixa de lama e pedra e onde era estrada vira rio. Essa metamorfose não é um capricho da natureza. É resultado da ação humana, que se antepõe ao curso natural das águas. É preciso avaliar esses casos e criar mecanismos de gestão de fluxos, em situações em que o volume e a velocidade das águas aumentam.

A avaliação dos fluxos hidrológicos naturais e suas alterações pela intervenção humana deveria servir de base para que se formulasse um novo padrão de ocupação e postura urbanas. Em muitas situações, é preciso reordenar a ocupação para que ela respeite mais os fluxos naturais. Esse novo padrão deveria ser implementado sem exceções e sem demoras.

Isso vale para todas as cidades que enfrentam esses problemas. No mundo todo está se fazendo isso. Já se sabe que esses fenômenos estão ficando mais frequentes e mais intenso e vai piorar.

É pedir demais aos governos federal, estadual e municipal que ajam com racionalidade técnica, que implementem consistentemente políticas públicas, que haja continuidade na ação pública? Que sejam responsáveis em relação aos compromissos assumidos com a população? Que criem um sistema de governança que considere o risco dos eventos naturais, a experiência traumática com tragédias passadas? Que aprendam com os erros seus e dos outros e que sejam fiéis aos compromissos que assumem publicamente?

*Publicado originalmente no Blog Ecopolítica, no dia 13 de Janeiro. Para conhecer acesse http://www.ecopolitica.com.br/

 

Fonte: www.envolverde.com.br

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