A Igreja em busca de um caminho (2)

Carlos C. Santos *

O OLHAR DO TEÓLOGO

Dando continuidade ao projeto "A Igreja em busca de um caminho", (ver entrevista com Dom José Eugênio Corrêa) somos agraciados, desta vez, com o olhar do Teólogo, Pe. João Batista Libânio, que joga novas luzes sobre a atual conjuntura sócio-eclesial. Uma palavra especial de reconhecimento e gratidão ao Pe. Libânio que, mesmo sobrecarregado pelos muitos quefazeres que sua assessoria teológica implica, soube dedicar generosamente parte do seu precioso tempo, e oferecer sua indispensável contribuição a esta Causa que não é nossa, mas do próprio Jesus e do Evangelho, inculturados no tempo que nos toca viver.

Carlos: Pe. Libânio, o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) foi o principal dinamizador da renovação da Igreja. Que mudanças o senhor apontaria como as mais importantes definidas pelo Vaticano II e que, de fato, provocaram o aggiornamento sonhado pelo Papa João XXIII?

Pe. Libânio: O primado absoluto da Palavra de Deus renovou a posição do católico em face da Escritura. Daí surgiram círculos bíblicos, leitura orante e militante da Escritura com a ajuda de uma metodologia latinoamericana desenvolvida especialmente pelo Frei Mesters e divulgada pelo CEBI, aprimoramento das homilias, maior interesse pelo estudo da Bíblia com cursos bíblicos, referência à Palavra de Deus na tomada de decisões por parte de cristãos.

O Concílio representou verdadeira revolução eclesiológica, ao conceber a Igreja como Povo de Deus, ao acentuar-lhe a base laical no sentido etimológico - laical vem de laós = povo -. Todos nos constituímos antes de tudo povo de Deus pelo batismo e a hierarquia existe para servir ao povo e não vice-versa. Daí se seguiu a importância da opção de Santo Domingo do protagonismo do leigo. Valorizaram-se também os sacramentos fundamentais da Igreja - sacramentos de iniciação (batismo e crisma) e eucaristia.

Em relação às Igrejas ortodoxas e protestantes, o Concílio reafirmou a vontade do diálogo ecumênico da Igreja católica com as igrejas evangélicas e do diálogo inter-religioso nos diferentes níveis da vida, das obras, dos intercâmbios teológicos e das experiências religiosas. A liberdade religiosa significou momento importante do salto teológico da Igreja católica. Se recordamos as posições intransigentes da era dos Pios, compreendemos o avanço que a liberdade religiosa trouxe para iluminar a relação não só com as outras religiões, mas também com os ateus.

A Igreja renunciou a sua condição de ghetto para abrir-se para o mundo moderno. Trava com ele verdadeiro diálogo por meio da Constituição pastoral Gaudium et spes. Ela se reconhece na posição humilde de sinal e sacramento da realidade maior do Reino de Deus em espírito de serviço.

Ultrapassa visão excessivamente jurídica de sociedade perfeita para entender-se como mistério em relação com o mistério maior da Trindade.

As igrejas particulares receberam relevo na perspectiva da colegialidade episcopal, superando o centralismo romano. No meu livro Concílio Vaticano II (São Paulo, Loyola, 2005) desenvolvo esses aspectos amplamente.

Carlos: O Concílio tem sido alvo, ao longo da história, de diversas interpretações. Há quem diga que foi precipitado; há quem defenda que foi profético e já estava na hora de mudar; há quem denuncie que muitos de seus documentos foram engavetados; há quem reivindique um novo Concílio; e, também há quem sequer conhece os documentos conciliares. E o senhor, o que diz?

Pe. Libânio: Sem dúvida, o Concílio avultou tanto pelos quatro anos de gestação quanto pela audácia de vários de seus documentos. A transformação da Igreja começou a acontecer já durante o Concílio à medida que os debates avançavam e lançavam no grande público problemas internos da Igreja. Terminado o Concílio, a avalanche renovadora atinge os diversos campos eclesiásticos. Nada conseguiu escapar de sua fúria inicial. Os conservadores, tomados de surpresa, emudeceram. As reações opostas às inovações conciliares não gozavam de credibilidade.

Passados poucos anos, as forças tradicionais agruparam-se e inicia-se duplo movimento. Num primeiro, tentam frear o avanço renovador. Depois com o apoio de hierarquias maiores, invertem o processo na direção da recuperação de posições anteriores ao Concílio. Mgr. Lefebvre capitaneou esse grupo até a ruptura cismática. E nos dias atuais, os quatro bispos ordenados por Mons. Lefebvre em 1988, remanescentes radicais do cisma, tiveram sua excomunhão levantada pelo Decreto da Congregação dos Bispos.

Outro ponto polêmico de retrocesso se relaciona à posição de Paulo VI. Ele não aceitara que a missa dita de São Pio V, como se celebrava em Ecône - seminário lefebvriano-, se tornasse o símbolo da condenação do Concílio. "Ora, jamais aceitaremos, em nenhuma circunstância, que se condene o Concílio por meio de um símbolo", acrescentou Paulo VI segundo o testemunho de Jean Guitton. Na versão do missal de 1962, Bento XVI a liberou. Os dois gestos somados, embora na intenção de Bento XVI signifiquem respeito a tradições antigas e acolhimento misericordioso, têm soado como retrocesso a posições pré-conciliares.

Hoje estamos aí. Muitos pontos do Concílio Vaticano II pertencem à vida comum da Igreja, como já recebidos. A primazia da Palavra de Deus com tudo o que isso significa de valorização da Escritura, a renovação litúrgica, o espírito de liberdade religiosa, certa abertura ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, capacidade de dialogar com o mundo moderno. No entanto, nesses mesmos pontos há sintomas adversativos. Na linguagem da música: andante ma no troppo. Caminha-se para frente, mas não demasiado. E esse "demasiado" está a restringir-se de modo que apontam reais sinais de retrocesso. Contudo, o Concílio permanece, em seu texto e sua hermenêutica mais comum, incômodo acicate para avançar.

Carlos: Em 1968 o episcopado latino-americano celebrou a Conferência de Medellín (Colômbia), interpretada como a "recepção criativa" do Vaticano II para o nosso Continente. Aí a Igreja toma consciência de sua "latinoamericanidade" ou assume seu rosto latino-americano. Daí surgem, entre outras, a opção pelos pobres, pelas comunidades cristãs de base, sistematizadas, depois, pela teologia da libertação. Qual a importância dessas opções para um continente, como o nosso, majoritariamente pobre e oprimido?

Pe. Libânio: Importância decisiva. Uma Assembléia, como a de Medellín, não inflluencia tanto pelo teor dos textos e discursos, mas pelo imaginário simbólico que criou. A pregação, as práticas eclesiais, a teologia, a liturgia, as opções concretas da hierarquia e de grupos de Igreja surgidas no embalo de Medellín forjaram um horizonte de compreensão e um imaginário simbólico.

A opção pelos pobres na perspectiva da libertação encarnou de maneira expressiva esse conjunto. E isso se chamou Medellín. Então toda vez que nos referimos a Medellín, afloram dois termos centrais: pobres e libertação. E tal evocação serviu para legitimar, animar, incentivar inúmeras reflexões e práticas pastorais que configuraram o aspecto original e novo da Igreja na América Latina. Não significou a totalidade da Igreja, mas o que mais chamava a atenção em relação à visão doutrinal e às práticas anteriores. Daí a sua importância como força propulsora da renovação da Igreja latinoamericana na perspectiva da libertação dos pobres e de tudo que daí fluía quase espontaneamente.

Carlos: As CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), originadas em Medellín, já foram definidas como o "novo/velho jeito de toda a Igreja ser". Mas também já houve quem as entendesse como "um dos jeitos" de ser Igreja (em relação com muitos outros). Na visão do senhor as CEBs são "um jeito" de ser Igreja ou "o jeito" de ser Igreja?

Pe. Libânio: As duas leituras refletem aspectos corretos. As CEBs anunciam pela leitura orante e militante da Escritura, pelo tipo de relação interna, pelo compromisso social, pela participação de todos, pelo repensamento do exercício do ministério ordenado, pela organização em rede e por outros aspectos novo modo de ser Igreja correspondente ao mundo que nos espera. Por outro lado, as transformações não acontecem de um dia para o outro. A Igreja, especialmente em tempos de pluralismo, convive com expressões eclesiais diferentes, umas arcaicas, outras modernas, outras antecipando o futuro. Nesse sentido, as CEBs representam um dos jeitos de ser Igreja. Carregam mais esperança que guardam tradições, apontam para a maneira bem jesuana de viver em comunhão com os pobres, despertam ânimo nas pessoas cansadas com a frieza das instituições canônicas que ainda pesam em muitos lugares.

Carlos: Em recente publicação[1] que é homenagem póstuma ao Cardeal Dom Aloísio Lorscheider, ele diz: "A Igreja necessita das comunidades eclesiais de base no mundo de hoje, sobretudo no mundo dos empobrecidos, dos marginalizados, dos esquecidos. A Igreja é e deve ser essencialmente comunidade de fé e de luta, construindo laços fraternos de verdade, não apenas agregar multidões e entretê-las. Todos os movimentos católicos e todas as pastorais devem ter as CEBs como modelo, como forma de ser Igreja". O senhor acredita que as CEBs, ainda que sem a visibilidade do passado e atualizadas para o contexto do nosso tempo, podem conservar a mesma força de atuação e transformação da sociedade e da Igreja?

Pe. Libânio: As CEBs nos inícios se visibilizavam muito pela originalidade, novidade, vigor profético, especialmente nos tempos de repressão. Aos poucos, muitos elementos de sua estrutura se difundiram e penetraram as outras estruturas da Igreja. A visibilidade do sal diminuiu, mas a água eclesial ficou salgada. Aí está o mais importante. O espírito de participação do leigo, a concepção do ministro ordenado de maneira participada, colegiada, não simplesmente com os colegas mas com as lideranças leigas. Vemos em muitos lugares tais traços se implantarem.

Carlos: Quem lança um olhar crítico sobre a realidade percebe claramente que cresceu, nos últimos anos, um movimento, em alguns casos até doentio, de resistência ao Concílio e às Conferências, sobretudo, de Medellín e Puebla (México, 1979). Este movimento tem expressões como o triunfalismo, o autoritarismo, o carreirismo, o culto à personalidade etc. A que o senhor atribui estes fenômenos que destoam tanto do Evangelho quanto dos ensinamentos conciliares?

Pe. Libânio: A terceira lei de Newton reza que toda ação corresponde a uma reação igual e contrária. Analogamente vale dos corpos sociais. A ação do Concílio e de Medellín está a provocar reações, como já mencionei acima. O modo de manifestarem-se tais oposições varia grandemente. Aludi aos dois fatos dos freios de instituições eclesiásticas e do movimento lefebvriano. Há também um clima leve e festivo que propicia certo tipo de carismatismo alienante. Mesmo que não haja intencionalidade de opor-se à libertação, terminam tais tendências distraindo as mentes do compromisso social e fechando-as em si mesmas. Acrescente-se a abundante literatura de autoajuda que prende o indivíduo ainda mais a si. Cresce o culto pela exterioridade, pela beleza do corpo, pela elegância de grifes no vestir, pela exibição midiática. A opção de Medellín insistia na simplicidade, na proximidade com o mundo dos pobres, com o despojamento de si, com o trabalho de formiguinha no silêncio do cotidiano. Tendências diferentes que se chocam na perspectiva geral e que geram conflitos concretos.

Carlos: A partir deste movimento de restauração ou de "volta à grande disciplina", como o senhor o denominou, começam a ser relembrados pastores que andavam no meio do Povo, comungando de sua vida e de sua luta como Dom Hélder Câmara, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno, e tantos outros que compuseram a "geração de Medellín". O que caracterizou propriamente, para o senhor, o ministério desses irmãos bispos?

Pe. Libânio: Diria que tudo nasceu na famosa catacumba de Roma. Oscar Beozzo refere-se ao Pacto das Catacumbas ou "O Pacto da Igreja pobre e servidora", firmado por uns 500 bispos do grupo Igreja dos Pobres. Os compromissos assumidos conjuntamente iam na linha de uma vida de pobreza, simplicidade respeito à habitação, vestuário, alimentação e meios de locomoção. Entre eles estavam D.Hélder e vários bispos brasileiros. Desse grupo irradiou-se para a Igreja do Continente esse espírito de singeleza e proximidade com os pobres. Na mudez de seus exemplos, eles questionavam o luxo, a pompa eclesiástica, o autoritarismo hierárquico, as riquezas e posses das dioceses. Vários deles distribuíram terras a camponeses pobres, ofereceram-lhes assistência técnica, jurídica e social.

Muitos desses bispos se foram para a casa do Pai. Outros, que lá não estiveram, mas viveram esse espírito até extremos heróicos como D. Luciano Mendes de Almeida não estão entre nós. Com certa ironia, digo que a CNBB celeste junto com o Papa S. Pedro maravilha-nos pelas figuras dos primos Lorscheid(t)er, D. Luciano, D. Fragoso, D. Luiz e outros muitos.

Esses exemplos continuam a fermentar a Igreja. Os santos existem tanto para interceder por nós, quanto para acicatar-nos pelos exemplos. E eles estão aí para ambos. Ficou deles o testemunho de entrega generosa ao serviço dos irmãos, especialmente dos mais pobres, desassistidos, ao lado de teor de vida simples, próxima, fraterna. Exprimiam o seguimento de Jesus de maneira direta e imediata.

Carlos: Diálogos noturnos em Jerusalém é o novo livro do Cardeal Martini[2] que está fazendo grande sucesso dentro e fora dos meios eclesiásticos. Aí ele defende algumas das teses importantes do Vaticano II: o rejuvenescimento da Igreja; sua abertura ao mundo e capacidade de dialogar com o diferente; sua solicitude pela juventude, a partir de suas experiências e de seus valores; enfim, sua parceria com a humanidade toda, na luta contra o mal para defender a vida. O senhor está convencido de que este é mesmo o caminho para que a Igreja volte a reatar com a humanidade, tornando-se parceira e samaritana (cf. Lc 10,30-37)?

Pe. Libânio: Sim. A entrevista enfocou, pela sua natureza, de modo especial a relação com a juventude. E as inferências do Card. Martini dessa relação revelam-se extremamente pertinentes.

Aludiu também a outros problemas importantes como o ministério ordenado vem sendo vivido e instituído na Igreja católica, a questão dos homossexuais, a problemática da família.

Embora não esteja ausente, o paladar latinoamericano saboreia mais o tempero do pobres. Na perspectiva destes, as mudanças da e na Igreja vão na direção do que vimos na pergunta anterior. Dói-nos ainda ver a pompa rica e suntuosa da visibilidade da Igreja católica. Não se pode ignorar o peso da história e da cultura que subjazem a todo esse aparato palaciano. No entanto, não deixa de ser chocante se olhamos para o Mestre Jesus e seu primeiro Papa Pedro. A maravilhosa vida de Jesus de J. A. Pagola, escritos de Crossan e outros nos têm resgatado muito da vida histórica do homem Jesus. Impressiona a opção radical de ter abandonado sua casa e ter assumido com os pobres a vida de andarilho. Uma Igreja que se espelhasse nele teria muito que se transformar na sua visibilidade desde uma atitude de extrema misericórdia até a heróica proximidade com o mundo dos pobres. Tudo na cultura atual batalha contra tal direção. Ficam-nos alguns testemunhos maravilhosos, como os de D. Luciano e do bispo emérito D. Pedro Casaldáliga, para citar dois nomes. Há sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos cristãos que vivem essa extrema simplicidade e pobreza, acordando-nos para o Jesus histórico.

Carlos: Este ano estamos celebrando o centenário do nascimento de Dom Hélder Câmara. Nosso saudoso e inesquecível Dom Hélder profetizou: "Temos de entrar no terceiro milênio sentados a mesa, comendo, saudáveis, fraternos, abrigados do frio, da chuva e do vento". A Igreja, em muitos de seus documentos, é portadora desta boa nova para os pobres e excluídos, vítimas hoje da "ditadura do mercado". Mas quando chega a hora de praticar, cai naquele velho engodo que separa fé e vida, celebração e ação, compromisso cristão e luta pela justiça. Como transformar a palavra em ação libertadora, para que a Igreja volte a ser, a casa de todos, que abriga e acolhe a todos? O senhor teria alguma mensagem sobre a pessoa e a obra de Dom Hélder?

Pe. Libânio: A mensagem de D. Hélder consistiu precisamente na realização concreta desse sonho, já a antecipar o nosso século. O monge Marcelo Barros contou que certa vez assessorava D. Hélder na redação de um texto naquele cantinho onde morava. Em curtos intervalos, uma batida à porta os interrompia. D. Hélder se levantava e ia atender algum pobre pedinte. Algo incomodado, o monge Marcelo perguntou a D. Hélder se ele não tinha pensado em alguém para cuidar da porta. - "Sim. Até que pensei. Mas temo não receber o Senhor na pessoa do pobre que vem à minha casa".

É isso. Acolhida, cuidado, misericórdia, presença atenta às pessoas nas mais diversas situações parecem ser o anúncio original e novo - que coragem chamar de novo algo presente há milhares de anos no Cristianismo! - da Igreja numa cultura individualista, hedonista, consumista e materialista. Nada tão tocante como essa atitude jesuana nos dias de hoje. Vivemos de medo dos estranhos. Pode ser um assaltante, um meliante, uma ameaça. E então como viver essa abertura ao estranho sem riscos enormes? Os santos não temem. O pior para eles se faz dom: a morte.

Carlos: Dom Clemente Isnard, Bispo Emérito de Nova Friburgo, RJ, em opúsculo intitulado Reflexões de um Bispo sobre as instituições eclesiásticas atuais,[3] levanta algumas quaestiones disputatae que foram ventiladas pelo Concílio, mas permanecem pendentes. Entre elas estão: a participação do Povo de Deus nas nomeações episcopais, a desburocratização da cúria romana e nunciatura, o celibato obrigatório, a ordenação de mulheres etc. O senhor considera que um debate amplo sobre essas questões, com eventuais encaminhamentos em perspectiva evangélica e pastoral, poderia contribuir para dar maior qualidade à missão no Brasil e na América Latina? Jesus, os apóstolos e o Espírito e, mais tarde, os apóstolos e as comunidades, guiadas pelo Espírito de Jesus, decidiam criativamente diante de cada novo desafio que aparecia (cf. At 6), de tal modo que podiam dizer: "decidimos, o Espírito Santo e nós" (At 15,28). O senhor acredita que a Igreja, inspirada no modelo dos Atos dos Apóstolos poderá um dia realizar o que propõe Dom Clemente? Como?

Pe. Libânio: Sendo sincero, não julgo tais questões relevantes. Caminhamos para um mundo em que as exterioridades, cada vez mais valorizadas pela mídia e pela cultura fútil, perderão força evangélica. A Igreja terá ou não presença na sociedade em virtude de sua prática de misericórdia, de cuidado com as pessoas, de proximidade com os pobres e não pelas estruturas pesadas nem pela pompa ministerial, nem pelos palácios, nem pelas políticas. E nessa presença a mulher como o homem, o ministro ordenado como o leigo serão presenças de Cristo pelo testemunho de vida, pela transparência de existência, pela bondade e cuidado com as pessoas. Claro, seria lindo que a mulher além dessa presença maravilhosa, que já tem, pudesse dispensar o extremo do carinho de Deus pela via sacramental. Retomando idéia cara a L. Boff, existem os sacramentos da vida e nesses a mulher se faz imbatível.

Santo Inácio de Loiola imagina o discurso do caudilho de todos os inimigos, Satanás, apontando a ordem da perversão: cobiça das riquezas, honra vã do mundo e soberba. E Jesus, por sua vez, na sua alocução indica o caminho oposto da suma pobreza, do desejo dos opróbrios e menosprezos para terminar na humildade. Essa antítese, superada a imagística tradicional da linguagem inaciana, continua válida para a Igreja e cada um de nós. Pelo caminho da pobreza, de estar ao lado dos que sofrem os desprezos da sociedade capitalista e em espírito de simplicidade humilde testemunharemos o Reino de Deus e não pelo contrário da riqueza, vaidade e arrogância prepotente.

Carlos: O Evangelho, no seu conjunto, estabelece o princípio misericórdia e Jesus é a revelação mais plena do rosto amoroso e misericordioso do Pai. A partir desta fundamentação evangélica, o senhor acha justificável a reinserção de divorciados ou casais que vivem uma segunda união na Igreja e, por conseguinte, nos sacramentos?

Pe. Libânio: A lei na frieza universal não contempla os casos particulares, deixados ao cuidado pastoral. Movem-na considerações externas, jurídicas e o temor de abusos. A pastoral concreta herdou de Jesus o espírito da misericórdia, do perdão, da acolhida, da abertura para belezas espirituais que se escondem por detrás de visibilidades não canônicas. E, pelo contrário, sob a capa da retidão jurídica escondem-se espíritos farisaicos, segundo a crítica forte do Novo Testamento. Ao considerar casais que não seguem, por razões as mais diversas, a regularidade canônica da atual legislação eclesiástica, tenho encontrado pessoas de profunda vida espiritual e mística. Como dizer-lhes que não podem aproximar-se do sacramento do amor, já que o vivem em grau autêntico e sincero? O risco de escandalizar fariseus, que se vergavam sob o peso da lei, não atemorizou o Jesus histórico de tomar posições à margem dos costumes e leis judaicas: não purificar-se, falar com mulher em público, deixar-se banhar de lágrimas e beijos por uma prostituta, acolher leprosos até tocá-los, curar em dia de sábado, expulsar os trocadores do Templo, etc. Por cima de toda lei eclesiástica, estão o evangelho e a prática de Jesus. Última norma de nosso agir, sobre a qual nenhum poder terrestre prevalece.

Carlos: Questão não menos pertinente que teólogos renomados e até o Papa João Paulo II levantou (cf. Ut Unum Sint, 88-96) é a da necessidade de uma revisão corajosa do ministério de Pedro. O argumento fundamental é que o modo do Bispo de Roma exercer o ministério da unidade não pode nem deve ser impedimento para o diálogo ecumênico, "macroecumênico" e inter-religioso. O senhor acha possível encontrar uma forma de exercício do ministério petrino que, sem renunciar ao que é característico de sua missão, se abra a uma situação nova (cf. Ut Unum Sint, nº 95)?

Pe. Libânio: O núcleo fundamental do ministério petrino, na linguagem de Santo Inácio de Antioquia, consiste em "presidir na caridade". Fica entregue à Igreja enquanto povo de Deus interpretar que coisa significa presidir na caridade. Por formação jesuítica e mineira, desconfio dos extremos. Quando a caridade se prende dentro de rígida legislação, morre. Quando ela não consegue nenhuma mediação concreta para realizar-se, evapora-se. O jogo dialético consiste em descobrir em cada momento da história que mediações da caridade convêm ao ministério petrino. Cristalizá-lo em formas rígidas o transforma em fonte de morte e não de vida. Talvez tenha sido esse o sofrimento de João Paulo II, vendo que seu ministério não gerava a vida ecumênica e sim sua morte.

Hans Küng e outros teólogos têm procurado oferecer contribuições para evangelizar o ministério petrino no sentido etimológico, isto é, de torná-lo verdadeira instância que anuncie a boa nova de Jesus. Onde há morte, vingança, orgulho, prepotência, exclusão, inimizade, discórdias, contendas, invejas, intrigas, recordando a S. Paulo, estamos diante de "obras da carne". E, por sua vez, os frutos do Espírito se chamam "amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, lealdade, mansidão e domínio próprio" (Gl 5, 22). Que olhemos para o ministério petrino com o olhar paulino e nos perguntemos: como ajudá-lo a viver os frutos do Espírito e afastar-se das obras da carne? O bispo jesuíta americano, emérito, J. R. Quinn aceitou o desafio de João Paulo II de oferecer-lhe sugestões para a reforma do ministério petrino (Reforma do papado : indispensável para a unidade cristã. Aparecida: Santuário, 2002). Mas o eco perdeu-se rápido no cemitério dos sons.

Carlos: Outra questão que não foi resolvida é a dos padres casados. O mesmo DA chega a propor uma relação amistosa sem, contudo, solucionar o problema (cf. nº 200). Levando em consideração a extensão do Continente, os apelos da missão e o anseio das comunidades por partir e repartir o Pão da Palavra e da Eucaristia, estes irmãos presbíteros não poderiam e deveriam ser reintegrados ao ministério?

Pe. Libânio: Todo acento sobre o ministério ordenado constitui-se espada de dois gumes. De um lado, ampliá-lo com a presença de padres casados, tanto pela reinserção dos atuais padres casados, seja pela ordenação de homens casados, significa reconhecimento da importância de tal ministério para a vida da Igreja. Sua carência se faz dramática em muitas regiões de nosso Continente em que comunidades, sem culpa, se privam da eucaristia. De outro lado, essa solução pode fechar a reflexão para alternativas de maior radicalidade. Deixemos de lado a ordenação da mulher, que atualmente pela força da Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis do Papa João Paulo II está unicamente reservada ao varão. Questão atualmente fechada. A formação para o clero segue ritual acadêmico. Faz-se pensável outro caminho que incluiria outro tipo de padre. A proposta de Paulo VI de instituição de novos ministérios na Igreja foi assumida ainda timidamente. Há espaço para avançar muito. Nem falta a possibilidade, teologicamente aberta, de a celebração eucarística ser presidida por alguém delegado pela comunidade celebrante ad casum. L. Boff levantou tal questão há várias décadas e permanece sem estudos aprofundados. E grande parte da administração paroquial poderia ser assumida por leigos enquanto os ministros ordenados dedicariam tempo e energia ao específico de seu ministério.

Carlos: Como palavra final, que mensagem o senhor deixaria para o povo brasileiro e latino-americano?

Pe. Libânio: Muita pretensão deixar uma mensagem tão ampla. Admiro o processo histórico. Quando se faz noite sobre a sociedade, a cultura e a Igreja, ao aguçar o olhar, vislumbramos riscos luminosos. Ou como diz o poeta francês Peguy: "não há noite tão longa que não termine na aurora". As noites caem sobre nós. A aurora nos espera. As noites nos fazem sofrer, a aurora nos refresca. As noites pesam, a aurora alivia. As noites tiram-nos o ânimo, a aurora alenta-nos. Nessa aurora, esperamos. Diferentemente da aurora dos astros, na aurora da história nos cabe semear momentos de luz. Que cada leitor se pergunte: que gota de luz lançarei sobre o atual momento?

* Carlos C. Santos é presbítero da arquidiocese de Juiz de Fora e assessor das CEBs.

Notas:
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[1] O GRUPO. Mantenham as lâmpadas acesas. Revisitando o caminho, recriando a caminhada. Fortaleza: Edições UFC, 2008. O livro pode ser encomendado por telefone: (85) 4009-7485 ou e-mail: editora@ufc.br.
[2] São Paulo: Paulus, 2008.
[3] São Paulo: Editora Olho d'Água, 2008.

Fonte: http://www.carlosonline.net

 

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