Missão para a humanidade

Estevão Raschietti *

Nesse ano de 2008, dois grandes eventos missionários serão realizados. De 12 a 17 de agosto em Quito, no Equador, acontecerá o 3º Congresso Americano Missionário, que corresponde ao 8º Congresso Missionário Latino-Americano. Sua sigla: CAM 3 - Comla 8. Delegações de todos os países da América Latina e da América do Norte estarão presentes na capital equatoriana para debater sobre a Igreja em discipulado missionário, à luz da Conferência de Aparecida em vista da Missão Ad Gentes.

Em preparação a esse grande evento continental, será celebrado o 2º Congresso Missionário Nacional, de 1 a 4 de maio, em Aparecida, no mesmo lugar onde houve a V Conferência do Episcopado Latino-Americano no ano passado. Naquela ocasião falou-se do nexo "discípulos missionários". Desta vez, o tema será complementado pelo acontecimento da missão "contextual universal", aqui e (contemporaneamente) no mundo inteiro. O tema será: "do Brasil dos batizados, ao Brasil de discípulos missionários sem fronteiras", e o lema: "Igreja no Brasil: escuta, segue e anuncia".

A realização do CAM 3-Comla 8 convoca todas as Igrejas do continente para "um processo de reflexão e análise missionária que responda a esta época de mudança de paradigmas, na qual Missão Ad Gentes é a Missão para a humanidade" (Instrumento de Trabalho do CAM 3 - Comla 8). Aparecida convida a repensar a Igreja a partir da Missão, assumindo a caminhada latino-americana pós-conciliar, a opção pelos pobres de Medellín (1968) e Puebla (1979), e a inculturação e a opção pelos outros de Santo Domingo (1992), colocando-as no centro de suas atividades pastorais. Agora o CAM 3 - Comla 8 quer oferecer um corte específico, abrindo para essa interessante interpretação da missão Ad Gentes: "a Missão é para o Reino de Deus e para a humanidade inteira e seu futuro. Como a Igreja, a Missão é convocada dentre toda a humanidade e posta para toda ela; está marcada indelevelmente de universalidade. Na atual mudança de época e de paradigmas, entrega-se a realizar o Plano de Deus, anunciando Jesus, que nos foi revelado. A Missão abarca-O todo. Hoje a Missão Ad Gentes é equivalente à ‘Missão para a humanidade'. A fim de que Jesus Cristo seja hoje ‘Luz das Nações' (cf. Lc 2, 32), abre-se com um sentido de comunhão, universalidade e abertura servidora, dialogadora; escuta os sinais da presença do Verbo em toda cultura e no caminho geral dos povos" (Instrumento de trabalho do CAM 3-Comla 8, p.189).

Um novo humanismo

De onde surge essa missão Ad Gentes entendida como "missão para a humanidade"? O documento da Igreja que está impregnado deste conceito, do qual o texto-base do CAM 3-Comla 8 traz inspiração e fundamento, é a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS) do Concílio Vaticano II. Neste documento a comunidade cristã se faz testemunha e porta-voz do "nascer de um novo humanismo, no qual o ser humano se define, antes de mais nada, pela sua responsabilidade com relação aos seus irmãos e à história". Esse novo humanismo tem como tarefa a construção de "um mundo melhor, na verdade e na justiça" (GS 55).

A Gaudium et Spes é um texto referencial e decisivo para a doutrina da Igreja por ter introduzido, de maneira marcante e fundamental, um olhar sobre a humanidade no discurso magisterial e na preocupação pastoral da Igreja. O papa Paulo VI, em sua belíssima homilia de encerramento do Vaticano II, quis explicitar esse espírito e essa postura com as seguintes palavras: "A Igreja do Concílio ocupou-se muito, além de si mesma e da relação com Deus que a une, do homem qual hoje na realidade se apresenta (...) A antiga história do samaritano foi o paradigma da espiritualidade do Concílio. Uma simpatia imensa permeou-o por inteiro. A descoberta das necessidades humanas absorveu a atenção do nosso Sínodo (...). Reconheçam o nosso novo humanismo: nós também, nós mais do que todos somos cultores do homem". E ainda: "O nosso humanismo faz-se cristianismo e o nosso cristianismo faz-se teocêntrico; tanto que podemos também dizer: para conhecer Deus é necessário conhecer o homem (...) Amar o homem não como instrumento, mas como primeiro fim, através do qual podemos alcançar o fim supremo que transcende todas as realidades humanas".

A família universal

Com esse espírito a Igreja conciliar dispõe-se a entrar em diálogo, a servir e a ser solidária com a história da humanidade inteira, dirigindo-se a todas as pessoas. O mundo com o qual ela quer dialogar, antes de ser o mundo moderno, é "o mundo dos homens, ou seja, a inteira família humana, com todas as realidades no meio das quais vive" (GS 2).

O Concílio fala pouco da pessoa humana como indivíduo, não se dirige a grupos ou classes sociais, nem às sociedades específicas pré ou pós-industrializadas: ele tem "diante dos olhos" a "família humana universal". Essa contemplação da sociedade mundial como "família" diz respeito ao projeto de Deus sobre a humanidade, a qual é chamada a tornar-se uma só "família de Deus" (GS 32). Nos contextos em que recorre a imagem da "família humana", emerge constantemente a dimensão da fraternidade, do amor, da solidariedade, da caridade, do bem comum, do diálogo, da pluralidade das culturas e, finalmente, da paz.

A forte imagem da família, forma mais espontânea e estrita de sociabilidade e de responsabilidade recíproca, aponta para a relação intencional de fraterno e gratuito dom de si a todos os outros. Isso porque o ser humano foi "criado à imagem de Deus" e, portanto, "não pode se encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo" (GS 24), porque é criatura capaz de amar, já que Deus é amor.

A "família humana universal" é, por isso, não um ideal abstrato, mas o grande projeto histórico de Deus para com a humanidade, a qual encontra no mistério trinitário o seu fundamento, o seu modelo e o seu último fim: "o próprio Deus" (GS 24).

Dois princípios

A Igreja declara não ter respostas às grandes questões da humanidade. Ela só pode enxergar a realidade "à luz do Evangelho e da experiência humana" e oferecer perspectivas que "dirigirão os cristãos e iluminarão todas as pessoas na busca da solução para problemas tão complexos" (GS 46). A primeira perspectiva é a defesa obstinada da dignidade da pessoa humana, "fulcro de toda nossa exposição: ser humano uno e integral, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade" (GS 3); "centro e ponto culminante" (GS 12) de tudo o que há na terra; "cujos direitos e deveres são universais e invioláveis" (GS 26). A pessoa criada "à imagem de Deus" não é vista, porém, somente como ente individual, mas é considerada na sua relação com os outros: "o ser humano é, com efeito, por sua natureza íntima, um ser social" (GS 12). Portanto, "que cada um respeite o próximo como outro eu, sem excetuar nenhum"; e, "sobretudo nos nossos tempos, temos a imperiosa obrigação de nos tornarmos próximos de qualquer ser humano indistintamente" (GS 27).

Para a Gaudium et Spes, a pessoa humana é valor absoluto tanto na sua subjetividade como na sua relação com os outros, numa profunda interdependência entre essas duas dimensões, que chega a abraçar o mundo inteiro: "a interdependência, cada vez mais estreita e progressivamente estendida a todo o mundo, faz com que o bem comum - ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição - se torne hoje cada vez mais universal e que, por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem respeito a todo o gênero humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda a família humana" (GS 26).

Introduz-se, dessa maneira, a segunda grande perspectiva para a humanidade, que é a suprema missão de realizar o "bem comum de toda a família humana". O conceito de bem comum, até então, era aplicado apenas à sociedade civil de uma nação soberana. Agora esta soberania é colocada em questão, em nome de um "bem comum universal" que prevalece sobre a defesa de interesses particulares e nacionais. As pessoas não podem contentar-se mais com uma ética puramente individualista e o amor à pátria deve ser cultivado "sem estreiteza de espírito, de maneira que, ao mesmo tempo, (os cidadãos) tenham sempre presente o bem de toda a família humana, que deriva das várias ligações entre as raças, povos e nações" (GS 75).

Missão para a paz

Querendo atingir este objetivo, a Gaudium et Spes aponta para uma instância que, de fato, pode ser considerada chave, ponto culminante e central dos propósitos mais profundos da teologia conciliar: o tema da paz. A família humana universal chegou, realmente, a um momento sumamente decisivo de sua maturidade: ela não conseguirá construir um mundo mais humano se "os homens todos não se converterem com ânimo renovado à verdadeira paz" (GS 77).

A "verdadeira e nobilíssima natureza da paz" (GS 77) não corresponde somente à simples ausência de guerra e a uma boa ordem entre os seres humanos: "com toda a exatidão e propriedade, ela é chamada obra da justiça (Is 32,7)" e "fruto do amor" (GS 78). Trata-se da visão bíblica da paz, da perspectiva do Shalom que atravessa o Antigo e o Novo Testamento, da harmonia das relações no universo das criaturas que reflete o próprio projeto divino. A pura realização de uma ordem social, como fato externo às pessoas que nesta ordem devem viver, não é ainda a paz. Pode ser constrangimento, pode ser medo, pode ser opressão. A paz nasce de uma empatia da consciência dos indivíduos com a intenção e o espírito do valor absoluto da pessoa humana e da necessidade de instaurar o bem comum universal. Ela não é um sentimento, mas é um apelo interior à vontade humana que surge do coração, se torna busca contínua e compromisso histórico (cf. GS 78).

"Esta paz não se pode alcançar na terra a não ser que se assegure o bem das pessoas e que os homens e mulheres compartilhem entre si livre e confiadamente as riquezas do seu espírito criador. Absolutamente necessárias para a edificação da paz são ainda a vontade firme de respeitar a dignidade dos outros seres humanos e povos e a prática assídua da fraternidade. A paz é assim também fruto do amor, o qual vai além do que a justiça consegue alcançar" (GS 78).

A Gaudium et Spes, nessa passagem muito importante, apresenta duas instâncias de engajamento fundamentais em relação aos sujeitos em si (indivíduos e povos) e ao direito-dever deles de sociabilidade: "a vontade firme de respeitar a dignidade dos outros" e "a prática assídua da fraternidade". São duas direções essenciais, extremamente interconexas, que apelam para o reconhecimento do outro e, ao mesmo tempo, para o dever de solidariedade. Não são duas faces da mesma moeda, ou seja, o reconhecimento do outro não implica imediatamente a solidariedade com ele e vice-versa. De fato, nos processos de dominação, as duas perspectivas não se cruzam: pode haver solidariedade (ou suposta tal) sem reconhecimento, como também pode haver reconhecimento (ou suposto tal) sem solidariedade.

Diante do ardente apelo à paz mundial, o Concílio aponta com decisão para um caminho de mão dupla: o engajamento contra toda forma de domínio sobre o outro, e a "prática assídua" de solidariedade e cooperação recíproca como expressão de uma nova lógica de convivência universal.

Compromisso com todos

É nesse sentido que o Instrumento de Trabalho para o CAM 3-Comla 8 aponta para a missão da humanidade: construir um mundo mais fraterno, uma família humana universal, envolvendo todos os cristãos como também "todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente" (GS 22). "Não se pode ser missionário - afirma o texto-base - sem escutar o clamor das vítimas deste mundo. Diariamente nos interpela o sofrimento de tanta gente, sobretudo, dos indefesos: das mães abandonadas, das crianças, dos não-nascidos e dos inocentes (...) Devemos ser missionários compenetrados e movidos pela experiência da misericórdia de Deus (cf. DA 399) para com as vítimas e os crucificados deste mundo. É necessário oferecer esperança, dignidade e alegria, a partir da vida e do amor, do Evangelho de Jesus, partilhado, feito humanismo sincero e solidário, além das simples palavras ou obras limitadas" (DA 201 - 202).

Essa é a verdadeira fé. E essa fé não pode ter fronteiras. Por isso, a missão não pode ser só continental: ela é mundial. O horizonte do bem comum da "família humana universal" é concreto e irreversível, marco divisor, critério fundante que hoje questiona o sentido, a finalidade e a qualidade de nossa missão e a relevância da nossa fé. Esse horizonte convida decididamente as pessoas, as comunidades e as Igrejas a saírem de si e a avançar pelas estradas do mundo: "a graça da renovação não pode crescer nas comunidades, a não ser que cada uma dilate o campo da sua caridade até aos confins da terra e tenha igual solicitude pelos que são de longe, como pelos que são seus próprios membros" (AG 37).

* Estevão Raschietti, SX, mestre em Teologia Dogmática com concentração em Missiologia. Assessor do Comina e membro da equipe do Centro Cultural Guido Maria Conforti, Curitiba, PR.

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