Cuidar da vida: espiritualidade

Selvino Heck *

O que precisa mudar no Brasil para termos uma vida melhor? Esta pergunta foi feita pelo escritório brasileiro do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD Brasil) pela internet e em sete audiências públicas, com o objetivo de escolher o tema do próximo Relatório de Desenvolvimento Humano do Brasil, a sair no início de 2010. Participaram 500.000 brasileiros de todas as idades, faixa social, sexo e escolaridade, via internet ou nas audiências.

O resultado da pesquisa surpreendeu os pesquisadores do PNUD. A ‘receita' dos brasileiros para uma vida melhor passa por valores como respeito, responsabilidade e justiça. Também foram largamente citadas, honestidade, paz, consciência e ausência de preconceitos. O jornalista Clóvis Rossi chegou a escrever: "Para mim, o resultado é absolutamente surpreendente. Juraria que, fora um punhado de indignados, uma parcela importante, talvez majoritária, dos brasileiros tivesse incorporado exatamente o oposto, ou seja, a ausência de qualquer tipo de respeito a valores do tipo honestidade, responsabilidade e consciência" (FSP, 15.07.09).

A partir dos resultados, o PNUD organizou um Seminário em Brasília, com as seguintes questões: O que são valores? Como os valores são formados? Quais são os valores dos brasileiros? Como entender a formação histórica dos valores brasileiros? Como podemos explicar as contradições que surgem entre os valores e as atitudes das pessoas? Como os valores dos brasileiros podem ser comparados internacionalmente? Qual a relação entre valores e educação? Qual a relação entre valores e violência?

São estas as preocupações do Movimento Fé e Política que, dias 28 e 29 de novembro realiza em Ipatinga, MG, seu 7º Encontro nacional, com o tema CUIDAR DA VIDA: ESPIRITUALIDADE, ECOLOGIA E ECONOMIA (informações: www.fepolitica.org.br; www.fepoliticamg.org.br).

A crise econômica que aí está, a maior em décadas, que também é social, ambiental, de paradigmas e valores, leva ou obriga a repensar modelos de desenvolvimento, projetos de sociedade e novas bases e formas de espiritualidade. "A acumulação permanente de bens materiais não tem futuro. Se essa lógica continuar dominante, a humanidade caminha para o suicídio coletivo. (Bem-vindas as novas Idéias, Sílvio Caccia Bava, Le Monde Diplomatique Brasil, outubro/2009, p.3). Segue ele: "As múltiplas crises que atingem todo planeta desnudam um processo econômico e político perverso: a apropriação privada da riqueza social por uma minoria se acelera, concentra ainda mais poder e riqueza, é predatória com o meio ambiente e deixa as grandes maiorias longe dos benefícios do desenvolvimento. A doutrina neoliberal, que se apresentava como representação e norma da sociedade e da política, está desmoralizada. (...) Os enormes custos sociais da crise atual, pagos pelo cidadão comum, a tornaram incapaz de produzir uma identidade nacional, uma imagem unificada da sociedade e processar os conflitos de interesses por suas instituições políticas de uma maneira aceitável para todos os seus membros".

É preciso buscar novos caminhos, novos referenciais. Disse Luiz Pingueli numa reunião do Fórum de Mudanças Climáticas, com o CONSEA, ONGs e movimentos sociais, em preparação à COP-15, em Copenhage, em dezembro: "Não podemos medir a felicidade humana pelo consumo. E esta sociedade que está aí tende a ser consumista." Ou o grande historiador inglês Eric Hobsbawm, em Seminário com o título ‘O Leste: qual futuro depois do comunismo?': "O objetivo de uma economia não é o ganho, mas sim o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim, mas um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI".

Há novas perguntas e as respostas também devem ser novas. "O aspecto espiritual, o lado místico do ser humano é um importante aliado ao desenvolvimento do projeto de vida. Nosso projeto nunca terá sucesso se não colocarmos vida nele. A nossa vida. Não colhe quem não jogou primeiro o grão na terra. Assim ocorre com a nossa felicidade. Deus dá seus dons, como sementes férteis e valiosas, mas o ser humano precisa aprimorá-las, colocá-las na terra fértil e ter paciência para deixar crescer frutificar" (Antônio Mesquita Falcão, A Espiritualidade no Conflito, Adital, 17.09.09).

A busca por novos paradigmas, escreve Sílvio Caccia Bava, por novos paradigmas de produção e consumo, por um novo tipo de vida em sociedade, requer a apropriação da política pela cidadania, assim como a construção de novos espaços públicos para o debate sobre as alternativas para o desenvolvimento, debate bloqueado até agora pela visão economicista vigente, que exalta o crescimento e ignora seus efeitos na sociedade.

Sílvio relata duas proposições e iniciativas que vão em sentido contrário ao pensamento até agora hegemônico.

A primeira tem a ver com o conceito de Felicidade Interna Bruta, adotado no Butão nos anos 70, pequeno país encravado na cordilheira do Himalaia, entre a China e a Índia. Segundo os butaneses, o princípio básico para garantir a felicidade é que a economia esteja a serviço do bem-estar da população. O objetivo é construir uma sociedade solidária e colaborativa, trabalhando para assegurar os direitos humanos no sentido amplo do termo. Os quatro pilares de uma sociedade feliz envolvem economia, cultura, meio ambiente e boa governança, divididos em nove domínios: bem-estar psicológico, ecologia, saúde, educação, cultura, padrão de vida, uso do tempo, vitalidade comunitária e boa governança.

A outra, relatada por Sílvio Caccia Bava, tem a ver com o conceito de desenvolvimento e Bem Viver. Para sociedades indígenas da região andina, especialmente Bolívia, onde a idéia do Bem Viver está incorporada à nova Constituição, o desenvolvimento é um processo de mudanças qualitativas, não contam apenas os bens materiais, mas outros elementos como o conhecimento, o reconhecimento social e cultural, os códigos éticos e espirituais de conduta, a relação com a Natureza, os valores humanos, a visão de futuro, etc. Isto é Bem Viver. A economia deve pautar-se pela convivência solidária, sem miséria, sem discriminações, garantindo um mínimo de coisas necessárias para todos. Bem Viver é a afirmação de direitos e garantias sociais, econômicas e ambientais: direito à vida digna, à saúde, alimentação e nutrição, água potável, moradia, saneamento ambiental, educação, trabalho, emprego, descanso e ócio, cultura física, vestuário, seguridade social, etc..
Para isso será preciso distribuir a riqueza e a renda, recuperar o público, o universal, o gratuito, a diversidade, como elementos de uma sociedade que busca sistematicamente a liberdade, a igualdade, a equidade, a solidariedade.

Temos mais palavras e exemplos: "Eu vim para que tenham vida, e vida em abundância" (Jo 10,10). Ou a Comunidade Primitiva dos cristãos: "A Assembléia dos fiéis tinha um só coração e uma só alma. Ninguém considerava como seu o que possuía, mas tudo era comum. Não havia entre eles nenhum necessitado, porque todos os que tinham campos ou casas os vendiam e entregavam o dinheiro aos apóstolos, os quais repartiam a cada um segundo suas necessidades" (Atos 4, 32).

O Encontro de Ipatinga propõe-se a contribuir "na necessidade que os cristãos têm, cada vez mais, de descobrirem eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de acordo com a forma de vida abraçada por cada uma, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro, ou simplesmente se omitindo. Deus quer que eu me envolva com ele, sem, no entanto, fechar os olhos à injustiça que sofre o irmão, o vizinho, o companheiro de caminhada" (Antônio Mesquita Galvão).

O mundo e humanidade precisam de uma nova espiritualidade, para cuidar da vida, e que esteja perfeitamente integrada e sintonizada com a economia e a ecologia. Todos à Ipatinga.

* Assessor Especial do Presidente da República do Brasil. Da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política

 

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