Sociedade do espetáculo e dos analgésicos

Além de impedir um olhar franco, direto e corajoso sobre a situação concreta, o espetáculo e os analgésicos impedem igualmente o acesso às lições da realidade em que vivemos e nos movemos.

Por Alfredo J. Gonçalves

É por demais conhecida e notória a metáfora “pão e circo”, atribuída ao antigo Império Romano. Para os dias atuais, e parafraseando o escritor francês Guy Debord, talvez pudéssemos falar de “sociedade do espetáculo e dos analgésicos”. Os dois termos, de resto, se misturam e se interconectam. Ambos prometem um horizonte de encher os olhos e esvaziar o impacto do sofrimento. O espetáculo está por toda parte, e tudo tende a virar evento, mais do que fato, notícia ou coisa parecida. A espetacularização dos acontecimentos, por outro lado, leva a normalizar um cotidiano de mentira, violência, guerra ou catástrofes. Empanturrados diariamente por uma enxurrada de manchetes, vozes e imagens, tudo isso elevado de forma bombástica à última potência, é normal que passemos a naturalizar a “violência menor”, (se nos é possível exprimir assim) da própria casa, rua, bairro, cidade, e assim por diante. Diante do espetáculo ao mesmo tempo costumeiro e assustador da grande mídia e da opinião pública, as coisas ao redor acabam sendo banalizadas. Por exemplo, o que é um xingamento ou um tapa diante de tantos e tão frequentes feminicídios?

politicas-publicasSequer nos damos conta que todo feminicídio e toda violência iniciam justamente dessa forma: um entrave, um desentendimento, um tom de voz mais alto, um primeiro bofetão... E daí para frente, a bola de neve vai crescendo, instala-se o círculo vicioso, não sendo difícil imaginar um fim trágico. A espetacularização dos fatos, ao banalizar os embates do dia a dia, passa a vê-los como corriqueiros. “Aquilo que é violência, não o que ocorre em casa”! Modo de ver e de analisar que tende à inércia, e esta última à normalização. De braços cruzados, nem percebemos o crescimento progressivo da brutalidade, não raro no interior mesmo da própria família. A violência mais nociva não é sempre aquela que bate à porta intempestivamente, mas aquela que nasce, se nutre, se embrutece e gera rancor e ódio no terreno fraturado do cotidiano. Quantas vezes os gestos de maior hostilidade e agressão se voltam contra aqueles que teoricamente dizemos amar! Quantos mulheres foram assassinadas pelo atual ou “ex” companheiro, namorado, noivo, marido!

Mas essa inércia provocada pela espetacularização mediática vai muito além das fronteiras familiares. Ela costuma naturalizar igualmente a injustiça, a desigualdade social, o desemprego, a pobreza seguida da fome, o desrespeito aos direitos humanos, a devastação do meio ambiente, a concentração da terra, da riqueza e da renda ao lado da exclusão socioeconômica, o autoritarismo político-cultural, o preconceito e discriminação de todo tipo, a xenofobia frente a outros povos, culturas e valores!... Catastróficos são o luxo ostensivo, as guerras abertas, a onda de migrantes e refugiados, o genocídio declarado, a miséria e subnutrição de milhões, e assim sucessivamente. As verdadeiras catástrofes são aquelas que entram pelas telas e telinhas, dizemos, sem perceber que, ao abrir a porta de casa e sair à rua ou à praça, tropeçaremos com a fome em forma de “bicho”, que chafurda no lixo do qual acabamos de nos livrar, para usar o poema de Manuel Bandeira.

Contribuem decisivamente para a inércia, a falta de consciência e a falta de ação os analgésicos que a mesma mídia nos enfia olhos e ouvidos adentro. Para isso servem o marketing e a propaganda – tudo em tonalidade espetacular e estridente. Depois, as novelas em particular, somadas à falsa perspectiva do consumo livre e ao alcance de todos acabam complementado, sub-repticiamente, os ruídos apelativos dos anúncios publicitários. Combinados, o espetáculo de um lado, e os analgésicos de outro, nos fazem o grande favor de tomar uma certa distância das dores, dissabores e sofrimentos. Semelhantes meios nos permitem escapar para outra esfera do real, ou simplesmente para a pura fantasia. Neles, encontramos refúgio e alívio imediato para a realidade nua e crua que insiste em ferir-nos os olhos, os ouvidos, o estômago e os sentidos em geral. A verdade, porém, é que o consumo enche bolsas, gavetas, armários e mansões de um punhado de privilegiados bem restrito, encastelados no topo da pirâmide social. Já para a grande maioria da população, a panaceia do consumo enche apenas os olhos e a ilusão, deixando na alma um sabor amargo de fracasso e impotência.

Além de impedir um olhar franco, direto e corajoso sobre a situação concreta, o espetáculo e os analgésicos impedem igualmente o acesso às lições da realidade em que vivemos e nos movemos. Neste ponto, o grande educador Paulo Freire, ao ser banido do Brasil pela ditadura militar, viu-se impossibilitado de expandir em solo pátrio sua “pedagogia do oprimido”. Esta, partido do chão duro e bruto, se eleva num aprendizado que ensina não só a ler e a escrever, mas também a transformar a realidade social, econômica, política e cultural. Com efeito, refletir e analisar já são formas de desencadear mudanças.

Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço de Proteção ao Migrante, SPM.

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