O silêncio dos enterrados

Um ano de convívio diário e impactante com o fim trágico de parentes e amigos. Um ano marcado por mais de 260 mil vítimas fatais.

Por Alfredo J. Gonçalves

Silêncio de uma ausência, de um espaço vazio, de um vácuo sem fundo, de um nome e de um rosto que para sempre partiram, de uma história brutal e precocemente interrompida. Silêncio dolorosamente estridente, quase ensurdecedor, como nos faz recordar a canção em homenagem a Jacob do Bandolim, composta pelo poeta Sérgio Bittencourt e imortalizada na voz de Nelson Gonçalves: “Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor / Naquela mesa ele contava histórias / Que hoje na memória eu guardo e sei de cor / Naquela mesa ele juntava gente / E contava contente o que fez de manhã / E nos seus olhos era tanto brilho / Que mais que seu filho / Eu fiquei seu fã /Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa num canto, uma casa e um jardim / Se eu soubesse o quanto dói a vida / Essa dor tão doída não doía assim / Agora resta uma mesa na sala /E hoje ninguém mais fala do seu bandolim / Naquela mesa 'tá faltando ele / E a saudade dele 'tá doendo em mim”.

Semana-SantaPassado mais de um ano desde que o novo coronavírus desembarcou em território brasileiro, quantas “casas e jardins” desertos, quantas“mesas num canto”, quantos sofás órfãos na sala, quantos “bandolins” abandonados, quanta dor “tão doída”, quantas saudades sem fim? E que falta fazem aquelas histórias contadas e recontadas na roda íntima da família – gratuitamente, sabiamente, calorosamente – sobretudo quando restou apenas o eco sombrio e desolado das palavras silenciadas! Por que se apagou a luz e o brilho que “nos seus olhos era tanto”, deixando espalhadas ao vento as cinzas invisíveis de uma catástrofe? É como se até mesmo a memória se desvanecesse com a separação do ente querido. Nem sequer tivemos o conforto de contar com um velório decente e uma despedida digna. Partiu solitário, dividindo a tristeza e a solidão com os membros da família enlutada e destroçada.

Um ano de pandemia. Um ano de intenso combate a esse inimigo silencioso, invisível e letal. Um ano em que um exército inumerável de profissionais de saúde teve que tomar decisões que deixaram esses soldados, a si próprios, com feridas abertas talvez para o resto de suas vidas. Um ano de convívio diário e impactante com o fim trágico de parentes e amigos. Um ano marcado por mais de 260 mil vítimas fatais.

No fundo, uma batalha tão mortífera como poucas o têm sido ao longo da história humana. Guerra que mata e mutila de forma aleatória e descontrolada, mas em particular abrevia a vida de não poucos anciãos ou enfermos mais vulneráveis. Assim se foram Fulano, Sicrano, Beltrano – nomes que simbolizam a tantos que riram, choraram, trabalharam, lutaram e sonharam nos mesmos caminhos que juntos trilhamos, mas que perderam o combate para o Covid-19. Assim permaneceram as famílias a quem os falecidos pertenciam. Um golpe mortal os separou para sempre, povoando os cemitérios com os cenários mais macabros, onde reina o silêncio retumbante dos enterrados.

Junto a esse silêncio – de ausência, vazio e solidão – cresce também uma voz surda e muda, mas nem por isso menos crítica e consciente do desgoverno das autoridades brasileiras. Desgoverno que não se refere somente à área da saúde. Ao contrário, reflete-se no desmonte sistemático e não raro irreversível de políticas públicas construídas a custo nas últimas décadas. Nesse desmonte, não seria difícil elencar, por exemplo, a questão do meio ambiente, das relações exteriores, da segurança dos cidadãos, da educação básica e superior, da ciência, cultura e pesquisa... Daí a ira viva, ativa e subterrânea que vai estendendo suas raízes pelo tecido esgarçado de uma sociedade dividida e fragmentada. Parafraseando o escritor estadunidense John Steinbeck, prêmio Nobel de literatura (1962), na escuridão úmida do solo, a revolta faz florescer e amadurecer com força “as vinhas da ira”, prontas para a vindima. Não importa quando virá a colheita, mas lentamente os brotos vão se multiplicando e de abrindo para o ar livre, o céu azul e a luz do sol.

Se é verdade que as derradeiras décadas do século XX representaram uma época de colheita, e se é verdade que uma geração dificilmente é premiada com mais de uma safra, também é certo que a semeadura prossegue laboriosa e conscientemente.

Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, São Paulo.

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