Medellín 40 anos

Estevão Raschietti

Uma das conferências durante o 2º Congresso Missionário Nacional, em Aparecida, de 1º a 4 de maio, discutirá a opção pelos pobres e a urgência da missão nos 40 anos de Medellín.

"A Igreja latino-americana, reunida na II Conferência Geral de seu Episcopado, situou no centro de sua atenção a pessoa deste continente, que vive um momento decisivo de seu processo histórico. Assim sendo, não se acha ‘desviada', mas ‘voltou-se para' a pessoa, consciente de que para conhecer Deus é necessário conhecer a pessoa". Estas palavras lapidárias abrem o texto das conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada de 26 de agosto a 8 de setembro de 1968 na cidade de Medellín, Colômbia. Retomam ao pé da letra o célebre discurso de encerramento do Vaticano II de Paulo VI, e expressam toda a fiel recepção da essência doutrinária do Concílio, reinterpretada agora no contexto latino-americano. A perspectiva da "missão para a humanidade", lançada pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes e resgatada agora por ocasião do 3o Congresso Americano Missionário no Equador (12 a 17 de agosto), encontra na Conferência de Medellín uma sua original contextualização profética e pastoral.
Celebramos os 40 anos de realização dessa histórica Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, de sua atualidade e de sua relevância para a missão da Igreja no continente e no mundo. Ela foi convocada pelo papa Paulo VI para tornar efetiva a recepção das diretrizes do Concílio Vaticano II diante das necessidades da Igreja presente na América Latina. A temática proposta foi "A Igreja na presente transformação da América Latina à luz do Concílio Vaticano II". A abertura da Conferência foi feita pelo próprio papa, o que marcou a primeira visita de um pontífice à América Latina.
A inauguração aconteceu na catedral de Bogotá, no dia 24 de agosto, por ocasião do 39o Congresso Eucarístico Internacional. Dela participaram 86 bispos, 45 arcebispos, seis cardeais, 70 sacerdotes e religiosos, seis religiosas, 19 leigos e nove observadores não-católicos, coordenados pelo cardeal Antônio Samoré, presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, e por dom Avelar Brandão Vilela, arcebispo de Teresina e presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam). No total, participaram 137 bispos com direito a voto e 112 delegados e ­observadores.

Transformação
Transformação é uma palavra chave para entender Medellín. Não está somente no título, mas todo documento conclusivo está permeado por esse anseio, a partir do qual os bispos tomam consciência da "vocação original" da América Latina: "vocação de unir numa síntese nova e genial, o antigo e o moderno, o espiritual e o temporal, o que outros nos legaram e nossa própria originalidade" (DM, Introdução 7).
O acento sobre a temática da "transformação", coincidia com uma das principais linhas do Concílio: enfocar as reflexões nas respostas que a Igreja deve dar aos problemas que ela encontra com sua presença no meio do mundo. 1968 era época de grandes mobilizações na sociedade mundial, sobretudo por parte da juventude. O Concílio sublinhava a importância da leitura dos "sinais dos tempos" para enxergar o projeto de Deus para a humanidade. Agora, em Medellín, a Igreja latino-americana abraça de vez a causa da "necessidade de uma mudança global nas estruturas" (DM, Justiça 16), insistindo, porém, "na conversão da pessoa, que exige imediatamente esta mudança" (DM, Justiça 3).
Já na Carta Encíclica Populorum Progressio, de 1967, Paulo VI tinha apontado para a necessidade de que "o desenvolvimento exige transformações audaciosas, profundamente inovadoras" (PP 32). Medellín se compromete com a defesa "dos direitos dos pobres e oprimidos" (DM, Paz 22), com a denúncia da violência estrutural e primeira que gera miséria e injustiça social. Adverte contra o intervencionismo das "nações poderosas contra a autodeterminação dos povos fracos" (DM, Paz 32) e contra a "política armamentista". "A luta contra a miséria é a verdadeira guerra que devem enfrentar nossas nações" (DM, Paz 29). Ao incentivar a organização do povo (cf. DM, Paz 27) e sua conscientização, através de catequese e liturgia e em colégios e universidades (cf. DM, Paz 24-25), com suas denúncias, advertências e incentivos, Medellín representa, como afirma Paulo Suess, "um novo querigma magisterial que até hoje não perdeu sua atualidade". Com efeito, dom Cândido Padin, bispo de Bauru e, na época, presidente do Departamento de Educação do Celam, lembrou que Medellín foi, antes de tudo, um verdadeiro acontecimento histórico que, daí para diante, mudou os rumos da ação da Igreja em todo o continente. "Para usar um termo bíblico - afirmou o prelado - podemos dizer que Medellín foi para a Igreja latino-americana, um segundo kairós, como foi o Concílio Vaticano II para a Igreja universal".
De lá para cá, muitas coisas aconteceram. Houve importantes mudanças na sociedade, como também na Igreja. Sem dúvida, os tempos de hoje não são os da Conferência de Medellín. Contudo, a memória desse evento vem nos lembrar algumas pedras de toques, fundamentais para a caminhada missionária latino-americana, que representam pontos de chegadas e de re-partidas para uma comunidade de discípulos sempre mais missionária. E mais ainda: trata-se de marcas profundas da genuína identidade da Igreja no continente, o próprio DNA da missionariedade da Igreja latino-americana, resgatado com fidelidade e esperança pela Conferência de Aparecida.

"Ver, julgar e agir"
A primeira dessas marcas é a atenção dada à realidade dos povos latino-americanos que se expressou, particularmente, na adoção do método "ver, julgar e agir". Quase todos os 16 documentos que compuseram as conclusões da Conferência partem da teologia dos "sinais dos tempos", com o estudo atento da realidade, tanto econômica, política e social quanto eclesial do continente latino-americano e caribenho. O segundo passo consistiu em identificar as interpelações que brotavam da realidade, analisando-as à luz da palavra de Deus, do Vaticano II, do magistério e da experiência de toda a Igreja. O terceiro passo foi o de propor pistas de ação pastoral, visando transformar a realidade atravessada por estruturas de pecado e pelo clamor e esperança dos pequenos.
Na Mensagem Final aos povos da América Latina, os bispos latino-americanos afirmam com muita clareza a tônica de sua postura diante da realidade do continente: "Nossa palavra de pastores quer ser sinal de compromisso; como homens latino-americanos compartilhamos a história do nosso povo". E continuam: "Como cristãos, cremos que esta etapa histórica da América Latina está intimamente vinculada à história da salvação (...) Cremos que estamos numa era histórica. Exige clareza para ver, lucidez para dia­gnosticar e solidariedade para agir. À luz da fé que professamos como fiéis, fizemos um esforço para descobrir o plano de Deus nos sinais de nossos tempos".
Esse deixar-se interpelar pela realidade constitui uma profunda mudança de atitude para uma Igreja acostumada a sentir-se "mestra", a revelar sua verdade aos outros, mais que a aprender pela história, a proclamar "sua" palavra, mais que a ouvir os apelos dos povos, a sentir-se "luz do mundo", mais que enxergar pela luz da fé a presença de Deus na vida das pessoas. Ver, compreender e reconhecer são novos desdobramentos essenciais para a caminhada missionária, que tornam a Igreja novamente discípula no meio dos povos, companheira e amiga que busca continuamente aliados e interlocutores, e não meros destinatários de sua pregação. Por este motivo, esse olhar à realidade não é completamente neutro, mas é cheio de compaixão. É como o olhar do próprio Deus, que vê a miséria do seu povo no Egito, ouve seu clamor e conhece seus sofrimentos (cf. Ex 3, 7). É o mesmo olhar de Jesus que, vendo as multidões, tem compaixão "porque estavam cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor" (Mt 9, 36). Nesse sentido, discernir os sinais dos tempos conduz a Conferência de Medellín a olhar frente a frente para a realidade de um continente que vive "sob o signo trágico do subdesenvolvimento, que não só afasta nossos irmãos do prazer de desfrutar dos bens materiais, mas de sua própria realização humana" (DM, Mensagem Final).
O subdesenvolvimento "é uma injusta situação promotora de tensões que conspiram contra a paz" (DM, Paz 1), "uma dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria desumana" (DM, Pobreza da Igreja 1). Essa miséria "se qualifica de injustiça que clama aos céus" (DM, Justiça 1) e essa injustiça expressa "uma situação de pecado" (DM, Paz 1).
Opção pelos pobres
A Conferência de Medellín considera que essa situação de pobreza é o maior desafio ao qual deve fazer frente o anúncio do Evangelho. A proclamação de um Reino de amor e paz é incompatível com a "violência institucionalizada" em que vivem os pobres da América Latina (DM, Paz 16). Não é possível, por conseguinte, ficar "indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina" (DM, Pobreza da Igreja 1).
Daqui nasce a intuição básica de Medellín que é a "opção pelos pobres". Clodóvis Boff esclarece: "Certamente, essa opção não é uma novidade ­absoluta na Igreja. Além de ter sido uma prática constante na história, embora sob formas várias e até desencontradas, ela tem fundamentos perfeitamente bíblicos. Mas foi um dos méritos (e não dos menores, antes, possivelmente o maior) da Igreja da América Latina ter desenterrado essa dimensão e ter dado um lugar de honra na teologia e na pastoral. Só por isso a Igreja do continente tornou-se credora da gratidão eterna não só dos pobres do mundo, mas também da parte da Igreja universal".
Sobre a "opção pelos pobres" tanto se falou ao longo destes 40 anos. Quando a III Conferência do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla, México, em 1979, retomou com vigor essa posição profética, lembrou que esta foi causa de tensões e conflitos dentro e fora da Igreja: "acusaram-na com freqüência, seja de estar do lado dos poderes socioeconômicos e políticos, seja de um perigoso desvio ideológico marxista" (P 1139).
Mas é só reler o próprio Documento de Medellín para entender do que se trata. Em primeiro lugar devemos distinguir que "a pobreza como carência dos bens deste mundo, necessários para uma vida humana digna, é um mal em si". Em segundo, "a pobreza espiritual é a atitude de abertura para Deus (...) embora valorize os bens deste mundo, não se apega a eles e reconhece o valor superior dos bens do Reino". Enfim, a pobreza é também "compromisso, assumida voluntariamente e por amor à condição dos necessitados deste mundo" (DM, Pobreza da Igreja 4).
Neste contexto, uma Igreja pobre, que faz a opção pelos pobres "denuncia a carência injusta dos bens deste mundo e o pecado que a engendra; prega e vive a pobreza espiritual como atitude de infância espiritual e abertura para o Senhor; compromete-se ela mesma com a pobreza material" (DM, Pobreza da Igreja 5). Por isso que "a pobreza da Igreja e de seus membros na América Latina deve ser sinal e compromisso: sinal do valor inestimável do pobre aos olhos de Deus; compromisso de solidariedade com os que sofrem" (DM, Pobreza da Igreja 7).
O exemplo é do próprio Cristo que sendo "rico se fez pobre" (2 Cor 8, 9) para salvar-nos. Portanto, "a Igreja, movida pelo Espírito Santo, deve seguir o mesmo caminho de Cristo: o caminho da pobreza, da obediência, do serviço e da imolação própria até à morte, morte de que Ele saiu vencedor pela sua ressurreição" (AG 5).
Quando a Conferência de Puebla assumiu a herança de Medellín criando a expressão "opção preferencial pelos pobres", exatamente estas três palavras - pobre, preferência, opção - remeteu aos três conceitos distintos de pobreza material, pobreza espiritual e pobreza como compromisso. A missão da Igreja latino-americana vai se definindo então, em torno desse eixo fundamental: uma missão a partir dos pobres (das vítimas da pobreza), que anuncia a Palavra que se fez carne nos pobres, realizada por uma Igreja existencialmente pobre. Isso se expressa também na estrutura das três grandes partes do Documento de Medellín: promoção humana, evangelização e Igreja.

Libertação
A opção pelos pobres é fundamentalmente uma opção pelo ser humano. Uma opção para salvar a pessoa da dependência opressora e da dominação injusta. A Conferência de Medellín convoca, então, os cristãos a se comprometerem com a construção de uma sociedade justa, sem marginalizados nem oprimidos. O apelo para a ação é dramático: "não basta, certamente, refletir, conseguir mais clarividência e falar. É necessário agir. A hora atual não deixou de ser a hora da ‘palavra', mas já se tornou, com dramática urgência, a hora da ação" (DM, Introdução 3).
Essa ação tomou o nome de "libertação". Na época falava-se muito em "desenvolvimento". Até documentos do magistério como a Mater Magistra (1961), a Pacem in Terris (1963), a Gaudium et Spes (1965) e a Populorum Progressio (1967) falavam de desenvolvimento em perspectiva humanista. Célebre se tornou a expressão de Paulo VI: "desenvolvimento integral do ser humano e desenvolvimento solidário da humanidade" (PP 5). Mas esse conceito expressava inequivocadamente uma visão linear, dando por óbvio que povos e pessoas deviam se "desenvolver" ao longo de um caminho traçado pelos países ricos. Daí a distinção em países desenvolvidos e subdesenvolvidos, avançados e atrasados, centrais e periféricos.
A reflexão latino-americana, porém, denunciava que o subdesenvolvimento e a exploração dos países pobres sustentava de fato o desenvolvimento e a acumulação dos ricos. Não havia desenvolvimento nenhum para os países pobres, muito pelo contrário: a situação de miséria, gerada e sustentada pelas nações ricas, era estrutural e permitia de fato riqueza e desenvolvimento só para uma parte do mundo, e retrocesso para a outra. A solução para esse estado de injustiça estrutural passava inevitavelmente por um processo de ruptura e de libertação.
Estando assim as coisas, uma "teologia da libertação" tornava-se mais apropriada que uma "teologia do desenvolvimento" inaugurada pelos documentos pontifícios. Ademais, o conceito de libertação encontrava na Bíblia um fundamento bem mais consistente, que revelava de fato a ação de Deus na história. Com essa noção Medellín almejava o profundo resgate da pessoa humana numa "libertação integral", na qual se ofereçam "as riquezas de uma salvação integral em Cristo, o Senhor" (DM, Catequese 6). Por isso, uma "verdadeira libertação" exige uma "profunda conversão para que chegue a nós o ‘Reino de justiça, de amor e de paz'" (DM, Justiça 3). Com vista a essa libertação integral, Medellín propõe "que se apresente cada vez mais nítido na América Latina o rosto da Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo poder temporal e corajosamente comprometida com a libertação de toda pessoa e de todas pessoas" (DM, Juventude 15).
Missão mundial
A dimensão propriamente missionária não encontrou um seu espaço e nem se expressou num documento específico na Conferência de Medellín. Contudo, a "missão para a humanidade" se sobressai de maneira preponderante em todo Documento Final, fruto de uma singular prática colegial de 16 comissões, que permitiu cruzar a experiência pessoal dos participantes com os dados apresentados, colocar em comum a visão dos bispos, com a prática de leigos e leigas, religiosos e religiosas, peritos e teólogos, párocos do clero diocesano e observadores não-católicos.
Medellín fundamenta com exatidão como há de proceder uma missão Ad Gentes a partir da América Latina. A opção pelos pobres implica para a Igreja um deslocamento fundamental, uma saída de si, em termos de perceber e questionar a realidade do mundo do ponto de vista das vítimas e dos injustiçados. Implica também e, sobretudo, a adesão a um projeto de mundo global mais justo e solidário, significativamente "outro" daquilo que temos diante dos olhos. Um mundo sem pobres Lázaros e sem ricos Epulões. "Uma família de mais ou menos todos iguais", como pedia generosamente o patriarca sertanejo da Ilha do Bananal, citado por dom Pedro Casaldáliga.
Conseqüentemente, a preocupação com a dimensão universal dessa missão não passa despercebida, mas é afirmada pela necessidade primeira de reconhecimento do sujeito histórico do pobre, capaz de abrir-se a uma relação fraterna com os demais: "Por vocação própria, a América Latina tentará obter sua libertação a custo de qualquer sacrifício, não para fechar-se em si mesma, mas para abrir-se à união com o resto do mundo, dando e recebendo em espírito de solidariedade. De forma especial julgamos decisivo nesta tarefa o diálogo com os povos irmãos de outros continentes que se encontram em situações semelhantes às nossas. Unidos nos caminhos das dificuldades e esperanças, podemos conseguir que nossa presença no mundo seja definitiva para a paz" (DM, Mensagem Final).

Estevão Raschietti, SX, é mestre em Teologia Dogmática com concentração em Missiologia. Assessor do Comina e membro da equipe do Centro Cultural Guido Maria Conforti, Curitiba, PR.

Publicado na edição Nº04 - Maio 2008 - Revista Missões.

 

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