Evangelização: Comunidade missionária para a humanidade

Dom Erwin Krautler *

Palestra de Dom Erwin Kräutler, proferida durante o 3º Congresso Missionário Americano (CAM 3 - COMLA 8), realizado nos dias 12 a 17 de agosto, em Quito, Equador (1).

A humanidade pergunta a nós, comunidade missionária, que "recebeu a missão de anunciar o Reino de Cristo e de Deus" (LG 6): "O que significa o anúncio deste Reino para os grandes problemas que ameaçam a humanidade? Qual é a contribuição (relevância) da comunidade missionária para a solução desses problemas? E nós, comunidade missionária, nos perguntamos: "Quais são esses problemas e qual é a solução que podemos oferecer ao mundo, à humanidade e, sobretudo aos pobres? Esses problemas têm solução? O quê significa "levar o anúncio da pessoa de Jesus, de Seu Evangelho, como luz de Deus e paradigma de humanidade (...) por meio das ações salvíficas da Igreja", como o "Instrumento de Trabalho" (IdT 18) desse Congresso afirma? Como transformar a nossa proposta numa linguagem secular, para que o século XXI a entenda como sua, mordente, enraizada em seus contextos e, ao mesmo tempo, aberta ao transcendente, de onde "manifestou-se a bondade de nosso Salvador e Seus amor aos homens" (Ti 3,4; DdT 19)?

De uma maneira semelhante perguntou, no fim do segundo século, um pagão ilustre, conhecido com o nome de Diogneto, à comunidade cristã: Quem é esse Deus e qual é a sua Boa Nova em que os cristãos depositam a sua confiança? Qual é a proposta de vocês cristãos, discípulos-missionários, para um mundo que não tem mais muitas propostas que valem para todos? Qual é seu projeto? Qual é o seu segredo? E o autor desconhecido dessa Carta catequética a Diogneto responde: Os cristãos não habitam cidades à parte, não empregam idioma diverso dos outros (...). Moram na própria pátria, mas como peregrinos. Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha. (...) Os cristãos residem no mundo, mas não são do mundo. (...) São eles que seguram o cosmos (A Carta a Diogneto, n. 1-7).

O quê significa "segurar o cosmos?" Certamente significa "zelar" pela vida no mundo, "carregar" todos aqueles, cuja vida está ameaçada, nas costas, "lutar" pela justiça da ressurreição e "confiar" naquele Deus que se encarnou nesse mundo para que tenha "vida em abundância" (Jo 10,10).

O tema, que me foi confiado, é o da missão universal da Igreja. Quando hoje na Igreja falamos de "missão", distinguimos - em vista dos destinatários e dos agentes - sete ou oito dimensões diferentes. Missão pode significar "testemunho no mundo", "pastoral missionária", "nova evangelização", "reevangelização", "ecumenismo", "diálogo inter-religioso", "missão ad gentes", "missão inter gentes" e "missão além-fronteiras". Todas estas atividades missionárias, no seu conjunto, configuram "a missão da Igreja no mundo". São pedrinhas que constituem o mosaico da missão universal da Igreja. "A comunidade missionária para a humanidade", a "missão ad humanitatem", é dirigida a todos os credos, inclusive ao próprio, porque "a Evangelização dirige-se também à própria Igreja", segundo o "Instrumento de Trabalho" (n. 20). Nossa missão se dirige a todas as culturas, nações, classes sociais e faixas etárias.

Poderíamos perguntar: Esse tema não é amplo demais? Essa amplitude não nos faz esquecer os nossos problemas específicos? Onde fica a nossa identidade católica, onde a opção pelos pobres, a defesa dos povos indígenas, onde a Igreja local com suas Comunidades Eclesiais de Base, onde os ministérios, os leigos e o diálogo ecumênico e inter-religioso? Certamente todas essas partes e seus eixos transversais (cf. IdT 1 e 13) serão trabalhados nos grupos e em outras exposições desse congresso.

Neste momento, porém, me parece devo mostrar que os quebra-cabeças eclesiais têm sua relevância, ou como o Papa disse em sua Encíclica "Sobre a esperança cristã" (Spe salvi), sua "mais-valia do céu" (SpS 35), para toda a humanidade. Essa "mais-valia" envolve a graça de Deus, como dom, e a ação nossa como dever e resposta. As "Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil", de 2008, advertem, que a sensibilidade do discípulo missionário para as questões específicas da realidade particular das nossas Igrejas "não o exime de voltar sua atenção para as grandes questões que dizem respeito a toda humanidade. Num mundo globalizado, em que as ações e suas conseqüências ultrapassem fronteiras, é impossível fechar os olhos para aspectos que atingem (...) em especial os marcados pela pobreza, pela exclusão, pela violência e pela perseguição (DGAE 207).

O amor a Deus e ao próximo é inseparável. Ao que me parece, a minha tarefa, é costurar aquele fio que dá conta de um mundo humano e de uma responsabilidade missionária em expansão, como o próprio cosmo (2). Vou apresentar três dimensões desse largo caminho da nossa responsabilidade missionária entre o contexto local e os confins do mundo: (1) A relevância da comunidade missionária para a humanidade brota da "natureza missionária da Igreja". (2) Pedras preciosas e pedras de tropeço no caminhar da comunidade missionária ao encontro da humanidade. (3) Nosso compromisso com a humanidade.

1. Nossa responsabilidade

O argumento da "natureza missionária" é um argumento interno da Igreja que afirma a necessidade e continuidade permanente do paradigma missionário. Depois de Aparecida, a Igreja convoca novamente os batizados para assumirem seu discipulado em regime de urgência (DA 289, 368, 518). Essa mobilização missionária não deve ser considerada algo extraordinário, nem como prerrogativa de uma ou outra Igreja local ou de setores pastorais ou movimentos específicos. Segundo o Vaticano II, a natureza missionária faz parte da normalidade e da razão de ser eclesial: "A Igreja peregrina é por sua natureza missionária. Pois ela se origina da missão do Filho e da missão do Espírito Santo, segundo o desígnio de Deus Pai" (AG 2).

Depois do Concílio, o magistério latino-americano retomou essa afirmação fundamental em várias ocasiões (cf. SD 12, DA 347). Aparecida, na "Terceira Parte" de seu texto conclusivo, dedicado ao agir pastoral, desenha uma Igreja que vive "em estado de missão" (DA 213). Também as "Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2008-2010" colocaram na sua parte central o sonho do discipulado missionário "numa Igreja em estado permanente de missão" (DGAE 47-101). Os textos insistem em devolver a cotidianidade missionária à Igreja em todas as suas instâncias. Também o discurso teológico deve ser marcado pela natureza missionária da Igreja, e representa não uma disciplina entre outras, mas uma teologia da missão que permeia todas as matérias teológicas. A Teologia da Missão é, ao mesmo tempo, teologia fundamental e pastoral, discurso nuclear de radiação, discurso "`performativo´ e não somente ´informativo´" (SpS 4), ou seja, um discurso que poderá transformar a nossa vida e a dos outros.

De que se trata nessa "natureza missionária"? A compreensão do termo "natureza" tem uma longa história da qual captamos o essencial para responder a pergunta. A partir da fé, os cristãos compreendem o mundo como criação divina que permeia uma ordem natural marcada por racionalidade e sentido. Mas a fé nos adverte também que mundo, natureza e humanidade são envolvidos numa "queda" ou "quebra" da racionalidade original; são marcados pelo pecado que não permite mais, sem os esclarecimentos da Revelação, considerar o natural ("a natureza") simplesmente como bom, racional e ético.

A "natureza missionária" tem seus fundamentos na ordem da criação e da redenção; ela está ligada à criação, porque se trata na "natureza missionária" de uma "natureza" que coincide com a "essência" e o "ser" da natureza criada, da qual a humanidade faz parte; ela está ligada à redenção, que os cristãos interpretam como recriação, porque se baseia, segundo a revelação, na natureza redimida pela nova ordem do ressuscitado que envia seus discípulos como missionários aos "confins do mundo". A natureza missionária, às vezes também chamada de "essência missionária", é vivida por pessoas redimidas pela graça, porém, que continuam pecadores.

A "natureza missionária" da Igreja não é uma "questão disputada" ou negociável. Em seus desdobramentos, em sua mediação e prática histórica, porém, ela é sujeita a discernimentos, discussões e negociações como é facilmente verificável, se compararmos, por exemplo, os chamados Colóquios, de 1524, nos quais os doze franciscanos expõem aos líderes religiosos indígenas, sobreviventes da conquista do México, a nova ordem cristã, com o Documento de Puebla (1979) ou os escritos de um José Anchieta com o diário de um Vicente Cañas, martirizado, em 1987, como defensor do povo Enawene-Nawe, no rio Juruena/MT. A "natureza missionária" é "essência" num sentido metafórico, porque é "princípio" e como tal, faz, ontologicamente, parte das origens, mas pertence ao tempo da Igreja e é historicamente vivida. Por ser das origens e por não excluir ninguém, se dirige como responsabilidade universal a todos com o projeto de Jesus, o Reino de Deus.
As múltiplas afirmações da "natureza missionária" da Igreja em documentos recentes não permitem a conclusão que essa natureza foi esquecida. Ela foi, em várias épocas e regiões do mundo, escurecida pela proximidade da Igreja ao poder. O poder seja expressão de regimes coloniais, imperiais, ditatoriais ou até democráticos, procurou sempre transformar a missão em ideologia e neutralizar a presença da Igreja junto aos pobres cuja existência denuncia a violação de seus direitos e culturas pelos respectivos regimes.

Segundo a fé cristã, origem e natureza missionária nos foram reveladas por Jesus Cristo. A missão tem a sua origem na missão do Deus trinitário ("missão de Deus") e sua finalidade na salvação da humanidade: "Para que tenham a vida e a tenham em abundância" (Jo 10,10). E essa missão se prolonga pelo envio dos discípulos por Jesus ressuscitado no Espírito Santo: "Como tu (Pai) me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo" (Jo 17,18).

A identidade entre Jesus histórico e Jesus ressuscitado é marcada pelas suas chagas nas mãos e em seu lado aberto pela lança. O Ressuscitado "mostrou-lhes as mãos e o lado, e os discípulos exultaram por verem o Senhor" (Jo 20,20). Jesus de Nazaré, o "Enviado do Pai" (Jo 20,21), "assumiu toda a natureza humana" (AG 3). A natureza missionária da Igreja encontra a sua identidade nessa origem do envio de Deus e da assunção da natureza humana. A identidade de Jesus pré e pós-pascal aponta para a identidade da missão dos discípulos e para a natureza missionária da Igreja que, segundo S. Paulo, tem como núcleo querigmático o escândalo e a loucura de "Cristo crucificado" (1Co 1.23). Pobres sinais marcam a trajetória da comunidade missionária: o vazio, a abertura, a partilha, a ruptura, a caminhada, a cruz e a hóstia sagrada. O presépio e o sepulcro estão vazios; a porta do cenáculo está aberta, a genealogia de Jesus, interrompida pelo Espírito Santo. A Igreja é serva, peregrina, hóspede, instrumento, sinal.

2. Nosso encontro

A Igreja peregrina e missionária, fundada na festa de Pentecostes, festa do dom da Lei no Sinai para os judeus, e para os cristãos, festa do dom do mandamento novo, portanto, de uma ética e prática nova. Nesta festa os discípulos e discípulas foram enviados em missão na unidade do Espírito Santo. A partir de Pentecostes, a comunidade eclesial aprendeu que sua tarefa é de formar, convocar e enviar servos do Reino e testemunhas da ressurreição. Mas, os discípulos estavam ainda muitos presos à Jerusalém, ao Templo, à tradição herdada dos judeus, aos seus familiares. Aí aconteceu algo inesperado, a destruição de Jerusalém pelos Romanos, no ano 70. Pentecostes, destruição e expulsão de Jerusalém marcam o início da missão universal da Igreja que deste aquele tempo não tem mais pátria, nem cultura próprias.

No Espírito Santo, a comunidade missionária é enviada para articular universalmente os povos e as culturas numa grande "rede" (cf. Jo 21,11) de solidariedade, diversidade e unidade. Do envio nascem comunidades pascais que procuram contextualizar a utopia do (5) primeiro dia da nova criação. Das comunidades nasce o envio. A missão é o coração da Igreja. E esse coração tem dois movimentos, envio e convocação; envio à periferia do mundo e convocação, a partir dessa periferia, para a libertação do centro. Sob a senha do Reino propõe um mundo sem periferia e sem centro.

Mas quem é esse destinatário da comunidade missionária? Quem é esse "mundo", quem essa "humanidade", hoje, no ano 2008? Quais são seus problemas e qual é a nossa boa notícia que vale a pena de deixar pai e mãe, casa e pátria, e que podemos oferecer, talvez não sempre como "a solução", mas como um olhar novo que dá sentido aquilo que encontramos, enxergamos e vivemos? Como ser feliz no meio de um mundo sofrido? Ou, como nosso cantor Gonzaguinha canta:

Viver!
E não ter a vergonha
De ser feliz (...).
Ah meu Deus!
Eu sei, eu sei,
Que a vida devia ser
Bem melhor e será.
Mas isso não impede
Que eu repita,
É bonita, é bonita

O nosso otimismo missionário não foge da realidade, do sofrimento e dos pobres, vítimas das cinco grandes crises do nosso planeta terra que são a crise do modelo econômico, a crise social, a crise ecológica, a crise cultural e a crise democrática. Os problemas centrais da humanidade que emergem dessas crises múltiplas e conectadas, neste início do século 21, são os seguintes:

a) A polarização econômica da sociedade mundial, numa concorrência feroz, onde não aquele ganha, que é mais humano, mas aquele, que produz mais barato. Crescimento e expansão se tornaram duas palavras mágicas, apoiadas por tecnologias cada vez mais sofisticadas a serviço da substituição de trabalhadores.

b) Aquele que produz mais barato é aquele que se submete a condições de um trabalho penoso, que a máquina e os computadores ainda não conseguem resolver. O trabalho penoso e de curta duração acompanha um salário indigno, sem garantia de direitos sociais, de educação dos filhos ou aposentadoria. Os destinatários privilegiados do querigma missionário são os pobres, os mal empregados e os desempregados, os migrantes, os que morrem antes do tempo por não terem um serviço de saúde que os ampare.

c) A exploração irracional atinge não só nosso irmão operário, indígena ou migrante, mas também a nossa irmã natureza. A responsabilidade dessa dilapidação da natureza, da devastação de nossas florestas e da biodiversidade "coloca em perigo a vida de milhões de pessoas", em especial a vida dos "camponeses e indígenas, que são expulsos para as terras improdutivas e para as grandes cidades para viverem amontoados nos cinturões de miséria" (DA 473).

d) A crise cultural se manifesta, por um lado, como crise de sentido e, por outro lado, como fundamentalismo com suas ramificações nas grandes religiões e nas ideologias filosóficas e políticas. A dissolução do sentido da história humana numa mera história natural e a afirmação do sentido único como negação do reconhecimento do outro e do pensamento diferente, que recebe apenas um estatuto de fato, mas não de jure, ou vice-versa, representam um potencial permanente de guerra e violência.

e) Depois de se ter feito guerras para a implantação da democracia, hoje essa democracia liberal está numa profunda crise estrutural pela confusão dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) e pela ética. A democracia liberal não permite a participação satisfatória do povo, sobretudo dos pobres e dos excluídos. Os que têm o poder econômico conseguiram reduzir o Estado a um estado mínimo que não interfere nos seus interesses. Este Estado mínimo favorece as elites, não consegue controlar a acumulação do capital na mão de poucos, nem a corrupção nem os meios de comunicação que divulgam a ideologia do "custo-benefício" como se fosse o primeiro mandamento de um código eticamente correto.

f) A justiça dos nossos países tornou-se uma justiça formal, morosa e caríssima, que atua, muitas vezes, longe dos lugares onde acontecem as injustiças, e não permite aos pobres, que desconhecem os trâmites legais e não conseguem pagar advogados competentes, alcançar o seu direito básico (falar da Ir. Dorothy!).
Diante dessa montanha de problemas, cada sociedade, estado e governo precisa resolver ou equilibrar cinco tarefas:

1. Criar ou sustentar um certo bem-estar econômico (material) de todos seus cidadãos. As dúvidas da humanidade cresceram (inclusive do Banco Mundial e do FMI) até o ponto de ter certeza que não existe a possibilidade de cumprir essa exigência com o prefixo de capitalismo neoliberal.
2. Promover a coesão e solidariedade social interna, que é atropelada pela concorrência do mercado globalizado que vive da exclusão e não da integração dos cidadãos. Exclusão, 7
redistribuição, integração social pelo trabalho e participação do lucro se tornaram, como direitos humanos, novos problemas para o poder judiciário, despreparado para tal tarefa.
3. Garantir o reconhecimento cultural (étnico, religião, gênero, faixa etária) do outro num pacto de tolerância, que tem a sua base não só nos fatos, mas nos direitos (direitos humanos, dignidade humana).
4. Zelar pela liberdade e participação política de todos num sistema democrático cujo funcionamento não depende do tráfico de influência do grande capital.
5. Finalmente precisa-se instalar um sistema jurídico que garante a aplicação da lei para todos e inibe a corrupção em todas as instâncias, inclusive no próprio aparelho de justiça. Não é fácil incorporar o chamado clientelismo, uma herança do sistema patriarcal, na base dos clãs familiares (veja o problema da corrupção, também na África!) às regras de um Estado moderno.

Admitimos com realismo que o equilíbrio entre essas tarefas é difícil, o equilíbrio, por exemplo, entre o bem-estar econômico, a solidariedade social e um sistema verdadeiramente democrático. Não existe nenhum governo no mundo que, por um tempo prolongado, tivesse conseguido esse equilíbrio. Existem alguns modelos políticos que conseguem enfatizar apenas um destes aspectos e que, periodicamente, entram em crise:

- o modelo anglo-saxônico, que incorporou a ideologia neoliberal e favorece a expansão e o bem-estar econômico para uma faixa considerável dos seus cidadãos, reduziu, porém, a solidariedade institucional para pobres;
- o modelo socialista que enfatiza a igualdade e o bem-estar social dos cidadãos, em detrimento de uma economia próspera e das liberdades políticas;
- o modelo asiático (os chamados tigres asiáticos, Singapura), que consegue prosperidade econômica e social pelo preço de um encolhimento democrático e um dirigismo político;
- o modelo indígena e campesino talvez seja o modelo que melhor consegue equilibrar a questão do território (coletivo e familiar), que é terra para viver e não para tirar grandes lucros, e do poder político como serviço à comunidade; pode-se muito aprender das sociedades indígenas, porém não se pode copiá-las. As nossas sociedades nacionais e transnacionais são muito mais complexas pela industrialização e pela grande multidão de pessoas que nelas procuram viver.

Por um momento, no início da segunda metade do século passado, parecia ser possível domar o capitalismo no interior de um sistema democrático e social nos países centrais. Mas este equilíbrio era pago pelo preço da terceirização da miséria desses países à periferia do mundo industrializado. Surgiu um muro entre Primeiro e Terceiro Mundo. Constatado o fracasso desse equilíbrio e descoberta essa artimanha de os países centrais viverem à custa dos países periféricos, se instalaram movimentos, sobretudo no então chamado Terceiro Mundo, que procuravam equilibrar os três pólos, dando mais ênfase à solidariedade social em detrimento da liberdade política. Em seu conjunto fracassaram igualmente.

Agora, no mundo globalizado sem fronteiras geográficas e políticas, não tem mais aonde exportar a miséria. Todos os países reproduzem o Primeiro e o Terceiro Mundo no interior das suas próprias fronteiras. Isso nos possibilita e obriga também a globalizar a solidariedade e a busca comum de alternativas. O nosso próprio 3o Congresso Missionário Americano CAM 3 - Comla 8 é expressão desta vontade de colaborar mais no eixo Norte-Sul, de globalizar a esperança e de afirmar que existem alternativas. Os problemas levantados não são naturais. Foram criados pela própria humanidade, o que nos dá a esperança, que a própria humanidade pode conseguir a sua solução.

Acreditamos que um outro mundo é possível, porque o tripé entre crescimento econômico, segurança social e democracia política não funciona, nem oferece uma perspectiva universal. O equilíbrio entre acumulação capitalista (crescimento), integração social e legitimação democrática, passada pela peneira do cálculo de custo-benefício e de investimento-lucro, não pode funcionar. E não devemos entrar no jogo de alternativas perversas: democracia com fome e miséria, ou bem-estar material sem participação, sem liberdade política e sem horizonte de sentido, ou prosperidade econômica do país com ditadura e fome (o país vai bem, o povo mal), ou prosperidade política e econômica para as elites e miséria para o povo.

Nos discursos políticos hoje, poucos governantes têm a audácia de prometer a integridade de estruturas sociais e as promessas da democracia moderna contra a mercantilização da sociedade mundial. Essa sociedade-mercadoria devora os recursos naturais para produzir sempre novos produtos desnecessários, e devora pela concorrência estrutural os recursos morais da democracia que se deveria alimentar da solidariedade coletiva.

A visão de uma sociedade transnacional de cidadãos que não se subjuga aos imperativos do mercado das sempre novas mercadorias e da concorrência eliminatória, mas que forja uma democrática participativa para regenerar a solidariedade em escala mundial, representa o desafio da época. A única arma de curar as feridas da modernidade é a própria modernidade. Precisamos do veneno destilar a vacina contra o veneno. Contra as falhas graves das nossas democracias, do sistema jurídico, da economia desregulada, do não-reconhecimento do outro não existem receitas mágicas. Não podem ser corrigidas pela pré nem pela pós-modernidade.

Nós discípulos-missionários: O que podemos fazer? O que podemos propor? Diante da gravidade desses problemas, todos somos aprendizes. Não temos uma receita pronta ou um outro mundo que poderíamos escolher para nossa missão, a não ser este que podemos percorrer com sempre novas atitudes, com a luz do Evangelho e a razão de nossa esperança.

3. Nosso compromisso

As vítimas das lógicas de expropriação e exclusão não nos cobram soluções técnicas, mas participação na gestação da própria ação missionária da Igreja, que poderia tornar-se um ensaio para transformações mais amplas; nos cobram sinais de justiça e razões de esperança. A nossa tarefa de discípulo-missionário é a do profeta peregrino, que denuncia e anuncia, que vive outros valores (partilha, solidariedade, gratuidade) e procura apontar para o outro mundo possível, que para nós tem a sua matriz no Reino de Deus. Os nossos sonhos, a nossa visão do mundo e a nossa esperança têm um impacto sobre o mundo universal, porque através deles - sonho, visão, esperança - somos capazes, como lemos na Carta a Diogneto, de "segurar o cosmos". Para fortalecer os nossos ombros para tal tarefa, precisamos cuidar da nossa identidade. São quatro esteios que nos podem ajudar a segurar o cosmo da nossa natureza missionária. Vivemos essa natureza universalmente contextualizados, na unidade plural do Espírito Santo, na gratuidade e na esperança dos e com os pobres.

3.1. Universalmente contextualizados

Como se situar nesse mundo entre isolamento e aggiornamento, entre despojamento e enriquecimento? Como traduzir os artigos de fé, os sinais de justiça, as imagens de esperança e as práticas de solidariedade para os interlocutores do mundo moderno? A contextualidade da missão tem seu fundamento teológico na proximidade de Deus ao longo de toda a história de salvação e no seguimento de Jesus, que em virtude da encarnação se aproximou da humanidade (cf. GS 22). O Deus da história da salvação judeu-cristã é um Deus próximo ao seu povo. No dizer de Santo Irineu, Deus está próximo de cada pessoa humana através de suas duas mãos estendidas, que são o Filho e o Espírito Santo (3). A mediação histórica e contextual do projeto de Deus faz da história e do contexto um sacramento de sua presença. A missão inserida no coração da história e cultura de cada povo "é um imperativo do seguimento de Jesus e é necessária para restaurar o rosto desfigurado do mundo" (SD 13b). A analogia entre a encarnação de Jesus de Nazaré e a proximidade contextual fez a reflexão missiológica cunhar o paradigma da inculturação. Com a inculturação, a Igreja se torna "um sinal mais transparente" e "um instrumento mais apto" (RM 52) para anunciar o Evangelho, não como uma alternativa às culturas, mas como a sua realização profunda. Vivemos a inculturação universalmente contextualizados.

Existem duas dimensões opostas da universalidade: a universalidade da opressão e a universalidade da libertação. A universalidade como hegemonia, pela qual um poder político, econômico ou cultural se sobrepõe sobre os outros, se opõe a universalidade das causas dos pobres e dos outros que se procuram libertar dessa hegemonia. A aliança dos outros com os pobres é anti-hegemônica. A universalidade como hegemonia produz a exclusão de grandes parcelas da humanidade do progresso e bem-estar social. A universalidade das causas e alianças visa à participação de todos na gestação dos bens da humanidade.

Por sua universalidade, todas as causas do Reino representam os desafios de uma comunicação intercultural com os diferentes: com saberes populares e laicos, com experiências religiosas, com temporalidades diferentes (tempos lineares e circulares), com geografias diferentes (projetos locais, regionais, internacionais), com hierarquias diferentes (ancestrais, patriarcais, comunitárias, funcionais, democráticas), com visões e valores diferentes face à produtividade econômica. Só com um adeus a uma visão teológica monocultural, regional e descontextualizada se consegue dar conta dessa complexidade da natureza missionária.

É importante com a universalidade (não-exclusão, participação de todos, confins do mundo) não esquecer as diferenças dos contextos. Não existe algo mais contextualizado e mais universal que o sofrimento dos pobres. No equilíbrio articulado entre o universal e o contextual está a possibilidade de uma comunicação em favor das múltiplas causas embutidas na causa do Reino. A solidariedade, que é universal, deve ser construída a partir do rio e da rua do próprio vilarejo. O projeto hegemônico, que impõe valores, objetivos e horizontes regionais, é o inimigo da universalidade contextual. A universalidade contextual dos pobres pressupõe o longo caminho da construção de um projeto comum. Sem esse projeto, mediado por valores universalmente concordados como justiça, solidariedade, igualdade, liberdade, participação e tolerância, também os projetos históricos de cada grupo étnico-social perdem a característica de uma "causa" que pode ser defendida por todos.

O universal "tanto mais promove e exprime a unidade do gênero humano quanto melhor respeita as particularidades das diversas culturas" (GS 54). A universalidade cresce com a proximidade que é "cognitiva" em sua memória, "sensitiva" em seu olhar e em sua escuta, e "emocional" em sua compaixão. Universalidade e proximidade estruturam os paradigmas da inculturação e da libertação. A meta da inculturação é a libertação, e o caminho da libertação é a inculturação. O paradigma da libertação visa à não-exclusão, portanto a participação de todos, a universalidade da justiça, da solidariedade e do amor. Os esforços pela libertação ganham profundidade com seu enraizamento contextual. A universalidade do horizonte das causas do Reino pode ser entendida como alternativa aos grandes discursos e projetos que emergem da globalização econômica (competividade, lucro-benefício, consumismo), como articulação de múltiplos projetos de vida, que une a responsabilidade universal, pelo conjunto da humanidade e do planeta Terra. O anúncio e a prática universal do amor maior e o anúncio do Reino como "libertação do cativeiro da corrupção" (Rm 8,21; LG 9), por ser anti-sistêmico, é para todos.

3.2. Unidade na diversidade

O Vaticano II permitiu, através de novos tópicos como "Igreja local", "contextualização", "inserção" (inculturação), "diálogo", repensar muitos pressupostos da universalidade da Igreja. A unidade da missão é uma unidade na diversidade do Espírito Santo. As múltiplas respostas das culturas não são um acidente de percurso, mas devem ser positivamente interpretadas como participação na criação do mundo. E, nesse mundo, povos e indivíduos defendem sua identidade sempre em contraste com a alteridade. Desse contraste nasce o imperativo da pluralidade em unidade. Essa unidade não é a da metafísica ou ontologia do gênero humano, mas a unidade construída através da razão, da verdade, do sentido último presentes em múltiplos projetos de vida que se manifestam em múltiplas vozes. A vida é gerada não no encontro consigo mesmo, mas no encontro com os outros.

O pluralismo cultural tem seus desdobramentos no pluralismo religioso. O reconhecimento explícito da liberdade religiosa pelo Vaticano II, através da Declaração Dignitatis humanae, é um dos pressupostos da missão. Na maioria das Igrejas e entre uma maioria dos fiéis, há um consenso de que a alteridade religiosa é irredutível. E essa alteridade religiosa remete ao diálogo inter-religioso. O diálogo, como instrumento de compreensão, respeito e convivência pacífica, no interior de um pluralismo qualquer, tem "sempre um caráter de testemunho, dentro do máximo respeito à pessoa e à identidade do interlocutor" (Puebla 1114).

O pluralismo e o diálogo como instrumento transdisciplinar de comunicação têm um horizonte universal, convidativo e responsável diante dos não-participantes do respectivo diálogo. Todos devem participar das discussões das grandes causas da humanidade (justiça, igualdade, solidariedade e paz). A unidade é o varejo da universalidade. Construir a unidade significa derrubar "muros da separação" (cf. Ef 2,14). "Anunciar Boa-Nova aos pobres" significa derrubar um dos muitos muros de separação que a sociedade permitiu construir não só entre países, mas também no interior de cada Estado e pessoa. Ao contar a parábola do bom samaritano (Lc 10,25ss), respondendo à pergunta sobre o que se deve fazer para obter a vida eterna, Jesus propõe derrubar não só o muro étnico entre samaritanos e judeus, entre mestiços impuros e judeus puros, o muro clerical entre sacerdotes e leigos, mas também o muro entre seita marginalizada e religião oficial, entre justos e pecadores, entre discurso e práxis, entre verdade e amor. Seguir a "falsa" religião dos samaritanos não impede, segundo a parábola, fazer o certo diante de Deus. O certo e decisivo para a vida eterna não é a pertença ao grupo certo, mas se chama prática da justiça maior e da caridade, articulação da diversidade não-excludente e superação de diferenças exclusivas.

Derrubar muros, marcados pela "corrupção do pecado", significa recuperar a imagem de Deus nos rostos humanos e a comunicação livre entre iguais e diferentes. Nesse processo que religa a ordem da redenção à ordem da criação, Jesus histórico e pós-pascal se coloca ao lado da samaritana, do migrante, do leproso, do pobre, da outra e do pecador. Ele constrói unidade a partir da assunção e da articulação da humanidade mutilada em seus contextos e nos confins dos seus mundos. Diante das "feições sofredoras de Cristo" nas feições da humanidade em "situação de extrema pobreza" (Puebla 31ss), onde o despojamento da encarnação e redenção assume sua relevância histórica e salvífica, caem todos os muros. É bom lembrar, Jesus não foi pedreiro. Não construiu muros. Ele foi carpinteiro, fez portas e janelas.

O Vaticano II nos fala de uma maneira nova da pertença à "católica unidade do povo de Deus": "A ela pertencem ou são ordenados de modos diversos quer os fiéis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer enfim todos os homens em geral, chamados à salvação pela graça de Deus" (LG 13d). A missão colabora com tarefas específicas nesses três níveis. Ad intra trabalha a identidade da fé e a pertença dos fiéis católicos à Igreja Católica. O trabalho ad intra se desdobra na prática de sua responsabilidade ad extra, que não visa à integração corporativista dos outros na Igreja Católica, mas a partilha dos dons que cada um recebeu a serviço dos outros (cf. LG 13c) e da construção da paz universal. O pluralismo religioso é expressão da "católica unidade do povo de Deus", que é unidade no Espírito Santo. Ele é o "princípio de unidade" (LG 13a). A Igreja Católica faz parte da "católica unidade", mas não é idêntica à ela. Também os outros crentes em Cristo e a humanidade pertencem a essa "católica unidade". A justiça da ressurreição não é privilégio de uma ou outra denominação cristã. Pela vontade salvífica universal de Deus "devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal" (GS 22). A alteridade não é complementar à identidade, mas a sua condição de ser.

A unidade definitiva entre os cristãos e a humanidade como um todo deve ser vista num horizonte escatológico. "Quem apostar em uma unificação das religiões como resultado do diálogo inter-religioso, só poderá decepcionar-se. Essa unificação dificilmente se realizará dentro do nosso tempo histórico. Talvez não seja nem desejável" (4), escreveu o então cardeal Ratzinger alguns anos atrás. O que era ontem considerado "idolatria", "heresia", "fetichismo" ou "perfídia", hoje, no interior da Igreja Católica, é cortejado como religião com "lampejos daquela Verdade que ilumina a todos os homens" (NA 2b). Em outros textos do Vaticano II, as religiões não-cristãs são consideradas uma "preparação evangélica" (LG 16, cf. EN 53), "pedagogia para Deus" (AG 3a) ou "sementes do Verbo" (AG 11b, LG 17). Os tópicos da preparação do Evangelho nas culturas não-cristãs e da procedência nelas de tudo o que é bonito, bom e verdadeiro do Espírito Santo é lugar comum na tradição católica (cf. AG 15; 17; GS 22,5; 26,4; 38; 41,1; 57,4). Transitórias não são as religiões não-cristãs, mas a nossa compreensão delas. "A ortodoxia", afirmou a Comissão Teológica Internacional ainda em 1972, "não é um consentimento a um sistema, mas a participação de uma caminhada da fé" (5) Quando nos assalta a vontade de arrancar todo joio da história, o Evangelho nos lembra do horizonte escatológico da colheita (cf. Mt 13,24-30).

3.3. Gratuidade

No mundo competitivo e excludente, onde tudo vale somente pelo seu preço de mercado, a missão está vinculada à derrota do reino da necessidade ("custo-benefício") e à recuperação de um espaço e projeto alternativos de não-mercado e gratuidade. A comunidade missionária confia na atração de seu testemunho gratuito. Seu "marketing" dispensa propaganda e armas. Os espaços de gratuidade inerentes ao cristianismo são espaços de resistência contra espaços feitos territórios de lucro. O lucro particulariza e privatiza. O mercado não é para todos.

Em Aparecida, a Igreja se autodenominou "casa dos pobres" (DA 8, 524). Seu espaço é um espaço alternativo que está configurado pela gratuidade da cruz de Jesus de Nazaré e da experiência pascal dos seus discípulos. Essa gratuidade da cruz não é o prefácio da história de libertação e emancipação, mas seu eixo permanente: "O amor de doação plena, como solução para o conflito, deve ser o eixo cultural `radical` de uma nova sociedade" (DA 543). "Na generosidade dos missionários se manifesta a generosidade de Deus, na gratuidade dos apóstolos aparece a gratuidade do Evangelho" (DA 31). A Igreja "casa dos pobres" é uma Igreja pobre. Dos pobres recebe o dom da gratuidade e a proximidade do Espírito Santo, que é "pai dos pobres" (Seqüência de Pentecostes) e "protagonista da missão" (RM 21b).

Nos trâmites da justiça, a Igreja não é juíza entre as partes, mas "advogada da justiça dos pobres" (DA 395, 533). Ela é parcial. Defende uma parte do processo. Essa é a sua missão pneumatológica, ser "consoladora", "intercessora" e "advogada": introduzir e representar o "Espírito da Verdade" (Jo 14,17) que vem do Pai, e dá testemunho contra "o pai da mentira", que perturba a ordem social. O Espírito Santo é Espírito da Verdade, não por causa de uma doutrina certa, uma lei perfeita ou uma moral superior, mas porque nele acontece a verdade na geração da vida: na prática do novo mandamento e da justiça maior em favor dos pobres.

Desde o Vaticano II, a Igreja Católica teceu um fio condutor para sua ação missionária, que esclarece a dimensão mais profunda de sua "natureza missionária": a opção preferencial pelos pobres. Essa opção é preferencial porque deve "atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais" (DA 396). A "natureza missionária" tem a sua origem na "Missão de Deus", que é missão do Verbo encarnado, "que esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo" (Fl 2,7), e do Espírito Santo enviados aos pobres: "Tudo o que tenha relação com Cristo tem relação com os pobres e tudo o que está relacionado com os pobres clama por Jesus Cristo" (DA 393). No Espírito Santo, o filho do carpinteiro foi confirmado "Filho bem-amado", por ocasião de seu batismo no Jordão. Por ele foi conduzido "ao deserto para preparar-se para sua missão" (cf. Mc 1,12s; DA 149). Nele foi ungido Messias "para evangelizar os pobres" (Lc 4,18). Depois de sua ressurreição, Jesus enviou seus discípulos para pregar, na força do Espírito, a Boa Nova do Reino (cf. DA 276). Todo envio em missão acontece no Espírito Santo.

Faz 40 anos que o Papa Paulo VI, que procurou transformar os documentos do Vaticano II em realidade pastoral, declarou na abertura da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín: a Igreja se encontra hoje diante da vocação da Pobreza de Cristo. (...) A indigência da Igreja, com a decorosa simplicidade de suas formas, é um testemunho de fidelidade evangélica; é condição, algumas vezes imprescindível, para dar crédito à própria missão; (...) representa um exercício, que aumenta a força da missão do apóstolo.

A estrutura dessa Igreja dos pobres é trinitária. Ela, que é "Povo de Deus", "Corpo do Senhor" e "Templo do Espírito Santo" (LG 17), nasce e renasce nas comunidades pelo impulso do Espírito Santo e "se edifica como Igreja de Deus quando coloca no centro de suas preocupações não a si mesma, mas o Reino que ela anuncia como libertação de todos" (DGAE/1995, n. 64). Na memória eucarística, a comunidade cristã lembra a gratuidade de sua salvação e atualiza, na memória do lava-pés, as razões de seu serviço, que se insere numa lógica que subverte as relações de dominação (cf. Mc 10,42ss). Agradecer na consciência da libertação recebida como dádiva e servir no cumprimento da nova ordem ("entre vocês seja diferente"!) são dimensões estruturantes de sua missão. O dom não dispensa o próprio esforço e os nossos esforços não dispensam a graça: "A vida é presente gratuito de Deus, dom e tarefa que devemos cuidar (...)" (DA 464).

A gratuidade impulsiona necessariamente à simplicidade institucional. Somente estruturas leves permitem pensar em gratuidade. Estruturas pesadas são muito caras. Uma Igreja a caminho é uma Igreja simples e transparente. O caminhar no Espírito é um caminhar desarmado e despojado. Conversão e transformação autênticas tornam as pessoas mais simples. E a simplicidade representa também uma resposta à complexidade cada vez mais especializada do mundo. "Quando vos mandei sem bolsa, sem mochila e sem calçado, faltou-vos, porventura, alguma coisa?" (Lc 22,35).

A gratuidade, microestruturalmente vivida na contra-mão do sistema capitalista, aponta para a possibilidade de um mundo para todos, mas também para desconexões sistêmicas, mudanças de mentalidade e estruturas eclesiais. O Espírito Santo, que é dom e que dá vida, vive no Verbo encarnado, na Palavra cumprida na cruz e na ressurreição. Ele, que é a vida do Verbo, vive também conosco na Palavra de Deus cumprida na fidelidade à sua missão na partilha do pouco que temos e nas causas do Reino que defendemos.

3.4. Razões da nossa esperança

Os discursos dominantes hoje afirmam que não há alternativa ao capitalismo, que as utopias não fazem mais sentido e que a história chegou ao se ponto final. São discursos de auto-salvação e desespero dirigidos contra os pobres. Geram pessimismo e depressão. A esperança nasce quando as vítimas começam a falar, agir, organizar-se por própria conta; quando os discípulos-missionários se fazem presentes no meio do povo, rejeitam o próprio protagonismo e abrem mão das vantagens de sua classe social, acompanham os processos de organização, ajudam a expulsar o sentimento da incapacidade e se empenham em transformar os desejos alienantes, que esperam tudo da providência de Deus ou das promessas dos políticos, em esperança histórica.

A esperança é uma mensagem central da fé bíblica (cf. SpS 2). A mensagem do Reino e da ressurreição de Jesus, que é promessa da justiça definitiva, é promessa a ser cumprida na ressurreição dos mortos, quando "todos reviverão em Cristo" (1Cor 15,22). Cremos no ressuscitado e anunciamos seu Reino no horizonte da plenitude escatológica de "um céu novo e uma nova terra" (Ap 21,1). O Deus conosco é sempre o Deus que caminha à nossa frente e ao nosso encontro. Ele é o futuro absoluto para a humanidade. A esperança, que é a força interior da fé, permite confiar no Deus sempre maior e no futuro prometido por Ele. Pela esperança somos capazes de compreender o incógnito de Deus não como ausência ou abandono, mas como a sua condição de ser e como centro do mundo, nos rostos dos migrantes e refugiados, dos desempregados e dos que vivem na rua das grandes cidades, dos agricultores e indígenas sem terra e dos afro-descendentes que lutam por seu reconhecimento em sociedades racistas (cf. DA 58, 65, 72, 88ss, 402, 427, 439, 454). O grito dessa gente nos lembra diariamente da presença de Deus e da injustiça humana, que domina o mundo como um câncer maligno. Deus ouve o grito de seu povo. Ele não só olhou para o sofrimento do povo, mas participou desse sofrimento. Ele está no grito de seu povo. Deus é o grito dos pobres. Deus não sofre mais por nós, mas tem compaixão de nós. E nós podemos nos expor ao sofrimento dos outros porque neles experimentamos a compaixão de Deus.

Reconhecer Deus como sujeito e ator da história e da missão alivia o peso da missionariedade, sem eximir de responsabilidade. Ele é o bom pastor dos discípulos-missionários. Portanto, devemos pedir a Deus não isso ou aquilo, mas o dom que ele mesmo é. Pedir a Deus, Deus, significa pedir ouvidos abertos, mãos estendidas, uma vida que se doa, e uma voz profética que não se cala.

Deus, que ouve o grito dos pobres, que está conosco no centro dos conflitos, nos envia em missão. Ao envio precede a convocação ao êxodo. Ele nos chama a sair da escravidão. Essa escravidão se desdobra em múltiplas formas de servidão e submissão. Na origem de cada servidão está o seqüestro da memória dos pobres. A experiência do êxodo e a recuperação da memória são fundamentais para o anúncio missionário. A missão que se propõe ser e anunciar "boa notícia aos pobres" procura, necessariamente, desintegrar-se do sistema que produz o sofrimento dos pobres, procura desintegrar o sistema e, positivamente, recuperar a memória dos oprimidos. Deus, que convida ao êxodo, também põe fim ao exílio. Zacarias ("o Senhor é memória"), o profeta pós-exílico, promete libertar "os cativos da esperança (...) da cisterna onde não há água" (Zc 9,11s). Os cativos da esperança serão areia nas entranhas do sistema alicerçado na exclusão, exploração e nos privilégios de poucos (cf. DA 62).
Quem sai de sua terra, como Abraão, ou da terra dos outros, onde foi escravizado, como Moisés, não sabe para onde vai. Em última instância, a esperança é confiança em Deus, é utopia, lugar inexistente, promessa absoluta. Uma primeira saída está na saída, no êxodo. A missão vive e propõe esse êxodo em direção de um mundo novo que acolhemos na metáfora do Reino de Deus. A esperança nos dá as razões e a força para decidir entre o presente acomodado e sofrido, e o êxodo para um futuro imprevisível e arriscado. Viver na esperança tem seus perigos e riscos.

A ruptura sistêmica não depende da Igreja, mas é factível com ela. Seus gestos significativos - sinais de justiça e imagens de esperança - perpassam todos os seus setores (formação, teologia, catequese, ministérios, liturgias, pastorais), e articulações com setores que ultrapassam o âmbito eclesial. A Igreja, através de seus agentes, está presente nos diversos movimentos sociais que acreditam na possibilidade de um outro mundo. Sua missão é "despertar esperança em meio às situações mais difíceis, porque, se não há esperança para os pobres, não haverá para ninguém" (DA 395).

Precisamos novamente descer ao chão do povo pobre e ferido para formar lideranças em seu meio e em suas lutas, onde "o próprio Cristo se faz peregrino e caminha ressuscitado" (DA 259). O ressuscitado é o crucificado. A cruz não pertence à pré-história das lutas pela libertação. Pertence à sua história permanente. E nessa história definimos etapas, prioridades e metas de um outro mundo possível. Alimentar a esperança dos pobres exige presença, visão e intervenção de discípulos-missionários como atores sociais. O apóstolo nos exorta a "estar sempre prontos a dar a razão da nossa esperança, (...) com mansidão e respeito" (cf. Pd 3,15s). Contudo, não somos nós que produzimos o novo, mas o novo não será jogado aos nossos pés, sem nossa participação. Tampouco podemos prognosticar o mundo novo que esperamos. Assumimos com os pobres, que são arautos da esperança, a pobreza do nosso saber a respeito da forma concreta do futuro esperado. Em todo caso sabemos que as transformações, que inspiram a esperança, começam com a participação dos pobres-outros na construção do mundo novo e da Igreja, com redistribuição dos bens acumulados por poucos, com o reconhecimento do diferente e com a gratuidade vivida pela comunidade missionária.

A Igreja da América Latina e do Caribe está diante de três alternativas: (a) amedrontada, enterrar os muitos talentos que recebeu (Mt 25,14ss), (b) se inserir ao sistema capitalista e propor pequenas melhorias ou (c) intervir com sinais de justiça no mundo injusto e lançar as sementes do Reino. A Igreja de Aparecida assumiu essa intervenção e ruptura como serviço aos pobres. Ela prometeu não apenas ser advogada dos pobres, mas a sua casa. Como casa dos pobres, a Igreja será casa de esperança.

Notas:

(1) O pano de fundo desta colocação, que foi apresentada no "3o Congresso Missionário Americano CAM 3 - Comla 8, 12 a 17 de agosto - Quito (Equador), está, sobretudo nos Documentos do Vaticano II (na Constituição Pastoral "A Igreja no mundo de hoje": Gaudium et spes e no Decreto sobre "A Atividade Missionária da Igreja": Ad gentes), no Documento de Aparecida (DA 406), no Instrumento de Trabalho desse Congresso (IdT 18-21) e nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE-2008-2010, n. 207-209).
(2) No dia 16 de junho de 2008 foi divulgada a notícia da descoberta pelo telescópio "La Silla", instalado no Chile, de três ´super`planetas que medem 4,2, 6,7 e 9,4 vezes o tamanho da Terra.
(3) Cf. IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1997, V, 6,1. 11
(4) RATZINGER, Joseph Cardeal, Der Dialog der Religionen und das jüdisch-christliche Verhältnis. Primeira vez publicado in: Internationale Katholische Zeitschrift Communio 26 (1997) 419-429. Também in: IDEM, Die Vielfalt der Religionen und der Eine Bund, 3. ed., Bad Tölz: Urfeld, 2003, p. 117.
(5) Cf. L'unité de la foi et le pluralisme théologique, l.c., Preposição IV. 14

* Bispo do Xingu e presidente do Cimi

 

 

 

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