Cadáver Insepulto

Alfredo J. Gonçalves , CS*

Formas de violência inéditas e imprevistas, pela sua ousadia e criatividade, se multiplicam pelos grandes centros urbanos. Nas últimas semanas, a metrópole do Rio de Janeiro tem sido o cenário principal de inúmeros atos violentos, numa sequência e criatividades sem precedentes. Mas, em maior ou menor grau, eles se estendem igualmente a outras capitais e até às cidades médias e pequenas. Lamentável que, em se tratando do Rio de Janeiro, algumas autoridades e não poucos analistas preocupam-se em primeiro lugar com o risco ao turismo e com as implicações para a realização da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016). Felizmente, para outros, o que está em primeiro lugar é a normalidade da vida e trabalho da população que habita as favelas e periferias da "cidade maravilhosa".

De um ponto de vista mais abrangente, a violência urbana ganha proporções inusitadas e assustadoras. A guerra entre as forças de segurança, a polícia civil ou militar e o exército, por um lado, e os comandos do narcotráfico e do crime organizado, por outro, continua semeando cadáveres pelo asfalto e pela calçada. As vítimas fatais se constituem, em geral, de jovens ceifados antes dos 25 anos, soldados no cumprimento de seu dever e civis atingidos na trajetória cotidiana. Isso sem falar do pânico da população, que se agrava com os carros incendiados, com os arrastões, com os tiroteios cruzados e com as balas perdidas...

Também é alarmante o crescimento e fortalecimento de grupos nazistas ou neonazistas, extremamente radicais e hermeticamente cerrados, os quais, na calada da noite ou à luz do dia, seguem exibindo cenas de homo e xenofobia, de preconceito e discriminação, de racismo e intolerância. Trata-se, aliás, de um fenômeno que tem históricas raízes na Europa e Estados Unidos, mas atualmente com grande repercussão nos países periféricos, entre eles o Brasil. No alvo desses grupos, quase sempre formados por jovens e adolescentes de classe média, estão os negros, as mulheres prostituídas, os moradores de rua, os estrangeiros, os nordestinos, os homossexuais...

Mas há, ainda, o massacre nem sempre divulgado das pessoas que moram e trabalham na rua. A capital de Maceió, Alagoas, recentemente foi palco trágico de dezenas de assassinatos, mas essa barbárie contra os mais indefesos entre os pobres se repete em outras localidades. A agressividade selvagem e gratuita se revela um vírus contagioso, que parece não conhecer fronteiras nem limites. Os habitantes de Brasília e São Paulo, por exemplo, assistiram pasmados aos ataques brutais a indígenas, empregadas domésticas, menores...

E se ampliarmos o leque da violência, tropeçamos diariamente com sequestros, estupros e pedofilia, crimes passionais, latrocínios, morte no trânsito, vítimas da droga e do álcool, conflitos intrafamiliares. Estes últimos, em geral, são protegidos pela "privacidade do lar", silenciosos e silenciados, pois, como diz o ditado, "em briga de marido e mulher não se põe a colher". Com isso, as vítimas costumam ser justamente as pessoas mais próximas e amadas, tais como namoradas e esposas, pais e filhos, crianças inocentes...

A contradição se torna cada vez mais estridente. Por uma parte, cresce de forma exagerada e ostensiva a exuberância e o prazer da vida. O culto ao corpo, com a proliferação das academias, acompanha o culto às celebridades. A tirania da beleza e da juventude sacrifica a saúde, levando ao limite da anorexia e do uso de cosméticos. Termos como hedonismo, voyeurismo, individualismo e subjetivismo florescem abundantemente no vocabulário analítico e jornalístico. Por outra parte, a vida se banaliza, disputando com a morte cada notícia dos telejornais ou cada página de revistas e periódicos. Mata-se por tudo e por nada: a vida vale tanto quanto um par de tênis, um relógio, um celular, alguns trocados. Ao que tudo indica o gosto pela vida e a morte violenta nunca estiveram tão entrelaçados. Sede de viver e sede de sangue parecem se justapor, se sobrepor ou se mesclar. Como já apontou Freud em seus vários escritos, o amor e o ódio são irmãos gêmeos: convivem lado a lado a pulsão de vida e a pulsão de morte, Eros e Tanatos.

O mais grave é que esses cadáveres espalhados pelas ruas ou as pessoas mutiladas pelos mais covardes ataques não passam da ponta de um grande iceberg. Representam a parte visível de um enorme cadáver que, há séculos, permanece invisível e insepulto na história do país, apodrecendo no túnel do tempo e gerando cadáveres sem fim. Os atos violentos constituem a expressão de uma violência oculta e legalizada, a qual, diga-se de passagem, se legitima com atitudes genuinamente pacíficas, perpetradas em ricos escritórios ou nas sessões do Congresso Nacional, por personagens de bem - e de bens. Um país tão rico e ao mesmo tempo tão pobre, "terra de contrastes", na expressão de Roger Bastide, só pode engendrar rancores, vinganças e conflitos abertos. Não que as assimetrias e as desigualdades sociais ou injustiças estejam na raiz de toda violência. A mente humana é muito mais complexa do que a razão é capaz de enxergar. Mas, sem dúvida, os desequilíbrios socioeconômicos agravam as tensões e expõem os excluídos a atos de desespero.

Daí a necessidade distinguir entre ato violento e violência. Normalmente, o tema da violência vem à tona quando os pobres e marginalizados saem às ruas e causam uma série de distúrbios. Mas, enquanto a violência tem sua face pacífica, oculta na própria ordem social, econômica, política e cultural, os atos violentos podem carregar um profundo anseio de mudanças e de paz. Evidente que isso não exime de responsabilidade os chefes mais empedernidos do contrabando de drogas, armas e pessoas humanas, nem as milícias aliciadas para expurgar determinados "elementos"; tampouco exime os casos patológicos dos crimes hediondos, e menos ainda a população que procura fazer justiça com as próprias mãos.

Mas convém lembrar que muitas vezes os "atos violentos" não passam de reação a uma sociedade concentradora e excludente, do ponto de vista estrutural e histórico. Com a maior transparência do abismo que divide a maioria pobre da minoria rica, a tendência é o esgarçamento do tecido social. Laços se rompem, amizades se descartam, contratos são rasgados impunemente. Os referenciais éticos se perdem em um ambiente cada vez mais nebuloso, especialmente no mundo globalizado e urbano. É como se "as estrelas se apagassem no céu, os marcos desaparecessem da estrada e o chão se abrisse a nossos pés", diria Simone de Beauvoir.

Está em jogo o conceito de liberdade: esta não significa "fazer o que se quer", mas fazer o que constrói. Buscar novos alicerces para a prática solidária, justa, fraterna e sustentável. Liberdade e limites são duas faces da mesma moeda. Não há convivência possível sem regras estabelecidas. Tal convivência requer, por sua vez, núcleos de encontro, diálogo e intercâmbio recíproco. Requer, igualmente, abertura à pluralidade dos valores, gostos e opções. E requer, ainda, a tolerância diante do conceito de "outro", enquanto raça, sexo, religião, cultura, etc. Espaços onde as pessoas, muitas vezes órfãs, solitárias e perdidas, possam resgatar o nome e a história. Erguer a cabeça, levantar-se e caminhar com as próprias pernas.

Mas liberdade e paz só podem vingar no terreno da justiça e do respeito aos direitos humanos. Sem isso não há possibilidade de verdadeira cidadania. "O desenvolvimento é o novo nome da paz", escreveu Paulo VI, em 1967, na carta encíclica Populorum Progressio. O Papa referia-se ao "desenvolvimento integral de toda pessoa e de todas as pessoas". Não basta a panacéia do crescimento a qualquer custo. Este tem que ser acompanhado de reformas necessárias e urgentes, onde as oportunidades estejam abertas a todos e todas. Só assim poderemos sepultar o colossal cadáver da exclusão social e, com ele, evitar a proliferação precoce de outros cadáveres.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.

Fonte: www.provinciasaopaulo.com

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